Conto: O ESCRINIO
Manoel de Barros
Um poeta municipal já me chamou a
cidade de escrínio.
Que aquele tempo encabulava muito
porque eu não sabia o seu significado direito.
Soava como um escárnio.
Hoje eu sei que escrínio é coisa
relacionada com joia, cofre de bugigangas…

Por aí assim.
Porém a cidade era em cima de uma pedra
branca enorme.
E o rio passando lá embaixo com
piranhas camalotes pescadores e lanchas carregados de couros vacuns fedidos.
Primeira vinha na Rua do Porto:
sobrados remontados nas ladeiras, flamboyants, armazéns de secos e molhados
E mil turcos babaruches nas portas
comendo sementes de abóbora…
Depois, subindo a ladeira, vinha a
cidade propriamente dita, com a estátua de Antônio Maria Coelho, herói da Guerra
do Paraguai, cheia de besouros na orelha.
E mais o Cinema Excelsior onde levavam
um filme de Tom Mix 35 vezes por mês.
E tudo o mais.
Escrínio entretanto era a Negra Margarida.
Boa que nem mulher de santo casto:
Nhanhá mijava na rede porque brincou
com fogo de dia.
— Mijo De veia não desaparta nosso
amor, né Benzinho?
— Sim!
Um dia Nhanhá Gertrudes faz bolo de
arroz.
Negra Margarida socava pilão.
E eu nem sei o que faz mesmo.
Veio um risonho negro e disse sem
perder o riso:
— Você vai comigo, negra?
E levou Margarida enganchada no dedo
pra São Saruê.
Daí eu fiquei naquele casamento que
tinha noites de medo.
Nhanhá sonhava bobagens que eu fugi de
casa pra ser chalaneiro no Porto de Corumbá!
O mijo de Nhanhá sentiu, no pingar, um
vazio inédito e faz uma lagoinha boa no mosaico…
Desse tempo adquirir a mania de me
olhar no espelho das águas…
Um Draga
A gente não sabia se aquela draga tinha
nascido ali, não.
Porto, como um pé de árvore ou uma
duna.
— E que seria uma casa de peixes?
Meia dúzia de loucos e bêbados moravam
dentro dela, enraizados em suas ferragens.
Dos viventes da draga era um o meu
amigo Mário-pega-sapo.
Ele de noite se arrastava pela beira
das casas como um caranguejo trópego.
À procura de velocípedes.
Gostava de velozes.
Os bolsos do seu casaco andavam
estufados de jias.
Ele esfregava no rosto as suas
barriguinhas frias.
Geleia de sapos!
Só as crianças e as putas do jardim
entenderam a sua fala de furnas brenhentas.
Quando Mário morreu, um literato
oficial, em necrológio caprichado, chamou-o de Mário-Captura-Sapo!
Ai que dor!
Ao literato cujo fez-lhe nojo a forma
coloquial.
Queria captura em vez de pega para não
macular (sic) a língua nacional lá dele…
O literato cujo, se não engano, é hoje
senador pelo Estado. Se não é, merecia.
A vida tem suas descompensações.
Da velha draga
Abrigo de vagabundos e de bêbados,
restaram as Expressões: estar na draga, viver na draga por estar sem dinheiro, viver
na miséria
Que ora ofereço ao filólogo Aurélio
Buarque de Holanda
Para que você se registre em seus
léxicos
Pois que o povo já está registrado.
Manoel de Barros. Obra Completa. LeYa, 2011. p. 12.
Entendendo
o conto:
01
– Qual a relação entre o título do conto, "O Escrínio", e a
cidade descrita?
O título "O
Escrínio" refere-se a um cofre de joias ou bugigangas, estabelecendo uma
analogia com a cidade. A cidade é vista como um receptáculo de histórias,
personagens e elementos diversos, que juntos compõem a sua identidade. Assim
como um escrínio guarda objetos preciosos, a cidade guarda memórias e
experiências que a tornam única.
02
– Qual a importância da personagem Negra Margarida para a narrativa?
Negra Margarida
representa a força e a riqueza cultural da cidade. Sua história, marcada pela
partida para São Saruê, simboliza a transformação e a perda de elementos da
cultura local. A sua presença no conto evoca um tempo de costumes e tradições
que se perdem com o passar do tempo.
03
– Quem é Mário-pega-sapo e qual a sua relevância na história?
Mário-pega-sapo é
um personagem marginalizado que vive na draga, um espaço de exclusão social.
Sua figura excêntrica e sua linguagem peculiar contrastam com a norma culta,
representada pelo "literato oficial". A sua morte e a transformação
de seu nome para Mário-Captura-Sapo evidenciam a apropriação e a estigmatização
da cultura popular pela elite intelectual.
04
– Qual a crítica presente na passagem sobre o "literato oficial"?
A passagem sobre
o "literato oficial" critica a postura de certos intelectuais que
desprezam a cultura popular e a linguagem coloquial. A transformação do nome de
Mário-pega-sapo para Mário-Captura-Sapo revela um esforço de
"purificação" da linguagem, que desconsidera a riqueza e a
expressividade da cultura popular.
05
– O que representam as expressões "estar na draga" e "viver na
draga"?
As expressões
"estar na draga" e "viver na draga" representam a condição
de pobreza e marginalidade. A draga, espaço de moradia de personagens como
Mário-pega-sapo, torna-se um símbolo da exclusão social e da luta pela
sobrevivência.
06
– Qual a intencionalidade do autor ao dedicar as expressões ao filólogo Aurélio
Buarque de Holanda?
A dedicatória ao
filólogo Aurélio Buarque de Holanda, responsável por um dos mais importantes
dicionários da língua portuguesa, tem um tom irônico. Ao oferecer as expressões
populares para registro em seu léxico, o autor evidencia a importância da
cultura popular e da linguagem coloquial, que muitas vezes são negligenciadas
pela norma culta.
07
– Que elementos do conto podem ser relacionados com a poética de Manoel de
Barros?
Diversos
elementos do conto podem ser relacionados com a poética de Manoel de Barros,
como a linguagem coloquial, a mistura de realidade e fantasia, a presença de
personagens marginalizados, a reflexão sobre a linguagem e a cultura, e a
valorização da simplicidade e da sabedoria popular. O conto apresenta um olhar
sensível e poético sobre o mundo, revelando a beleza e a singularidade
presentes nas coisas mais simples e nos detalhes do cotidiano.
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