Poema: AMAZÔNIA
Manoel de Andrade
Antes da pátria, eras úmida
promessa…
semente primordial
árvore mãe
planta continental
arvoredo, floresta, selva palpitante.
Hoje canto tua vertical beleza
o mogno gigantesco, sua estatura secular
seu colossal diâmetro
canto essa caudalosa geografia
essa multidão de vidas que sustentas
canto o itinerário sazonal da seiva
e essa infinita linfa…
parto de infinitas criaturas.
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgnAY3KEtvKH_N7W-4lo3kpZxJHjisrjqWMv2M9gWzrL59qAKHzFmwkp08jkZiTj-AcQRuBMcKcFcTDx-r9S5ckqOOauGT1kCj1zVo60tyJkUqT5BDfZz8lpAKqKHYl3-5Mjijc8rT4N7EbIKcuOMz5SxcbBiNi45r-Krx-5ghOR0JB_SMfm6ktan0FSvs/s1600/aMAZONIA.jpgCanto teu verde planetário
e no teu imenso respirar,
canto o nosso pão de oxigênio…
Canto a ti… Amazônia
bosque inquietante da esperança…
e eis porque denuncio esse machado cruel sobre teu peito…
essa fruta milenar, dia a dia devorada.
Antes da grande nação…já eras
tu…
a nação primogênita
filha dos filhos da mata.
A infância da pátria foste tu,
sílaba aborígine, idioma tupi
cerâmica, canoa e tacape
ritual, dança e canção.
Foste tu a raiz, sangue ameríndio
o parto da nacionalidade.
Hoje canto os povos da floresta
e o desencanto dessa memória esquecida.
Falo de sobreviventes
de tribos desgarradas
de aldeias tristes
de sonhos desmatados
de segredos e tradições pirateadas
das águas lavadas na bateia do mercúrio.
Amazônia… Amazônia…
quem deterá o teu martírio
uma vida tão diversa num adverso viver…
Falo dos teus hectares de sangue
da lâmina cruel, da pira ardente
dessa cartilha de serras, rifles e archotes
dessa morte plural
na diversidade de aves e primatas
roedores, felinos e serpentes.
Falo de uma terra de cepos
de raízes degoladas
de caules retalhados
de castanheiras preservadas… a morrer de solidão.
Falo da linha negra do fogo
e desse cemitério de troncos defumados.
Falo da floresta sitiada
por uma legião de máquinas assassinas
falo de estradas e picadas clandestinas
de súbitas clareiras
desse assalto interminável… lento e invisível.
Falo de grileiros, posseiros, garimpeiros, bandoleiros
e de terras demarcadas sob a mira das pistolas.
Falo de dragas e crateras
das águas manchadas e dos rios estropiados.
Falo da vida degradada pelas pastagens da ambição.
Amazônia… Amazônia…
com que verde vestiremos nosso mapa
acuados pelo apetite voraz das motosserras,
por uma fronteira incinerante que avança insaciável.
Acuados pelo gatilho mercenário da violência
e pelo estigma oficial da impunidade.
Passo a passo e esse
avizinhar-se do colapso…
quantos fóruns se abrirão para “resolver” essa tragédia!?
Crimes silenciados na cumplicidade regional dos gabinetes…
gritos sem eco nas vozes da omissão…
acenos sem resposta nos protocolos renegados…
e o poder dos maiorais contra tudo o que respira.
Deixaste ali teu heroico
testemunho
teu seringal sagrado
teu rosto solidário.
Contigo… caiu o tronco ensanguentado…
Tua alma… teu nome… Chico Mendes,
sobrevivem em deslumbrante hileia,
na invisível bandeira das espécies
e na memória da pátria agradecida.
Depois chegaste tu… Dorothy Stang…
estrangeira, franzina e destemida
desafiando víboras e chacais
e defendendo a floresta com a paz do nazareno.
Em Anapu ergueram teu calvário
mas hoje ergo aqui, no jardim humilde da poesia,
a tua estátua de missionária imperecível.
Amazônia… Amazônia…
Quantos ainda cairão para que sobrevivas?
Com que vozes cantaremos a esperança
enlutados pela ausência dos que ousaram manter suas denúncias?
quem te fará justiça?
quem suspenderá esse cerco que te aperta lentamente?
como conter teu holocausto
e a agonia silenciosa das espécies?
E eis porque canto o desencanto
da árvore secular que tomba
e essa sinistra paisagem de troncos decepados…
E falo da imensa copa baqueada…
seus frutos, seus aromas
remédios e resinas,
seus colares e adereços…
Falo de samambaias e orquídeas
de cipós e de bromélias agonizantes.
De garras, patas e plumagens…
de berços destroçados, de ninhos mortos
e dessa maternidade em lágrimas.
