Artigo de opinião: Ser professora é o melhor trabalho para uma mulher
Rosa Maria Antunes de Barros
Esta história – esta reflexão – é
dedicada a todos os professores que acreditam que da sua competência
profissional depende a qualidade da educação escolar
"O melhor trabalho para uma mulher
é ser professora: fica só meio período na escola, ganha seu dinheirinho e ainda
pode cuidar da casa e dos filhos." Isso era o que Sônia, quando criança,
ouvia nas conversas da sua mãe com suas tias que também eram professoras. Ela
mesma não sabia o que queria ser, não gostava de estudar, mas de vez em quando
brincava de escolinha no quarto dos fundos da sua casa, onde a porta verde
escura servia de lousa.

O tempo passou e o desinteresse pela
escola e pelos estudos continuava. Preferia fazer qualquer trabalho a ficar
envolvida com livros e cadernos. Fazia muitas artimanhas para esconder o seu
mau desempenho, mas era sempre descoberta. Quando estava fazendo pela segunda
vez a sexta série, sua mãe teve uma conversa com ela e disse que iria tirá-la
da escola.
Não foi muito fácil esse momento e
Sônia começou a pensar como seria sua vida sem estudo e sem a relação com os
amigos e primos. Achou que estava diante de uma mudança radical e resolveu,
então, se dedicar um pouco mais como aluna.
Acabou por continuar os estudos e
tornou-se professora na mesma escola onde sempre estudou. Sentia-se aliviada,
pois finalmente conseguiu um diploma.
Começou a trabalhar como professora
numa escola pública e depois de alguns anos teve uma primeira experiência como
professora de uma classe de 1ª série. Não conseguia alfabetizar todos os seus
alunos e nas reuniões justificava-se dizendo que o problema era o nível
socioeconômico das crianças: pobres, largadas, com pais desinteressados, que
conviviam com a violência e que iam à escola para comer... Sabia que poderia
ser bom incentivar seus alunos a irem à biblioteca da escola, um dos poucos
recursos de que dispunha, mas percebia que eles não se interessavam pela
leitura, porque só folheavam os livros e logo queriam mudar para outro. Essas
ideias que justificavam o desinteresse e o não-aprendizado das crianças eram
comuns entre muitos de seus colegas.
A escola de Sônia ficava na periferia
de um centro urbano e era uma das poucas da região que recebiam estagiários do
curso normal. Todo ano, ela recebia uma em sua sala, e contava as dificuldades
que enfrentava para ensinar todos os seus alunos. Dizia que não sabia o que
fazer, porque se tratava de um problema social. Contava que não tinha interesse
pelos cursos oferecidos pela Secretaria de Educação, afinal, a cada nova
administração a moda mudava e por isso fazer cursos era perda de tempo. Além do
mais, alfabetizou-se pela cartilha e mesmo assim se tornou professora, como
tanta gente.
Comentava com todas as colegas suas ideias
a respeito da formação de professores, inclusive com Eliane, uma estagiária,
que afirmava também concordar com ela e dizia ter escolhido ser professora
porque, apesar do salário ser igual ao de um caixa de supermercado, na escola
não teria de trabalhar muito, apenas meio período, teria férias duas vezes por
ano e as atividades na sala de aula eram muito simples: mandar as crianças
fazer as atividades do livro didático, depois corrigi-las e tirar as dúvidas
daquelas com mais dificuldades.
O tempo passou e Sônia se casou. Teve
dois filhos que frequentaram uma escola de educação infantil que não fazia
nenhum investimento na alfabetização porque o seu objetivo era recrear e
sociabilizar e não preparar as crianças para a 1ª série. Isso não a preocupava
porque seu filho mais velho havia se alfabetizado sozinho e com certeza teria
sucesso no Ensino Fundamental.
Dois anos depois, seu segundo filho
ingressou na Ia série, mas infelizmente não estava alfabetizado. Sônia, agora,
trabalhava em duas escolas e não tinha tempo para ajudar seus filhos nas
tarefas de casa. Teve oportunidade de acompanhar o primeiro dia de aula e ficou
surpresa quando descobriu que a professora era justamente Eliane.
