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quinta-feira, 3 de julho de 2025

CONTO: O HOMEM QUE ODIAVA A SEGUNDA-FEIRA - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - COM GABARITO

 Conto: O homem que odiava a segunda-feira

            Ignácio de Loyola Brandão

        O despertador musical acordou-o com Doris Day cantando "Que será, será", sucesso dos anos 60, quando ele era um jovem de 25 anos. A música está no filme de Hitchcock, O homem que sabia demais, e seu início se passa em um Marrecos produzido nos estúdios. Um país falso, porém convincente. Quem se importa? O real é tão imaginário que o falso se torna verdadeiro.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjuuyJ681Bi06TtBcgi81ryFyo2ZBkvqh3fs4CqgDzYZ8uOBbnCq0qCaPyMCBkbtCMBuZBMtXUflXFneH562hrDxHmLI6s7VbWuYiovtFy6ERvGl53e2F3EKF89fuLz7V0uVItKFcv1SpT-n9KVDVR-ZgJYMCRwYj5L1lV9I-Yqt3McomAQ4gzuEMdStyc/s320/maxresdefault.jpg


        Ele não travou o despertador. Ficou olhando para o teto, contemplando os desenhos que a luz do sol produzia, atravessando as venezianas de madeira. Sempre tinha sido apaixonado por Doris Day, pela sua voz límpida, podia entender cada palavra que ela dizia. Onde estará Doris, quantos anos terá? Durante décadas fez o papel de virgem e, mesmo sabendo que era mentira, todos acreditavam. Porque a gente quer acreditar, a maior mentira torna-se verdade.

        Remoía pensamentos incompletos e superficiais porque era um cinéfilo inveterado. Tinha começado criança, comprando balas Fruna, que traziam figurinhas de artistas, depois colecionara Cinelândia e Filmelândia, passara aos Cahiers du Cinéma, Sight and Sound, Film Review. Ah, a boa fase dos Cahiers com suas capas amarelas, falando de Godard, Truffaut, Chabrol, Doniol Valcroze, Demy, Malle, Belmondo, Trintignant, Moreau, Albicocco, Resnais, Brocca, Delphine Seyrig, Varda, Anna Karina, Jean Seberg, Marie Laforêt, ah, os olhos de ouro da Laforêt. Pensava intensamente para fugir de sua tragédia: saber que era segunda-feira.

        As segundas-feiras existiam a atemorizá-lo, deixando-o tenso, com suores e calafrios, dores nos músculos, visão embaçada e uma nevralgia que paralisava o lado direito do rosto. Ainda na cama sentia tonturas, cãibras, rolava insone. Os sintomas se iniciavam no domingo à noite, ao ouvir a música do Fantástico, subindo das televisões de todos os apartamentos, ou quando Silvio Santos passava a gritar: Quem quer dinheiro? Significava o fim do final da semana. E o início da dolorosa peregrinação noturna ao encontro da segunda-feira.

        Quando teve os primeiros sintomas, a família ficou alarmada. Como não conseguiu nenhum médico acordado às sete da manhã, foi ao pronto-socorro, mas a fila era tão grande que, ao ser atendido, três horas mais tarde, sentia-se melhor. O médico (Ou teria sido um enfermeiro?) examinou-o apressado, receitou analgésicos e indicou a farmácia: Compre nessa! Quando o dia terminou, ele passava bem e creditou ao analgésico. Na próxima semana, os mesmos sintomas. Assim sucessivamente, até que a mulher intuiu: "Isso é coisa da segunda-feira! Você precisa é de um psicólogo". O cunhado foi taxativo: "Preguiça, nada mais!".

        Injustiça, ele era capaz de trabalhar no sábado, domingo, nos feriados, a noite inteira, se preciso. Todavia, a segunda-feira era fatal. No domingo, quando entravam os letreiros dos últimos programas de televisão, ele se via dominado pela inquietação. O psicólogo, porque afinal, para satisfazer a mulher, consultara um, recomendara: "Pense em outras coisas. Esqueça o dia, faça um grande jantar, vá ao cinema na sessão das dez, apanhe um filme longo na locadora". Tinha aconselhado: Cleópatra, O chefão, My fair lady, Lawrence da Arábia, Dr. Jivago, Era uma vez na América, Berlin Alexander Platz (com catorze horas de duração, poderia ser assistido em três domingos, quatro horas e meia por domingo), A lista de Schindler, Titanic, A noviça rebelde, Napoleão, E o vento levou..., Assim caminha a humanidade.

