Conto: O Kazukuta
         Ondjaki
        Nós estávamos sempre atentos à queda
das nêsperas, das pitangas e das goiabas, e era mesmo por gritarmos ou por
corrermos que o Kazukuta acordava assim no modo lento de vir nos espreitar,
saía da casota dele a ver se alguma fruta ia sobrar para a fome dele.
 Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6rO2lJvm7PSq7BbmvmNZWM324d35-ExcjSgzD2SYd8Tl2AkrXVRieqDlEGcHihFNUDEoMaWsxvPbRIh3FTNUlUpYJWqXfghZSxuBAfIAuwnhnQXqhCli-xKvvTt1eWFmybnzm5nmPqsKWC-3fbLABzd3ivaiZRfc3FmEtMTZ2tO2hItRAt-pqXR3Fnbw/s320/osdaminharua.jpg
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6rO2lJvm7PSq7BbmvmNZWM324d35-ExcjSgzD2SYd8Tl2AkrXVRieqDlEGcHihFNUDEoMaWsxvPbRIh3FTNUlUpYJWqXfghZSxuBAfIAuwnhnQXqhCli-xKvvTt1eWFmybnzm5nmPqsKWC-3fbLABzd3ivaiZRfc3FmEtMTZ2tO2hItRAt-pqXR3Fnbw/s320/osdaminharua.jpg        Normalmente ele comia as nêsperas meio
cansadas ou de pele já escura que ninguém apanhava. Mexia-se sempre
devagarinho, e bocejava, e era capaz de ir procurar um bocadinho de sol pra lhe
acudir as feridas, ou então mesmo buscar regresso na casota dele. Às vezes,
mesmo no meio das brincadeiras, meio distraído, e antes de me gritarem com
força para eu não estar assim tipo estátua, eu pensava que, se calhar, o
Kazukuta naquele olhar dele de ramelas e moscas, às vezes, ele podia estar a
pensar. Mesmo se a vida dele era só estar ali na casota meio triste, sair e
entrar, tomar banho de mangueira com água fraca, apanhar nêsperas podres e
voltar a entrar na casota dele, talvez ele estivesse a pensar nas tristezas da
vida dele.
        Acho que o Kazukuta era um cão triste
porque é assim que me lembro dele. Nós mesmo não lhe ligávamos nenhuma. Ninguém
brincava com ele, nem já os mais velhos lhe faziam só uma festinha de vez em
quando. Mesmo nós só queríamos que ele saísse do caminho e não nos viesse
lamber com a baba dele bem grossa de pingar devagarinho e as feridas quase a
nunca sararem. Acho que o Kazukuta nunca apanhou nenhuma vacina, se calhar ele
tinha alergia ou medo, não sei, devia perguntar no tio Joaquim. Também o
Kazukuta não passeava na rua e cada vez andava só a dormir mais.
        Sim, o Kazukuta era um cão triste.
        Um dia era de tarde, e vi o tio Joaquim
dar banho ao Kazukuta. Um banho longo. Fiquei espantado: o tio Joaquim que
ficava até tarde a ler na sala, o tio Joaquim que nos puxava as orelhas, o tio
Joaquim silencioso, como é que ele podia ficar meia hora a dar banho ao
Kazukuta?
        Lembro o Kazukuta a adorar aquele
banho, deve ser porque era um banho sincero, deve ser porque o tio punha
devagarinho frases em kimbundu ao Kazukuta, e ele depois ia adormecer.
Kazukuta..., lembro bem os teus olhos doces brilharem tipo um mar de sonho só
porque o tio Joaquim – o tio Joaquim silencioso – veio te dar banho de
mangueira e te falou palavras tranquilas num kimbundu assim com cheiros da infância
dele.
        E demorou. Nós já estávamos quase a
parar a nossa brincadeira. Porque afinal a água caía nos pelos do Kazukuta, e
os pelos ficavam assim coladinhos ao corpo, e virados para baixo como se já
fossem muito pesados, e a água foi, não tinha mais, e mesmo sem fechar a
torneira o tio Joaquim, com a mangueira ainda a pingar as últimas gotas dela, e
no regresso do Kazukuta à casota, depois daquele abano tipo chuvisco de nós
rirmos, o Tio Joaquim deu a notícia que tinha demorado aquele tempo todo para falar:
        -- Meninos, a tia Maria morreu.
