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segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

CONTO: O ESCRINIO - MANOEL DE BARROS - COM GABARITO

 Conto: O ESCRINIO

              Manoel de Barros

        Um poeta municipal já me chamou a cidade de escrínio.

        Que aquele tempo encabulava muito porque eu não sabia o seu significado direito.

        Soava como um escárnio.

        Hoje eu sei que escrínio é coisa relacionada com joia, cofre de bugigangas…

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgPJhQQz7vQbgSQAEFTN38CfDk4aqowqStWpS_WLHsR4PXo0WF3VDKKN7HzTqS5OJpAcRxfVk2N6GGtCE0fl9Ya4IDj5A0k6e-SVmeIcJ6S2oOOk0v07vGYiqN5zCJxEpynk8gVR9YdX_35M_Sv9GDzYyxSBWAv0DM0xe5oGJTuWwA-EHBNms7Iaq1959Q/s320/HOMEM.jpg


         Por aí assim.

     Porém a cidade era em cima de uma pedra branca enorme.

        E o rio passando lá embaixo com piranhas camalotes pescadores e lanchas carregados de couros vacuns fedidos.

        Primeira vinha na Rua do Porto: sobrados remontados nas ladeiras, flamboyants, armazéns de secos e molhados

        E mil turcos babaruches nas portas comendo sementes de abóbora…

        Depois, subindo a ladeira, vinha a cidade propriamente dita, com a estátua de Antônio Maria Coelho, herói da Guerra do Paraguai, cheia de besouros na orelha.

        E mais o Cinema Excelsior onde levavam um filme de Tom Mix 35 vezes por mês.

        E tudo o mais.

        Escrínio entretanto era a Negra Margarida.

        Boa que nem mulher de santo casto:

        Nhanhá mijava na rede porque brincou com fogo de dia.

        — Mijo De veia não desaparta nosso amor, né Benzinho?

        — Sim!

        Um dia Nhanhá Gertrudes faz bolo de arroz.

        Negra Margarida socava pilão.

        E eu nem sei o que faz mesmo.

        Veio um risonho negro e disse sem perder o riso:

        — Você vai comigo, negra?

        E levou Margarida enganchada no dedo pra São Saruê.

        Daí eu fiquei naquele casamento que tinha noites de medo.

        Nhanhá sonhava bobagens que eu fugi de casa pra ser chalaneiro no Porto de Corumbá!

        O mijo de Nhanhá sentiu, no pingar, um vazio inédito e faz uma lagoinha boa no mosaico…

        Desse tempo adquirir a mania de me olhar no espelho das águas…

        Um Draga

        A gente não sabia se aquela draga tinha nascido ali, não.

        Porto, como um pé de árvore ou uma duna.

        — E que seria uma casa de peixes?

        Meia dúzia de loucos e bêbados moravam dentro dela, enraizados em suas ferragens.

        Dos viventes da draga era um o meu amigo Mário-pega-sapo.

        Ele de noite se arrastava pela beira das casas como um caranguejo trópego.

        À procura de velocípedes.

        Gostava de velozes.

        Os bolsos do seu casaco andavam estufados de jias.

        Ele esfregava no rosto as suas barriguinhas frias.

        Geleia de sapos!

        Só as crianças e as putas do jardim entenderam a sua fala de furnas brenhentas.

        Quando Mário morreu, um literato oficial, em necrológio caprichado, chamou-o de Mário-Captura-Sapo!

        Ai que dor!

        Ao literato cujo fez-lhe nojo a forma coloquial.

        Queria captura em vez de pega para não macular (sic) a língua nacional lá dele…

        O literato cujo, se não engano, é hoje senador pelo Estado. Se não é, merecia.

        A vida tem suas descompensações.

        Da velha draga

        Abrigo de vagabundos e de bêbados, restaram as Expressões: estar na draga, viver na draga por estar sem dinheiro, viver na miséria

        Que ora ofereço ao filólogo Aurélio Buarque de Holanda

        Para que você se registre em seus léxicos

        Pois que o povo já está registrado.

Manoel de Barros. Obra Completa. LeYa, 2011. p. 12.

Entendendo o conto:

01 – Qual a relação entre o título do conto, "O Escrínio", e a cidade descrita?

      O título "O Escrínio" refere-se a um cofre de joias ou bugigangas, estabelecendo uma analogia com a cidade. A cidade é vista como um receptáculo de histórias, personagens e elementos diversos, que juntos compõem a sua identidade. Assim como um escrínio guarda objetos preciosos, a cidade guarda memórias e experiências que a tornam única.

02 – Qual a importância da personagem Negra Margarida para a narrativa?

      Negra Margarida representa a força e a riqueza cultural da cidade. Sua história, marcada pela partida para São Saruê, simboliza a transformação e a perda de elementos da cultura local. A sua presença no conto evoca um tempo de costumes e tradições que se perdem com o passar do tempo.

03 – Quem é Mário-pega-sapo e qual a sua relevância na história?

      Mário-pega-sapo é um personagem marginalizado que vive na draga, um espaço de exclusão social. Sua figura excêntrica e sua linguagem peculiar contrastam com a norma culta, representada pelo "literato oficial". A sua morte e a transformação de seu nome para Mário-Captura-Sapo evidenciam a apropriação e a estigmatização da cultura popular pela elite intelectual.

04 – Qual a crítica presente na passagem sobre o "literato oficial"?

      A passagem sobre o "literato oficial" critica a postura de certos intelectuais que desprezam a cultura popular e a linguagem coloquial. A transformação do nome de Mário-pega-sapo para Mário-Captura-Sapo revela um esforço de "purificação" da linguagem, que desconsidera a riqueza e a expressividade da cultura popular.

05 – O que representam as expressões "estar na draga" e "viver na draga"?

      As expressões "estar na draga" e "viver na draga" representam a condição de pobreza e marginalidade. A draga, espaço de moradia de personagens como Mário-pega-sapo, torna-se um símbolo da exclusão social e da luta pela sobrevivência.

06 – Qual a intencionalidade do autor ao dedicar as expressões ao filólogo Aurélio Buarque de Holanda?

      A dedicatória ao filólogo Aurélio Buarque de Holanda, responsável por um dos mais importantes dicionários da língua portuguesa, tem um tom irônico. Ao oferecer as expressões populares para registro em seu léxico, o autor evidencia a importância da cultura popular e da linguagem coloquial, que muitas vezes são negligenciadas pela norma culta.

07 – Que elementos do conto podem ser relacionados com a poética de Manoel de Barros?

      Diversos elementos do conto podem ser relacionados com a poética de Manoel de Barros, como a linguagem coloquial, a mistura de realidade e fantasia, a presença de personagens marginalizados, a reflexão sobre a linguagem e a cultura, e a valorização da simplicidade e da sabedoria popular. O conto apresenta um olhar sensível e poético sobre o mundo, revelando a beleza e a singularidade presentes nas coisas mais simples e nos detalhes do cotidiano.

 

 

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