Crônica: O canteiro de palavras – Fragmento
Nilson de Souza
Qual é o seu ofício – me pergunta com
certa formalidade o simpático velhinho da fila do banco, depois do cumprimento
habitual e do comentário sobre o tempo, rotinas que servem para quebrar o gelo
(no nosso clima, literalmente) entre desconhecidos circunstancialmente íntimos
pela espera compartilhada. Quase digo que sou jornalista, mas me policio porque
conheço o poder inibidor da minha profissão.

– Vivo de escrever. – Respondo no mesmo
tom evasivo, tentando decifrar o efeito da resposta no seu olhar enrugado. [...]
– Eu sou cortador de pedras – me diz
com indisfarçável orgulho de quem detém um dote raro.
Antes que a fila ande, tenho tempo
ainda para ouvir algumas explicações sobre a arte de tirar paralelepípedos da
rocha bruta, sobre as ferramentas que usa e sobre a quantidade de peças que
produz. Ouço em silêncio para não perturbar a narrativa, mas seu trabalho não
me é estranho. Perto de minha casa há uma pedreira. Conheço a faina dos homens
empoeirados que lá labutam. De vez em quando fico ouvindo a distância o
martelar dos canteiros e pensando na célebre fábula sobre “a tenacidade de
nossas ações”, escrita por Jacob Riis, que tem como personagem exatamente um
cortador de pedras. Diz mais ou menos o seguinte: “Quando nada parece dar
certo, eu observo o homem que corta pedras. Ele martela uma, duas, centenas de
vezes, sem que uma só rachadura apareça. Porém, na centésima primeira
martelada, a pedra se abre em duas. E eu sei que não foi aquela pancada que
operou o milagre, mas todas as que vieram antes”.
Pois escrever, me dou conta enquanto
preencho o cheque, não deixa de ser um processo semelhante. A gente martela
centenas de vezes até que brote do cérebro (ou do dicionário) a palavra
adequada, talvez a única capaz de servir à construção literária planejada. Nem
sempre se consegue. A não ser que o canteiro de letras tenha o talento daquele
escultor de estátuas equestres que explicava com simplicidade como conseguia
tal perfeição:
– Eu tiro da pedra tudo o que não seja cavalo.
Nilson de Souza. Zero
Hora. 17/7/1996.
Fonte: Linguagem em
Movimento – língua Portuguesa Ensino Médio – vol. 1 – 1ª edição – FTD. São
Paulo – 2010. Izeti F. Torralvo/Carlos A. C. Minchillo. p. 333.
Entendendo a crônica:
01
– Qual a principal comparação estabelecida pelo narrador entre o trabalho de um
escritor e o de um cortador de pedras?
A comparação
centraliza-se no processo criativo. Ambos os profissionais trabalham de forma
paciente e persistente, moldando um material bruto (a palavra para o escritor,
a pedra para o escultor) até alcançar o resultado desejado. A ideia de
"martelar" é utilizada para simbolizar esse esforço contínuo.
02
– Qual o significado da frase "Eu tiro da pedra tudo o que não seja
cavalo", dita pelo escultor de estátuas equestres?
Essa frase resume
a ideia de que a arte, seja ela a escultura ou a escrita, é um processo de
subtração. O artista não acrescenta elementos à matéria-prima, mas sim remove o
que é supérfluo, revelando a forma que já existia de maneira latente. No caso
do escritor, a tarefa é similar: encontrar as palavras exatas e eliminar as que
não contribuem para a construção do texto.
03
– Qual a importância da fábula de Jacob Riis para a reflexão do narrador sobre
o processo de escrita?
A fábula do
cortador de pedras serve como uma metáfora para a persistência necessária na
escrita. Ela demonstra que o sucesso não é fruto de um único esforço, mas sim
de um trabalho constante e acumulativo. A rachadura na pedra, assim como a
palavra perfeita, é o resultado de inúmeras tentativas anteriores.
04
– Como o narrador se sente em relação à sua profissão após a conversa com o
velhinho?
A conversa com o
cortador de pedras provoca uma reflexão profunda no narrador sobre a natureza
do seu próprio trabalho. Ele passa a valorizar ainda mais a complexidade e a
exigência da escrita, compreendendo que a criação literária é um processo
artesanal que exige dedicação e paciência.
05
– Qual o papel do diálogo entre o narrador e o velhinho para o desenvolvimento
da crônica?
O diálogo
funciona como um gatilho para a reflexão do narrador sobre sua própria
profissão. A partir da experiência do outro, ele é capaz de estabelecer novas
conexões e construir uma visão mais abrangente sobre a criação artística.
06
– Que outros ofícios poderiam ser comparados ao trabalho de um escritor,
seguindo a mesma lógica da comparação com o cortador de pedras?
A comparação poderia ser
estendida a outros ofícios que envolvem a transformação de um material bruto em
uma obra acabada, como o de um escultor, um pintor, um músico, um arquiteto,
entre outros. Em todos esses casos, o processo criativo exige habilidade,
técnica e uma visão artística.
07
– Qual a principal mensagem que o autor busca transmitir com essa crônica?
A crônica busca
valorizar o processo criativo, mostrando que a produção de qualquer obra de
arte, seja ela literária ou não, exige dedicação, persistência e um olhar
atento aos detalhes. A comparação entre o escritor e o cortador de pedras serve
para ilustrar essa ideia, mostrando que a criação é um trabalho árduo e
gratificante.
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