        Não adiantava. Quando ele percebia que o filme tinha passado da metade e o domingo estava terminando, a ansiedade o dominava, a febre recomeçava insinuante, ele acabava desligando o vídeo. Um amigo recomendou:

        -- Apanhe sua mulher. Vá para um motel. Passe a noite na farra, vai cair de cansado, esquecer o medo.

        -- A minha mulher num motel?

        -- Por que não?

        -- E se alguém nos vê entrando? O que vai pensar? Que ela é puta? Minha amante?

        -- Você, com esses problemas? Está mal, muito mal, mesmo! Você? Que foi o que bem sei? Convide tua mulher. Vai se surpreender. Ela pode te revelar coisas surpreendentes. Motéis viram a cabeça das mulheres sérias. Tua mulher é séria, não é?

        -- Claro.

        -- Não gostaria que ela, por uns momentos, não fosse?

        Não se pode dizer que ele não tentou reagir. Porém, no domingo, mal o lanche da noite começava, ele olhava para o relógio. Oito horas, daqui a quatro será segunda-feira. Seus olhos se enchiam de lágrimas, o coração apertava, a comida perdia o gosto. A mulher tentara embriagá-lo, queria que ele tomasse tranquilizantes. Ele recusava, alegando que precisava se enfrentar de cara limpa. Foi se enchendo de um ódio cada vez maior pela segunda-feira, desenvolveu alergias, acordava com inchaços nas juntas, nariz escorrendo, olhos empapuçados. Os dentes doíam, vinha uma tosse seca e persistente que terminava somente na terça-feira.

        Cada vez, um sintoma. Comparado ao que ganhava, gastava uma fortuna em médicos. Os convênios recusavam pagar, alegavam que eram doenças congênitas. No emprego, deram uma alternativa. Ele não trabalharia na segunda-feira, faria plantão no final de semana. No entanto, no dia do plantão, ele tomava consciência de que aquele dia estava substituindo a segunda-feira. Correspondia a uma. Foi levado a centros espíritas, terreiros de macumba, tarólogos, astrólogos, médicos ortomoleculares, cultos carismáticos, invocadores de anjos da guarda, jogadores de búzios. Nenhum efeito.

        Um médico não-ortodoxo, depois de pedir I. I I I exames de sangue, comunicou que, segundo revistas científicas tailandesas, ele era portador do MondayMonday, vírus raro, e que não havia ainda medicamentos ou vacinas. As pesquisas eram recentes. O vírus vinha se espalhando no planeta globalizado. O que posso fazer? Ele indagava ansioso, irritado com aquele sofrimento semanal. Imaginou como as mulheres, todos os meses, suportavam as regras, a tensão pré-menstrual, as dores das cólicas. Santas mulheres, reverenciou.

        Uma tarde, pensou com limpidez: a causa existe, está diagnosticada. A solução é acabar com a segunda-feira. Eliminá-la do calendário. Somente assim o mundo será salvo dessa epidemia que chega com força mil vezes superior à da gripe espanhola, a peste negra, a aids, a paixão pelo esoterismo, o culto da auto-ajuda. A princípio, foi apenas uma ideia lançada pelo dono da padaria da esquina, sempre dado a palpites: "Se a segunda-feira lhe faz mal, fuja dela, acabe com ela, pois". Havia um tom de blague. No entanto, nosso homem tinha perdido a capacidade de perceber brincadeiras. Acabar com a segunda-feira! É isso! De uma vez por todas. Mas como? Quem pode mudar esse estado de coisas? É uma convenção tão arraigada no mundo. O dia maldito existe por toda a parte, todos os países, até nos conventos, nas prisões, nos pólos norte e sul, no meio do deserto, entre os esquimós. Existirá entre os índios caiapós? Monday, montag, lundi, lunedi, lunes. O dia desgraçado foi celebrado em uma canção dos Beatles.