Falo do patrimônio ambiental da
pátria
da grilagem descarada
de negociatas e falsos documentos.
Falo da destruição diária e sorrateira
de pastagens criminosas
e de uma ingrata agricultura.
Falo da natureza usada e abandonada
de uma terra arrasada
e de um deserto verde que cresce… dia a dia.
Eis tu… e eu te chamo legião…
o mundo te observa e nos pergunta: por quê???
e todos nos perguntamos: até quando???
os que irão nascer perguntarão quem foste tu e por que tanto desamor…
os céus vigiam teus passos,
rastreiam teus crimes
e a tua sombra imensa que avança para o norte…
Sabem de ti o rei e os seus vassalos…
conhecem teus látegos de aço
tua tocha incendiária
teus cúmplices e tuas vítimas
tuas mãos manchadas com o sangue da floresta…
Somos os que te acusamos
nessas sementes queimando
nessas pétalas feridas
nesses pássaros sem ninho…
Somos os que assistimos, impotentes, esse indigesto banquete,
tua dieta vegetariana
e a euforia com que brindas o lucro e o bom negócio
nessa taça transbordante de cinzas, de sangue e de lágrimas…
Amazônia… Amazônia… sem lei, sem
testemunhas…
e essa oficial improvidência…
Nada que te ampare…
nada..
Talvez um vento reverso
uma chuva perene que apague essa queimada.
Talvez um decreto impossível
uma lei implacável
a mão de Deus, quem sabe…
a espada da justiça pra sangrar os que te sangram…
algo que feche essa ferida
algo que estanque essa agonia.
Quem sabe, o refluxo imperdoável do teu próprio martírio…
uma malária cruel…
algo que empeste essa ganância…
antes… bem antes
que essa segunda geração de abutres choque também os seus filhotes.
ANDRADE, Manoel de. Cantares. São Paulo: Escrituras, 2007.
Entendendo o poema:
01
– Na primeira estrofe, como o poeta descreve a Amazônia em relação ao Brasil
antes de ser considerada uma "pátria"?
O poeta a
descreve como uma "úmida promessa," "semente primordial," e
"árvore mãe" que precedeu a nação.
02
– Cite três aspectos da beleza da Amazônia que o poeta exalta na primeira
metade do poema.
O poeta canta a
"vertical beleza" (das árvores), o "mogno gigantesco," a
"caudalosa geografia," o "verde planetário" e o "pão
de oxigênio" que ela fornece. (Três dentre estes são aceitáveis).
03
– Qual o objeto cruel que o poeta denuncia na floresta, simbolizando a
destruição?
Ele denuncia o
"machado cruel" sobre o peito da floresta e a "lâmina
cruel".
04
– Além de ser a "infância da pátria," quais são dois elementos da
cultura indígena (aborígine) associados à Amazônia que o poeta menciona?
Ele menciona a
"sílaba aborígine," o "idioma tupi," a
"cerâmica," a "canoa" e o "tacape" (aceitar
quaisquer dois).
05
– Na segunda metade do poema, o poeta fala de "memória esquecida" e
de "segredos e tradições pirateadas". A que grupo de pessoas ele se
refere nesse contexto?
Ele se refere aos
"povos da floresta" (indígenas e ribeirinhos) e aos
"sobreviventes" de tribos desgarradas.
06
– O poema lista várias figuras responsáveis pela destruição e exploração. Cite
quatro delas.
O poeta fala de
grileiros, posseiros, garimpeiros, bandoleiros e pistoleiros/mercenários
(aceitar quaisquer quatro).
07
– O que representa o "deserto verde" que, segundo o poeta, cresce a
cada dia, e qual é a atividade que ele associa a essa degradação?
O "deserto verde" é o resultado da terra arrasada e
representa a paisagem degradada pela ambição, como as pastagens criminosas e a
ingrata agricultura.
08
– Na descrição da devastação, o que acontece com as "águas" e os
"rios" por causa do garimpo?
As águas são "lavadas na bateia do mercúrio"
(contaminadas) e os rios são "estropiados" (danificados).
09
– O poema faz uma homenagem a duas figuras notórias que defenderam a Amazônia e
foram vítimas da violência. Quem são elas?
As duas figuras
são Chico Mendes (seringueiro e ativista brasileiro) e a missionária Dorothy
Stang (estrangeira, franzina e destemida).
10
– Qual é a pergunta final e mais urgente que o poeta deixa no ar, refletindo
sobre a contínua tragédia da Amazônia?
A pergunta é: "Quantos
ainda cairão para que sobrevivas?" ou a questão sobre "até
quando???" o mundo assistirá à tragédia e "quem te fará
justiça?" (aceitar qualquer uma dessas ideias centrais).
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