O semestre foi passando e Sônia foi
ficando incomodada ao ver que seu filho não aprendia a ler e escrever. Fez
várias reuniões com a professora e não conseguia entender como seu filho, um
menino com uma família estruturada, bem alimentado, protegido da violência, não
tinha sucesso. Foi sugerido que procurasse um psicólogo e Sônia resolveu
consultar o melhor do seu seguro-saúde, que, segundo soube, vivia se
atualizando e participando de cursos e congressos. Feito o diagnóstico, nada
foi encontrado a não ser a confirmação do desinteresse pelas atividades
escolares. Sônia comentou com Eliane e ela disse que nada podia fazer, afinal
não iria mudar a sua forma de trabalhar de tantos anos por causa do filho dela.
Os meses foram se passando, e, em agosto, Eliane precisou pedir uma licença
médica prolongada. Veio então uma professora substituta, Fátima.
Sônia foi imediatamente procurá-la para
contar o problema do seu filho e Fátima ouviu-a atenciosamente. Outras mães,
insatisfeitas porque as crianças não aprendiam a ler e escrever, também foram
conversar com ela. A professora resolveu fazer uma reunião de pais e contar
como era o seu trabalho, em que pressupostos teóricos ele estava apoiado,
porque iriam sentir que as mudanças seriam grandes dali para a frente. Sônia,
assim como muitos pais, ficou preocupada com as mudanças, mas não tinha opção a
não ser concordar. As mudanças eram mesmo muito grandes e se via que ela tinha
uma forma muito diferente de tratar os conteúdos escolares, especialmente a
linguagem escrita.
O final do ano chegou e muitas crianças
avançaram, inclusive o filho de Sônia, que aprendeu a ler e escrever.
Esta história é muito mais comum do que
podemos imaginar e nos convida a algumas reflexões sobre o que significa ser
professor. Precisamos ter claro, mas muito claro, que se trata de uma profissão
e, como tal, requer profissionais que constantemente estejam estudando e se
atualizando. A realidade nos mostra que não podemos nos dar ao luxo de dizer
que não queremos aprender ou nos atualizar, pois isso é algo que está posto
para qualquer profissão, inclusive a dos professores. Certamente, acharíamos
absurdo ouvir de um médico que não quer conhecer novas teorias ou novas
técnicas de cirurgia... Por que um professor fica tão incomodado quando há
novas teorias e conhecimentos didáticos na área de educação? Hoje, qualquer
profissional – engenheiro, agricultor, costureira, dentista, cozinheira... – sabe
que precisa atualizar-se.
E por que estudar é tão importante para
nós, professores? Porque não é aceitável responsabilizar as crianças pela
impossibilidade de a escola ensiná-las. Sabemos que há situações muito difíceis
a serem enfrentadas e que não é produtivo gastar tempo e energia procurando
culpados. Não podemos atribuir a responsabilidade do fracasso escolar ao nível
socioeconômico dos alunos, mas também sabemos que é muito mais trabalhoso
ensinar crianças de ambientes não-letrados.
Criticamos os pais por não se envolverem
com as atividades escolares de seus filhos, esquecendo-nos que eles são fruto
de uma escola que em geral pouco contribuiu com sua formação, e que muitos nem
sequer passaram pelos bancos escolares. E se olharmos para nós, o que diríamos
do nosso desinteresse pela leitura e pela escrita, que é ferramenta fundamental
da nossa profissão?
Precisamos assumir a responsabilidade
da nossa formação inadequada para não continuar perpetuando esta situação. Ser
professor não é uma tarefa fácil, como sempre quiseram que acreditássemos, e só
com muita competência e empenho de todos será possível reverter esta situação.
Ser Eliane, Sônia ou Fátima é uma
questão de opção.
Rosa Maria Antunes de
Barros.
Fonte: Letra e Vida.
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos –
Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 72-74.
Entendendo o artigo:
01 – Qual era a percepção
inicial de Sônia e de sua família sobre a profissão de professora, e como essa
percepção influenciou suas escolhas?
A
percepção inicial de Sônia e de sua família (mãe e tias) era que ser professora
era o "melhor trabalho para uma mulher" porque oferecia meio período
na escola, um "dinheirinho" e tempo para cuidar da casa e dos filhos.
Essa visão simplificada e idealizada da profissão, que Sônia ouvia desde
criança, a influenciou a seguir carreira na educação, mesmo sem ter interesse
pelos estudos inicialmente e buscando apenas um diploma.