        Até tive medo, não daquela notícia
assim muito séria, mas do que alguém perguntou:
        -- Mas podemos continuar a brincar só
mais um bocadinho?
        O tio largou a mangueira, veio nos fazer
festinhas.
        -- Sim, podem.
        Parece mesmo vi um sorriso pequenino na
boca dele. O tio Joaquim era muito calado e sorria devagarinho como se nunca
soubesse nada das horas e das pressas dos outros adultos. Às vezes ele aparecia
no quintal sem fazer ruído e espreitava a nossa brincadeira sem corrigir nada.
Olhava de longe como se fosse uma criança quieta com inveja de vir brincar
conosco também.
        O tio Joaquim era muito calado e sorria
devagarinho como se nunca soubesse nada das horas e das pressas dos outros
adultos. O tio Joaquim gostava muito de dar banho ao Kazukuta. Um dia kazukuta
estava muito velho e morreu mesmo.
ONDJAKI. Os da minha
rua. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007. p. 27-29.
Entendendo o conto: 
01
– Como o narrador infantil descreve a rotina e o estado geral do cão Kazukuta
no início do conto?
      O narrador
descreve Kazukuta como um cão triste, que se movia lentamente e passava a maior
parte do tempo na sua casota. Sua rotina resumia-se a sair para espreitar a
queda das frutas (comendo as "cansadas ou de pele já escura" que
sobravam), procurar sol para suas feridas (que "quase a nunca
saravam"), tomar banho de mangueira com água fraca e voltar para a casota.
Ele era um cão negligenciado, a quem "ninguém brincava" e que não
recebia afeto.
02
– O que o narrador, mesmo em meio às brincadeiras, chega a imaginar sobre o
cão, desafiando a percepção de que Kazukuta era apenas um animal?
      O narrador
imagina que, "naquele olhar dele de ramelas e moscas," o Kazukuta
podia estar a pensar. Ele reflete que, mesmo que a vida do cão fosse só a
rotina triste de sair e entrar na casota, "talvez ele estivesse a pensar
nas tristezas da vida dele." Essa reflexão humaniza o cão, atribuindo-lhe
uma consciência e uma dor existencial.
03
– Qual é a ação do Tio Joaquim que espanta o narrador, e o que essa ação revela
sobre a relação do Tio com Kazukuta?
      O que espanta o
narrador é o fato de o Tio Joaquim — um homem silencioso, leitor e que
costumava puxar as orelhas das crianças — ter ficado meia hora a dar um banho
longo e sincero no Kazukuta. Essa ação revela uma sensibilidade e um afeto ocultos
do Tio, que se manifestavam não em palavras para os humanos, mas em carinho e
cuidado para com o cão negligenciado.
04
– Durante o banho, que elemento cultural e afetivo o Tio Joaquim utiliza para
se comunicar com Kazukuta, e qual é o efeito disso no cão?
      O Tio Joaquim
falava "devagarinho frases em kimbundu" para o Kazukuta, com palavras
tranquilas "com cheiros da infância dele." Esse uso da língua
ancestral confere um caráter íntimo e profundo ao afeto. O efeito é notável: o
Kazukuta demonstra que "adorava aquele banho," com seus "olhos
doces brilharem tipo um mar de sonho."
05
– O banho demorado e a notícia que o Tio Joaquim revela ao final estão
interligados. Qual é a função desse tempo de banho em relação à notícia?
      O banho longo
serve como um preâmbulo ou um ritual de preparação para a notícia séria da
morte da "tia Maria." O Tio Joaquim estava usando o tempo e o ato
carinhoso de dar banho ao cão como uma forma de lidar com a própria dor e o
luto, adiando o momento de dar a notícia às crianças, o que é explicitado na
frase "tinha demorado aquele tempo todo para falar."
06
– Qual é a reação imediata das crianças à notícia da morte da tia Maria, e o
que essa reação sugere sobre a percepção infantil da morte e do luto?
      A reação das
crianças é uma pergunta inocente e centrada em si mesmas: "Mas podemos
continuar a brincar só mais um bocadinho?" Essa reação sugere que a morte,
para elas, é um evento sério, mas distante e abstrato, que não interrompe de
imediato a prioridade do seu universo, que é a brincadeira e a alegria do
momento presente.
07
– Como o narrador descreve o Tio Joaquim após o momento da notícia e até o
final do excerto? O que essa descrição finaliza sobre o seu caráter?
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