Artigo de opinião: CULTURA BRASILEIRA E CULTURAS BRASILEIRAS
Alfredo Bosi
DO SINGULAR AO PLURAL
Estamos acostumados a falar em cultura
brasileira, assim, no singular, como se existisse uma unidade prévia que
aglutinasse todas as manifestações materiais e espirituais do povo brasileiro.
Mas é claro que uma tal unidade ou uniformidade parece não existir em sociedade
moderna alguma e, menos ainda, em uma sociedade de classes. Talvez se possa
falar em cultura bororo ou cultura nhambiquara tendo por referente a vida
material e simbólica desses grupos antes de sofrerem a invasão e aculturação do
branco. Mas depois, e na medida em que há frações do interior do grupo, a
cultura tende também a rachar-se, a criar tensões, a perder a sua primitiva
fisionomia que, ao menos para nós, parecia homogênea.

A tradição da nossa Antropologia
Cultural já fazia uma repartição do Brasil em culturas aplicando-lhes um
critério racial: cultura indígena, cultura negra, cultura branca, culturas
mestiças. Uma obra excelente, e ainda hoje útil como informação e método, a
Introdução à antropologia brasileira, de Arthur Ramos, terminada em 1943,
divide-se em capítulos sistemáticos sobre as culturas não européias (culturas
indígenas, culturas negras, tudo no plural) e culturas européias (culturas
portuguesa, italiana, alemã...), fechando-se pelo exame dos contatos raciais e
culturais.
Os critérios podem e devem mudar.
Pode-se passar da raça para nação, e da nação para a classe social (cultura do
rico, cultura do pobre, cultura burguesa, cultura operária), mas, de qualquer
modo, o reconhecimento do plural é essencial.
A
proposta de compreensão que se faz aqui tem um alcance analítico inicial; e
poderá ter (oxalá tenha) um horizonte dialético final.
Se pelo termo cultura entendemos uma
herança de valores e objetos compartilhada por um grupo humano relativamente
coeso, poderíamos falar em uma cultura erudita brasileira, centralizada no
sistema educacional (e principalmente nas universidades), e uma cultura
popular, basicamente iletrada, que corresponde aos mores materiais e simbólicos
do homem rústico, sertanejo ou interiorano, e do homem pobre suburbano ainda
não de todo assimilado pelas estruturas simbólicas da cidade moderna.
A essas duas faixas extremas bem
marcadas (no limite: Academia e Folclore) poderíamos acrescentar outras duas
que o desenvolvimento da sociedade urbano-capitalista foi alargando. A cultura
criadora individualizada de escritores, compositores, artistas plásticos,
dramaturgos, cineastas, enfim, intelectuais que não vivem dentro da
Universidade, e que, agrupados ou não, formariam, para quem olha de fora, um
sistema cultural alto, independentemente dos motivos ideológicos particulares
que animam este ou aquele escritor, este ou aquele artista. Enfim, a cultura de
massas, que, pela sua íntima imbricação com os sistemas de produção e mercado
de bens de consumo, acabou sendo chamada pelos intérpretes da Escola de
Frankfurt, indústria cultural, cultura de consumo.
Teríamos em registro analítico: cultura
universitária, cultura criadora extra-universitária, indústria cultural e cultura
popular. Do ponto de vista do sistema capitalista tecnoburocrático, um arranjo
possível é colocar do lado das instituições a Universidade e os meios de
comunicação de massa; e situar fora das instituições a cultura criadora individualizadas
e a cultura popular.
É claro que esse esquema espacial de
fora e dentro deve ser relativizado, pois enrijece o termo instituição,
definindo-o sempre em termos de organização própria das classes dominantes. Na
verdade, matizando a questão: um fenômeno típico de cultura popular como a
procissão do Senhor Morto na Semana Santa é também uma instituição, em sentido
paralelo ao da instituição do candomblé ou de um rito indígena. Ou, falando da
cultura criadora personalizada, uma obra teatral é um gênero público
instituído, queira ou não o seu autor. Mas, se usássemos desse critério
sociológico, tudo viraria instituição, tudo codificação social coercitiva e
borraríamos anti-historicamente a nossa primeira distinção: sistemas culturais
organizados para funcionar sempre como instituições (a Escola, uma Empresa de
Televisão, por exemplo) e manifestações mais rentes à vida subjetiva ou grupal:
um poema; uma roda de samba; um mutirão...
BOSI, Alfredo.
Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 308-310.
Fonte: livro Português:
Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª
edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 507-508.
Entendendo o artigo:
01
– Qual é a principal questão que Alfredo Bosi levanta sobre a cultura brasileira?
Bosi questiona a
ideia de uma cultura brasileira singular e homogênea, argumentando que a
diversidade e a pluralidade são características mais precisas da realidade
cultural do país.
02
– Por que Bosi considera inadequado falar em "cultura brasileira" no
singular?
Bosi argumenta
que a sociedade brasileira é complexa e dividida em classes, o que impede a
existência de uma cultura única e uniforme. Ele propõe que a cultura seja
entendida como um conjunto de manifestações plurais e multifacetadas.
03
– Quais são os critérios que Bosi aponta como relevantes para analisar a
cultura brasileira?
Bosi menciona
critérios como raça, nação e classe social como importantes para entender as
diferentes manifestações culturais no Brasil. Ele também destaca a importância
de considerar a cultura tanto em sua dimensão material quanto simbólica.
04
– Quais são as quatro faixas culturais que Bosi identifica na sociedade
brasileira?
Bosi identifica
quatro faixas culturais principais: a cultura erudita (ligada ao sistema
educacional), a cultura popular (expressão do homem comum), a cultura criadora
individualizada (de artistas e intelectuais) e a cultura de massas (indústria
cultural).
05
– Como Bosi relaciona as faixas culturais com o sistema capitalista
tecnoburocrático?
Bosi sugere que a
cultura universitária e a indústria cultural estão mais ligadas às instituições
do sistema capitalista, enquanto a cultura criadora individualizada e a cultura
popular se situam mais fora dessas instituições.
06
– Por que Bosi relativiza a distinção entre "dentro" e
"fora" das instituições?
Bosi reconhece
que mesmo manifestações culturais como a procissão do Senhor Morto ou uma obra
teatral podem ser consideradas instituições em um sentido mais amplo, pois
carregam códigos sociais e são reconhecidas e compartilhadas por grupos.
07
– Qual é a proposta de Bosi para compreender a cultura brasileira?
Bosi propõe uma
abordagem analítica inicial que reconheça a pluralidade de culturas no Brasil,
com a possibilidade de alcançar uma compreensão dialética que relacione as
diversas manifestações culturais com seus contextos históricos e sociais.
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