02 – Como a experiência de
Sônia como professora de 1ª série com alunos em dificuldade de alfabetização
começou a desafiar suas crenças?
A experiência de
Sônia com alunos da 1ª série que não conseguiam ser alfabetizados começou a
desafiar suas crenças ao colocá-la diante de uma realidade complexa. Ela
justificava o não-aprendizado pelo nível socioeconômico das crianças, pela
falta de interesse dos pais e pela violência, atribuindo o problema a fatores
externos e sociais, e não à sua própria prática pedagógica. Essa dificuldade a
fez questionar suas abordagens, embora inicialmente não a levasse a buscar
soluções em formação continuada.
03 – De que forma a atitude de
Eliane, a estagiária, reflete uma mentalidade comum entre alguns profissionais
da educação?
A atitude de
Eliane reflete uma mentalidade comum entre alguns profissionais da educação que
veem a profissão como um "trabalho simples", com poucas exigências e
muitas vantagens (meio período, férias, atividades de sala de aula supostamente
fáceis). Ela não demonstrava interesse em aprofundar seus conhecimentos ou
inovar, contentando-se em apenas "mandar as crianças fazer as atividades
do livro didático", o que indica uma visão limitada e descompromissada com
a complexidade da alfabetização e do aprendizado.
04 – Qual foi o ponto de
virada para Sônia em relação à sua percepção da profissão de professora, e o
que a levou a essa mudança?
O ponto de virada para Sônia ocorreu
quando seu próprio filho, com uma família estruturada e protegida da violência,
não conseguiu ser alfabetizado na 1ª série pela professora Eliane. Essa
experiência pessoal a fez confrontar a ineficácia das práticas pedagógicas que
ela mesma utilizava e defendia. A dificuldade do filho, que não se encaixava
nas justificativas anteriores sobre "nível socioeconômico", a
impulsionou a buscar ajuda e a refletir sobre a importância da competência
profissional do professor.
05 – Como a chegada da
professora substituta, Fátima, impactou a visão de Sônia sobre o processo de
ensino-aprendizagem e a responsabilidade do professor?
A chegada da professora
substituta, Fátima, impactou profundamente a visão de Sônia. Fátima demonstrou
uma abordagem profissional, baseada em pressupostos teóricos e disposta a
implementar mudanças significativas na forma de tratar os conteúdos,
especialmente a linguagem escrita. A capacidade de Fátima em alfabetizar o
filho de Sônia e outras crianças insatisfeitas, mesmo em um curto período,
evidenciou para Sônia que a competência e o engajamento do professor são
fundamentais e que a responsabilidade pelo aprendizado não pode ser atribuída
apenas aos alunos ou ao seu contexto social.
06 – Segundo o artigo, por que
a atualização e o estudo são tão cruciais para os professores, e qual analogia
é utilizada para reforçar essa ideia?
Segundo o artigo,
a atualização e o estudo são cruciais para os professores porque a profissão,
como qualquer outra, requer profissionais que se constantemente se desenvolvam
e se atualizem. Não é aceitável que os professores responsabilizem as crianças
pela impossibilidade da escola ensiná-las. A analogia utilizada para reforçar
essa ideia é a de um médico que se recusasse a conhecer novas teorias ou
técnicas de cirurgia, algo que seria considerado absurdo. Da mesma forma, os
professores não deveriam se sentir "incomodados" com novas teorias e
conhecimentos didáticos na área da educação.
07 – Qual é a principal
mensagem do artigo ao afirmar que "Ser Eliane, Sônia ou Fátima é uma
questão de opção"?
A principal
mensagem do artigo ao afirmar que "Ser Eliane, Sônia ou Fátima é uma
questão de opção" é que a postura profissional do professor é uma escolha
individual. Eliane representa a postura descompromissada e acomodada; Sônia, a
professora que, embora inicialmente desinteressada e justificadora, passa por
uma transformação a partir de uma experiência pessoal; e Fátima, a profissional
competente, engajada e comprometida com a constante busca por conhecimento e
com a responsabilidade de promover o aprendizado de todos os alunos. A frase
destaca que o professor tem a autonomia e a responsabilidade de decidir qual
caminho seguir em sua carreira, impactando diretamente a qualidade da educação.
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