        Em uma segunda-feira de março, nosso homem foi tomado por calafrios intensos e pediu cobertas. Trouxeram edredons e mantas. Ele batia os dentes, um pivô soltou-se, suava, percebia o corpo esfriando, esquentando. Depois, adormeceu, tranquilo. Ao acordar, a mulher velava à cabeceira, inquieta, sem saber se chamava o médico. Ele levantou-se, num só movimento, como um acrobata que acaba de realizar um exercício e vai agradecer ao público. Comunicou:

        -- De nada adianta eliminar sintomas, se a origem da moléstia persiste. Portanto, meu caso é fácil. Minha doença é a segunda-feira. Cancelando-a, tudo estará resolvido.

        -- Parece coisa de louco.

        -- Acha?

        -- A falta de sono e o cansaço te deixam estressado. E assim, desde que nos casamos. Pensou? Se você elimina a segunda-feira, a terça se transforma em segunda, é o segundo dia da semana. E o domingo será o primeiro.

        -- Está certo.

        -- O domingo não pode ser o primeiro! Nunca!

        -- Quem disse?

        -- Está na Bíblia, o Senhor descansou no sétimo dia. O domingo.

        -- A segunda não é o primeiro porque se chama segunda-feira. Domingo é o primeiro dia.

        -- Quer me confundir?

        -- Se o domingo é o sétimo e em seguida vem a segunda-feira, onde está o primeiro dia? O primeiro não existe! Alguém, em algum momento, eliminou o primeiro dia. Tenho de pesquisar. Se o primeiro dia foi eliminado, podemos cancelar também o segundo.

        -- Não me saia por aí com bobagens. Te conheço, não é a primeira vez que se fixa em uma besteira!

        -- Não começa... Você é inteligente, pense! Se não existe o primeiro dia, falta um dia na semana. Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo. E este é o último, onde ficou o primeiro?

        -- E se quando a semana foi criada, o primeiro não existia e o segundo era primeiro? As palavras podem ter variado de significado em séculos.

        -- E quem conhece a história da semana? Quando nasceu, quem teve a ideia, quem montou a ordem dos dias? Quem garante que não tinha oito dias em vez de sete?

        A mulher era pessoa razoável, ex-publicitária que tinha abandonado a carreira quando percebeu que odiava os produtos para os quais tinha de criar campanhas. Começara na tarde em que redigia uma frase para despertar o apetite das pessoas com um suculento molho de tomate. Seus dedos incharam quando digitava a frase e quanto mais elogiava o horrendo molho em lata, mais a mão engrossava, a ponto de não distinguir os dedos. Deu um basta, escreveu com tipos enormes: O molho é uma merda. Tirou uma cópia, enviou ao diretor de criação, apanhou a bolsa e se foi. Ao deixar o edifício da agência, a mão tinha voltado ao normal.

        -- Vamos admitir! Você está certo! Baseado em que se pode eliminar a segunda-feira?

        -- No ódio que todos têm dela. Nas alergias que provoca. Nas neuroses, traumas, paranoias. Metade da violência e da ansiedade do país acabaria com o fim das segundas-feiras.

        -- E os transtornos? A segunda-feira é o reinicio, o dia em que tudo se abre, bancos e repartições e supermercados funcionam, a cidade se normaliza. É quando as pessoas se organizam. Dependesse de mim, eu acabaria com o final da noite de domingo.

        -- Sabe por quê? É nela que a ansiedade da segunda-feira se instala.

        Ela o conhecia há dezessete anos. Sabia que a ideia não seria abandonada. Ele iria até o fim. Perdera dez empregos por causa de coisas assim, metia-se em situações esdrúxulas. Era uma palavra esquisita essa, tinha usado uma vez em uma campanha e o cliente ficara revoltado.

        -- Não me venha com essa! Falei por falar. A noite de domingo é um pé no saco!

        -- Estou esclerosado? Pior do que pensava? Além do que sofro, tenho de passar por mais essa? A incompreensão em minha casa?

        -- Quero apenas evitar dissabores! Chega os problemas que você vem encontrando.

        Ela adorava a palavra dissabores. Agora, parecia mais preocupada. Eliminar a segunda-feira é uma ideia que passa somente pela cabeça de um desequilibrado.

        -- Hoje não vou trabalhar. Vou procurar em meus livros se existe alguma possibilidade de eliminar a segunda-feira.

