Conto: Levar a vida na flauta
Thiago Mello
Acho uma grande injustiça dizer mal do
meu amigo Belarmino, só porque ele leva a vida na flauta. Há quem o diga um
pândego, senão um irresponsável. Nada disso. Belarmino não ama a folga, não
vive de brisa e pega no batente. Compreendam o meu amigo; ele é simplesmente um
homem de alma leve, para quem só o fato de estar vivo já é uma enorme graça.
Nasceu com vocação da felicidade. Prefere enxergar sempre o lado bom das
coisas, e principalmente o das pessoas. Das pessoas em geral, mas em particular
daquelas com quem ele vive, cujos defeitos ele vê, mas faz de conta que não vê
e, por puro instinto, sem qualquer cálculo, deles sabe se cuidar. Em
compensação, enaltece encantado as virtudes dos amigos, porque amizade é para
ele a fina flor da vida. Encontra prazer no lance mais trivial de cada dia: o
passarinho cantando, a moça que passa, o cheiro denso do mar, o bife enrolado
com farofa de ovo, um chorinho da velha guarda ou uma canção do Roberto Carlos.

Não estou dizendo que para ele tudo são
flores e que a vida sempre lhe vai às mil maravilhas. Muito pelo contrário.
Como todo mundo, de vez em quando ele sente o gosto amargo da vida, conhece
contingências ásperas, o dinheirinho mingua, doença na família, o seu time
perde, o carro deu o prego. Mas ele jamais dá com o rabo na cerca. A diferença
é que ele possui um misterioso mecanismo, localizado suponho que no cerebelo e
não-acionado pela vontade consciente, que não permite que as contrariedades e
os desagrados jamais o apoquentem, além de determinado limite. Por isso é que o
Belarmino nunca perde o aprumo, a serenidade nem o riso.
Não, não vive rindo para as paredes.
Sorri até mais do que ri, só que o seu riso transmite confiança e é sinal de
uma indisfarçável alegria de viver. Curioso, não é um melódico, não tem a
virtude musical da risada do Newton Freitas, a quem Rubem Braga chamou de
Flauta da Noite. É a brandura do seu olhar que lembra a suavidade de certos
fraseios da flauta conversando com a harpa, no concerto de Mozart.
É possível que a leveza da vida de
Belarmino lhe venha um pouco, ou mais do que um pouco, da mulher que ele tem:
além de bonita e bondosa, vive para lhe fazer as vontades, que ele nem precisa
manifestar, ela adivinha. Mas ninguém calcule que ele é desses para quem tudo
está bom, do tanto faz como tanto fez. Tem opinião própria, reclama, discorda,
mas sempre em termos, de modos amáveis.
E, como todo bom filho de Deus,
Belarmino também sofre neste mundo, mas sem permitir que a dor ultrapasse os
limites da sua filosofia – “Deus dá o frio conforme o cobertor" – que aliás
não é nem dele nem minha, mas do Adoniran Barbosa.
Estive com meu amigo faz pouco tempo.
Soube que ele acabara de perder um filho, logo o caçula; fui visitá-lo. Recebeu
delicado o meu abraço comovido, e sabem o que ele fez? Me convidou para uma
partida de xadrez. Jogava com os cotovelos na mesa, as mãos sustentando o rosto
enfiado no tabuleiro, e assoviando baixinho. Já com boa hora da partida, eu
aguardava de olhar fixo o lance do seu cavalo, quando vi uma lágrima grossa
cair bem em cima da coroa do rei. Condoído, quis lhe dar alguma palavra, mas
ele falou antes de mim:
-- Está aí o teu xeque-mate.
Meu amigo é assim. Pelo requinte com
que ele assovia um choro de Pixinguinha, desconfio que o nosso Belarmino
poderia perfeitamente ganhar a vida na flauta.
Thiago de Mello.
Fonte: Letra e Vida.
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos –
Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 44-45.
Entendendo o conto:
01 – Como o narrador descreve
a personalidade de Belarmino, contestando as opiniões de terceiros?
O narrador
defende Belarmino, afirmando que ele não é um pândego ou irresponsável, mas sim
um homem de alma leve com vocação para a felicidade. Ele trabalha, não vive de
folga, e possui uma capacidade inata de enxergar o lado bom das coisas e das
pessoas.
02 – De que forma Belarmino
lida com os defeitos das pessoas ao seu redor?
Belarmino vê os
defeitos, mas faz de conta que não vê. Ele se cuida deles por instinto, sem
cálculo, e, em vez disso, enaltece as virtudes dos amigos, pois para ele a
amizade é a "fina flor da vida".
03 – O que proporciona prazer
a Belarmino no cotidiano?
Belarmino
encontra prazer em lances triviais do dia a dia, como o canto de um passarinho,
a moça que passa, o cheiro do mar, um bife enrolado com farofa de ovo, um
chorinho da velha guarda ou uma canção de Roberto Carlos.
04 – Qual o "misterioso
mecanismo" que impede Belarmino de ser totalmente abatido pelas adversidades?
Belarmino possui
um misterioso mecanismo, localizado no cerebelo e não acionado pela vontade
consciente, que não permite que as contrariedades e desagrados o apoquentem
além de um certo limite. Isso o faz nunca perder o aprumo, a serenidade nem o
riso.
05 – Qual a influência da
esposa de Belarmino em sua leveza de vida?
A esposa de
Belarmino, além de bonita e bondosa, vive para lhe fazer as vontades,
adivinhando-as sem que ele precise manifestá-las. O narrador sugere que essa
relação contribui "mais do que um pouco" para a leveza da vida de
Belarmino.
06 – Que filosofia Belarmino
adota para lidar com a dor e o sofrimento?
Belarmino adota a
filosofia do Adoniran Barbosa: "Deus dá o frio conforme o cobertor".
Essa crença o ajuda a não permitir que a dor ultrapasse os limites de sua
resiliência.
07 – Qual a cena final do
conto que demonstra a capacidade de Belarmino de "levar a vida na
flauta" mesmo em meio à dor?
Ao perder seu
filho caçula, Belarmino recebe o narrador com delicadeza e o convida para uma
partida de xadrez. Durante o jogo, ele assovia baixinho, e embora uma lágrima
caia em seu rei, ele a disfarça prontamente, anunciando o xeque-mate. Essa
atitude final sublinha sua capacidade de lidar com a dor sem perder a
compostura e a alegria de viver.
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