TEXTO: Pelo
Ralo
Este conto foi inspirado nos atentados
de 11 de setembro de 2001, às Torres gêmeas do World Trade Center, em Nova
York.
Os pratos estão empilhados de um dos lados da pia numa torre
irregular, equilibrando-se uns sobre os outros de forma precária, como se os
destroços de um prédio bombardeado ameaçando cair. Estão sujos. Muito sujos.
Foram deixados ali já faz algum tempo e os pedaços de detritos sobre eles se
cristalizaram, tomando formas absurdas, surreais. Há grãos e lascas, restos de
folhas, amontoados de uma indefinida massa de cor acinzentada. Copos e tigelas
de vidro, também empilhados num desenho caótico, exibem a superfície maculada,
cheia de nódoas, e o metal das panelas, chamuscado e sujo em vários pontos,
lembra a fuselagem de um avião incendiado. Mas há mais do que isso. Há talheres
por toda parte, lâminas, cabos, extremidades pontiagudas que surgem por ente os
pratos, em sugestões inquietantes. E há ainda a cratera da pia, onde outros
tantos pratos e travessas, igualmente sujos, estão quase submersos numa água
escura, como se, num campo de batalha, a chuva tivesse caído sobre as cinzas. O
cenário é desolador.
A mulher se aproxima, os olhos fixos na pia. Suas mãos, cujos dedos exibem
dobras ressecadas, resultado de muitos anos de contato com água e detergente,
movem-se em torno da cintura e caminham até as costas, levando as tiras do
avental vermelho e branco. Com gestos rápidos, ágeis, faz-se a laçada, que ajusta
o avental em seu lugar. E a mulher abre a torneira. Encostada à pia, espera,
tocando a água de vez em quando com a ponta dos dedos. Ligou o aquecedor no
máximo, pois sabe que precisará dela fumegante, para derreter as crostas
formadas depois de tantas horas. Logo o vapor começa a subir. Emana da pia,
primeiro lentamente, depois numa nuvem mais encorpada, quase apocalíptica,
enquanto o jato d’água chia contra a superfície da louça suja. A mulher despeja
algumas gotas de detergentes na esponja e começa a lavar. Esfrega com vigor,
começando pelas travessas que estavam imersas na água parada, pegando em
seguida os copos e, por fim, a pilha de pratos. Vai acumulando-os, já envoltos
em espuma, de um dos lados da pia, num trabalho longo, árduo. E só depois se põe
a enxaguá-los, deixando que a água escoe, levando consigo o que resta dos
detritos.
De repente, a mulher sorri. As pessoas não acreditam, mas ela gosta de lavar
louça. Sempre gostou. A sensação da água quente nas mãos, seu jato carregando
as impurezas, são para ela um bálsamo. “É bom assistir a essa passagem, à
transformação do sujo em limpo”, ouviu dizer um dia um poeta, que também
gostava de lavar louça. Ficara feliz ao ouvir aquilo. Só então se dera conta do
quanto havia de beleza e poesia nesses gestos tão simples. Mas agora a mulher
suspira. Queria poder também lavar os erros do mundo, desfazer seus escombros,
apagar lhe as nódoas, envolver em sabão todos os ódios e horrores, as misérias
e mentiras.
Porque, afinal, do jeito que as coisas
andam, é o próprio mundo que vai acabar – ele inteiro – descendo pelo ralo.
Seixas,
Heloisa. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 set. 2001.
Revista de Domingo, Seção Contos Mínimos.
Entendendo
o texto:
01 –
Explique qual é a situação cotidiana que serve de ponto de partida para o
conto.
O conto
começa quando uma mulher se aproxima da pia para lavar uma grande pilha de
louça.
02 – Como
a descrição feita no primeiro parágrafo evoca o mundo real em que se insere o
leitor?
A descrição das pilhas de pratos, copos e talheres evoca, no leitor, outras
cenas, reais, que dão verossimilhança ao mundo ficcional que está sendo criado
naquele momento.
03 – Em
seu caderno, transcreva trechos do primeiro parágrafo em que a autora constrói
algumas imagens e as associa ao atentado ao World Trade Center.
De que
maneira as comparações garantem a associação entre o texto e o atentado?
As imagens são as seguintes: “Os pratos estão empilhados de um dos lados da pia
numa torre irregular, equilibrando-se uns dobre os outros de forma precária
como se os destroços de um prédio bombardeado ameaçando cair”; “Copos e tigelas
de vidro, também empilhados num desenho caótico, exibem a superfície maculada,
cheia de nódoas, e o metal das panelas, chamuscado e sujo em vários pontos,
lembra a fuselagem de um avião incendiado.”; “Há ainda a cratera da pia, onde
outros tantos pratos e travessas, igualmente sujos, estão quase submersos numa
água escura, como se, num campo de batalha, a chuva tivesse caído sobre as
cinzas”.
04 –
Explique de que forma o prazer da mulher com o ato de lavar a louça remete à
reflexão que o texto pretende desencadear.
Ao tratar
da sensação de prazer da personagem com a tarefa de lavar louça, do jato de
água “carregando as impurezas” e produzindo na mulher o efeito de um “balsamo”,
a autora reflete sobre o desejo de fazer o mesmo com o mundo: “lavar os erros
do mundo, desfazer seus escombros, apagar lhe as nódoas, envolver em sabão
todos os ódios e horrores, as misérias e mentiras”. Simbolicamente, o conto
sugere que o mundo está precisando de uma pessoa que lhe lave as impurezas. (O
ódio; a intolerância, o preconceito.).
05 – Que
sentidos podemos atribuir ao título do texto?
Literalmente, “pelo ralo” faz uma alusão ao caminho percorrido pelas impurezas
da louça que e lavada. Em sentido figurado, o título alude ao caminho da
humanidade, maculado por atos insensatos de ódio e destruição, como os
atentados de 11 de setembro de 2001.
Obrigada me ajudou muito ❤😋👍🏻
ResponderExcluirNão a de que👍🏽
ExcluirValeu!
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