        -- Livros? Você não tem nenhum livro sobre o assunto!

        --Verdade... Vou pesquisar em alguma parte.

        Passou o dia ligando para advogados especialistas em códigos, queria saber se existia uma lei instituindo a segunda-feira. Se houvesse a lei, então o caminho seria longo. Não o atendiam, queriam marcar hora, entrevista, as consultas deviam ser pagas. Por acaso, um funcionário afirmou que a lei sobre a segunda-feira existia, era preciso pagar as buscas.

        Existia! Então, teria de procurar um deputado, explicar o caso, convencê-lo a aderir à causa. Há coisas que convencem políticos: receber um bom suborno, ganhar votos com suas leis, obter publicidade favorável ou aprovar algo que traga benefícios financeiros para uma categoria, recebendo dos lobbies polpudas quantias ou promessas de financiamento de campanhas. Alegrou-se. Esta seria uma causa extremamente popular. Todos votariam em um homem propondo a extinção da segunda-feira.

        Ele passou o dia excitado, procurando localizar um deputado federal na cidade. Nas sedes dos partidos asseguravam: "Vai ser difícil, todos estão em Brasília, trabalham muito, começam cedo, vão até altas horas da noite. Só se o senhor for a Brasília!". Percebeu, todavia, que não o desestimulavam, ao contrário, forneciam até o telefone dos parlamentares na capital. Desilusão! Números ocupados permanentemente. Ou eram atendidos por uma secretária que passava para a Assessora Um, que religava para o Assessor Dois, que transferia para o Assessor Três. Um dia, por engano, ligaram para a Amante principal. Educado, discreto, ele pediu desculpas. E rodou até bater na autoridade máxima, o Chefe de gabinete. Pessoa apressada, ríspida, comandante de um reino.

        E ele respondeu a mesma coisa: "Desculpe-me senhor o Assessor Para os Dias do Ano que é quem movimenta o calendário de sua excelência não está na sala foi ao plenário assessorar nosso líder em importantes debates que ocorrem agora. Ligue na próxima segunda-feira uma vez que assuntos sobre a segunda-feira só podem ser tratados às segundas-feiras. De qualquer modo vejo aqui que o Assessor não estará na próxima nem na seguinte nem consequente uma vez que acompanhará sua excelência em viagens de estudos para a comissão em que atua. Mas anotei seu nome seu telefone seu endereço e veja que coincidência o senhor mora na mesma rua em que nasceu a mãe do nobre deputado e ele tem carinho especial por essa rua e pelas pessoas que nela habitam certamente fará tudo o que estiver ao seu alcance daremos retorno muito obrigado e não se esqueça de que as eleições de outubro estão se aproximando e seu candidato só pode ser o nosso líder enviaremos folhetos sobre a sua atuação".

        Ele ficava sem fôlego ao ouvir. Chefes de gabinete falavam sem vírgulas, apenas com um e outro ponto para respirar. Percebeu que a caminhada seria exaustiva. No entanto, sentiu-se revigorado. Agora, tinha um projeto na vida. Uma utopia a perseguir. A sua missão impossível. Isso mantém um homem vivo. Chega de alergias, tremores, estresse.

        Começou a escrever cartas, desejando saber se havia um lugar onde a segunda-feira não existia. Uma carta levava a outra. Uma pessoa indicava outra. Recorreu à internet. As informações se sucediam, vindas de professores de geografia, história, astrólogos, astrônomos, engenheiros, químicos, semanólogos, viajantes. Um astronauta americano, gentil como tem de ser um homem que esteve na Lua, respondeu amavelmente: "Na Lua não há segunda-feira, aliás não há semana, nem mês ou ano, o tempo ali não é medido, nem dividido, ele se escoa infinito". Se nos outros planetas, satélites, estrelas não há segundas-feiras, o meu destino é mergulhar na galáxia, ele ponderou com a mulher e ela o olhou ressabiada. Um redator de guias turísticos acenou com um principado indiano, perdido entre montanhas de pedra. O problema é que quando os turistas chegam a esse lugar, levam costumes tão arraigados que ao não saber se o dia é sábado, domingo, ou segunda-feira, começam a passar mal, ficar ansiosos. Tiveram de criar um calendário falso, usado apenas para fins turísticos, não reconhecido ou obedecido pelos nativos. A semana está incrustada nos civilizados como uma pedra preciosa em um anel.

        Consultaram todos os especialistas, inclusive Saroyan, o armênio que vivia num trapézio volante e tinha na cabeça todo o calendário gregoriano. O diagnóstico: "Nenhuma possibilidade de cura". Contataram um soteropolitano atabalhoado cujo ofício era redigir calendários perpétuos para revistas e jornais. O homem mantinha urna coluna semanal, respondendo a indagações do tipo: que dia da semana foi 31 de julho de 1911. Ou que dia da semana foi 14 de março de 1948. Também não ajudou. Nos dezessete mil livros que ele possuía não havia registros de homens que odiavam as segundas-feiras. Surgiram casos de agressividade contra o domingo, os feriados, os dias santos. Descartados, uma vez que se tratava de padrões mesquinhos, de executivos viciados em trabalho que se desesperavam com a semana tão curta (adoravam fazer dinheiro para as instituições em que trabalhavam) e fiéis de religiões que não acreditavam na sacralidade de certas datas.

        Ele estava determinado. Haveria de acabar com a segunda-feira, a qualquer custo. Em todas as pessoas com quem conversou percebeu enorme entusiasmo. Sabia que haveria resistência da indústria, do comércio, dos bancos e dos coletores de impostos. Dentro em breve estariam terminadas as segundas-feiras, a ansiedade dos finais de domingo, a angústia das longas e silenciosas tardes repletas de melancolia.

        Seu plano era perfeito. Do domingo se saltaria para terça-feira, ficando a segunda sem nome. Esse dia seria uma câmara de descompressão. Nele seria restabelecido o alívio, as pessoas ganhariam ânimo para trabalhar, começariam a semana bem-preparadas, cheias de força física e estímulo para produzir mais. Uma pessoa alegre, de bem com a vida, rende, os patrões iriam adorar. Em seguida, surgiu outra ideia. Com o tempo, se faria campanha para extinguir a sexta-feira. Outra câmara, preparando as pessoas para o repouso do fim de semana. Não se descansa trazendo ainda a pressão dos compromissos. Uma semana composta apenas de terça, quarta e quinta-feira era a utopia do mundo. Poderia ser um movimento universal.

        Saía todas as manhãs com um manifesto redigido em papel almaço pautado, percorria as ruas colhendo assinaturas. Via como a segunda-feira era odiada, as pessoas assinavam com prazer, cumprimentando-o. "Finalmente se faz alguma coisa para abolir esse dia maldito. É disso que precisamos, de iniciativas particulares. Pode-se até fundar uma organização não-governamental." Também era ridicularizado, enxotado, ofendido, chegaram a cuspir nele, empurraram-no contra as paredes, enfiaram a sua cabeça em um bueiro cheio de coisas podres. Ele não desistia, estava apaixonado pela causa. As folhas tomavam duas estantes, a mulher olhava para elas e sacudia a cabeça, porém não tentava impedir que ele fosse até o fim, mostrava-se feliz. A cada dia ele trazia histórias engraçadas ou estranhas, os dois analisavam o comportamento das pessoas. Ela só não acreditou quando ele contou a respeito de um homem que tinha perdido a mão na caixa do correio, estava na fila dos Encontrados e não parecia desesperado, apenas tentava recuperar a mão. O entusiasmo dele era crescente. Depois do Brasil, buscaria assinaturas no mundo inteiro. Era preciso reunir as pessoas, debater o assunto, montar uma organização. Marcou o dia, ela redigiu o folheto, sabia montar frases insinuantes, convencer as pessoas a consumir.

        Imprimiram vinte mil volantes. Perto da casa havia um cinema recém-fechado, eles conheciam o proprietário, era também dono de uma tecelagem cliente da agência em que ela trabalhara. O homem concordou em alugar por uma noite, desde que eles pagassem as despesas de luz e varressem a sala, devia haver uma boa poeira amontoada. Seriam responsabilizados pelo vandalismo, caso ocorresse, nunca se sabe com multidões. Assim, os dois começaram a distribuir os volantes. E se alternavam, um dia, ela saía com o manifesto, recolhendo assinaturas e ele com folhetos. Depois, invertiam. Esperavam umas mil pessoas na primeira noite, o entusiasmo era grande. "As pessoas andam vazias", ele comentava, "precisam de alguma motivação, um sonho, um sentido para a vida."

        Ao apanhar o elevador, certa manhã, cheio de vigor, ouviu a vizinha conversando com o médico. Era médico, estava todo de branco: "Pois é, doutor! Veja só se pode ser. Meu marido não suporta a terça-feira, fica mal, muito mal, perde as forças, nem se levanta da cama. Veja só! O corpo inteiro dói, tem cãibras, as juntas incham. Ele odeia as terças-feiras. O que vamos fazer? Estamos ficando todos loucos, ele até fala em eliminar a terça-feira, está com os planos prontos. Veja só se pode ser!".

Ignácio de Loyola Brandão.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 96-101.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a principal aflição do protagonista do conto?

      A principal aflição do protagonista é o seu ódio incontrolável e físico pelas segundas-feiras. Esse ódio se manifesta com sintomas como suores, calafrios, dores musculares, visão embaçada, nevralgia e até inchaços e tosse seca.

02 – Como a esposa do protagonista reage inicialmente aos seus sintomas e o que ela sugere?

      A esposa do protagonista inicialmente fica alarmada com os sintomas, mas, com o tempo, ela intui que "isso é coisa da segunda-feira" e sugere que ele procure um psicólogo.

03 – Quais foram algumas das tentativas do protagonista para lidar com seu ódio pela segunda-feira antes de sua "solução final"?

      Ele tentou seguir conselhos do psicólogo (pensar em outras coisas, assistir a filmes longos), sugestões de amigos (ir a motéis com a esposa), e foi a diversos especialistas e locais como centros espíritas, terreiros de macumba, tarólogos, astrólogos, médicos ortomoleculares e cultos carismáticos. Também tentou alterar seu horário de trabalho para evitar a segunda-feira.

04 – O que o médico não-ortodoxo diagnostica para o protagonista, segundo revistas científicas tailandesas?

      O médico não-ortodoxo diagnostica que o protagonista é portador do vírus MondayMonday, um vírus raro que se espalha no planeta globalizado e para o qual ainda não há medicamentos ou vacinas.

05 – Qual é a "solução" que o protagonista idealiza para acabar com seu sofrimento, e qual é a primeira reação de sua esposa a essa ideia?

      A "solução" que ele idealiza é acabar com a segunda-feira, eliminando-a do calendário. A primeira reação de sua esposa é considerá-la "coisa de louco", argumentando que, se a segunda-feira fosse eliminada, a terça se tornaria a segunda e o domingo o primeiro, o que seria uma confusão.

06 – Como o protagonista tenta justificar a ideia de eliminar a segunda-feira para sua esposa, além de sua própria doença?

      Ele argumenta que a segunda-feira é odiada por todos, causa alergias, neuroses, traumas e paranoias, e que sua eliminação acabaria com metade da violência e da ansiedade do país.

07 – O que a ex-publicitária, esposa do protagonista, fez quando percebeu que odiava os produtos para os quais criava campanhas?

      Ela "deu um basta", escreveu com tipos enormes a frase "O molho é uma merda" para um diretor de criação e abandonou a carreira, percebendo que seus dedos incharam ao digitar a frase.

08 – O que o protagonista faz para começar a concretizar seu plano de eliminar a segunda-feira?

      Ele começa a escrever um manifesto em papel almaço pautado e sai pelas ruas coletando assinaturas das pessoas, percebendo o entusiasmo de muitos com a ideia.

09 – Além do Brasil, para onde o protagonista planeja expandir sua campanha para abolir a segunda-feira?

      Ele planeja expandir sua campanha para o mundo inteiro, buscando assinaturas em outros países e organizando um movimento universal.

10 – Qual é a ironia no final do conto, em relação ao objetivo do protagonista?

      A ironia no final do conto é que, após toda a determinação e esforço do protagonista para eliminar a segunda-feira, ele ouve a vizinha no elevador reclamando com o médico sobre seu marido, que agora odiava as terças-feiras e falava em eliminá-las. Isso sugere que a aversão a um dia específico da semana pode ser um ciclo que se repete, independentemente da eliminação de um dia.

 

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