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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

CONTO: VESTIDA DE PRETO -(FRAGMENTO) - MÁRIO DE ANDRADE - COM GABARITO

 Conto: Vestida de Preto – Fragmento

            Mário de Andrade

        [...]

        [...] Se a criançada estava toda junta naquela casa sem jardim da Tia Velha, era fatal brincarmos de família, porque assim Tia Velha evitava correrias e estragos. Brinquedo aliás que nos interessava muito, apesar da idade já avançada para ele. Mas é que na casa de Tia Velha tinha muitos quartos, de forma que casávamos rápido, só de boca, sem nenhum daqueles cerimoniais de mentira que dantes nos interessavam tanto, e cada par fugia logo, indo viver no seu quarto. Os melhores interesses infantis do brinquedo, fazer comidinha, amamentar bonecas, pagar visitas, isso nós deixávamos com generosidade apressada para os menores. Íamos para os nossos quartos e ficávamos vivendo lá. O que os outros faziam, não sei. Eu, isto é, eu com Maria, não fazíamos nada. Eu adorava principalmente era ficar assim sozinho com ela, sabendo várias safadezas já mas sem tentar nenhuma. Havia, não havia não, mas sempre como que havia um perigo iminente que ajuntava o seu crime à intimidade daquela solidão. Era suavíssimo e assustador.

 
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEivNWymCsDlg0Sfv13wqAY2oydVP1zB98dB0Wh_UJD3SGoF5F3kV4Cjyzz5lCrM8ATz_U0wju6yYEXE6aAvpJul4zVNEp1Z7LQ5UAMKVtfZhNaEerGKkJfauCRx-bFuD_U7wI_wFZmx7TlvjItVM-LnTODaHybYeTcf-5K90ZA4wLp9pJ5Mfg0CvOIRMig/s1600/BRINQUEDOS.jpg



        Maria fez uns gestos, disse algumas palavras. Era o aniversário de alguém, não lembro mais, o quarto em que estávamos fora convertido em dispensa, cômodas e armários cheios de pratos de doces para o chá que vinha logo. Mas quem se lembrasse de tocar naqueles doces, no geral secos, fáceis de disfarçar qualquer roubo! estávamos longe disso. O que nos deliciava era mesmo a grave solidão.

        Nisto os olhos de Maria caíram sobre o travesseiro sem fronha que estava sobre uma cesta de roupa suja a um canto. E a minha esposa teve uma invenção que eu também estava longe de não ter. Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de mim e virou crime. Crime não, “pecado” que é como se dizia naqueles tempos cristãos… E por causa disto eu conseguira não pensar até ali, no travesseiro.

        [...]

        — Você não vem dormir também? — ela perguntou com fragor, interrompendo o meu silêncio trágico.

        — Já vou — que eu disse — estou conferindo a conta do armazém.

        Fui me aproximando incomparavelmente sem vontade, sentei no chão tomando cuidado em sequer tocar no vestido, puxa! também o vestido dela estava completamente assustado, que dificuldade! Pus a cara no travesseiro sem a menor intenção de. [...]

        Fui afundando o rosto naquela cabeleira e veio a noite, senão os cabelos (mas juro que eram cabelos macios) me machucavam os olhos. Depois que não vi nada, ficou fácil continuar enterrando a cara, a cara toda, a alma, a vida, naqueles cabelos, que maravilha! até que o meu nariz tocou num pescocinho roliço. Então fui empurrando os meus lábios, tinha uns bonitos lábios grossos, nem eram lábios, era beiço, minha boca foi ficando encanudada até que encontrou o pescocinho roliço. Será que ela dorme de verdade?… Me ajeitei muito sem-cerimônia, mulherzinha! e então beijei. Quem falou que este mundo é ruim! só recordar… Beijei Maria, rapazes! eu nem sabia beijar, está claro, só beijava mamães, boca fazendo bulha, contato sem nenhum calor sensual.

        Maria, só um leve entregar-se, uma levíssima inclinação pra trás me fez sentir que Maria estava comigo em nosso amor. Nada mais houve. Não, nada mais houve. Durasse aquilo uma noite grande, nada mais haveria porque é engraçado como a perfeição fixa a gente. O beijo me deixara completamente puro, sem minhas curiosidades nem desejos de mais nada, adeus pecado e adeus escuridão! Se fizera em meu cérebro uma enorme luz branca, meu ombro bem que doía no chão, mas a luz era violentamente branca, proibindo pensar, imaginar, agir. Beijando.

        Tia Velha, nunca eu gostei de Tia Velha, abriu a porta com um espanto barulhento. Percebi muito bem, pelos olhos dela, que o que estávamos fazendo era completamente feio.

        — Levantem!… Vou contar pra sua mãe, Juca!

        Mas eu, levantando com a lealdade mais cínica deste mundo!

        — Tia Velha me dá um doce?

        Tia Velha – eu sempre detestei Tia Velha, o tipo da bondade Berlitz, injusta, sem método — pois Tia Velha teve a malvadeza de escorrer por mim todo um olhar que só alguns anos mais tarde pude compreender inteiramente. Naquele instante, eu estava só pensando em disfarçar, fingindo uma inocência que poucos segundos antes era real.

        — Vamos! saiam do quarto!

        Fomos saindo muito mudos, numa bruta vergonha, acompanhados de Tia Velha e os pratos que ela viera buscar para a mesa de chá.

        [...].

Mário de Andrade. Vestido preto. In: Contos novos. Belo Horizonte: Vila Rica, 1996, p. 23-25.

Fonte: Linguagem em Movimento – língua Portuguesa Ensino Médio – vol. 1 – 1ª edição – FTD. São Paulo – 2010. Izeti F. Torralvo/Carlos A. C. Minchillo. p. 162-163.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Iminente: próximo, prestes a acontecer.

·        Com fragor: ruidosamente.

·    Berlitz: nas primeiras décadas do século XX, o termo era usado para indicar rigidez, sobriedade, comumente identificada no comportamento dos imigrantes alemães.

02 – Qual a principal atividade das crianças no fragmento e qual o significado que ela carrega para os personagens?

      A principal atividade das crianças é brincar de família, dividindo-se em casais e "vivendo" em quartos separados. Essa brincadeira, embora infantil, carrega um significado profundo para os personagens, especialmente para o narrador e Maria. Ela representa a descoberta da sexualidade, do desejo e da intimidade, ainda que de forma inocente e idealizada.

03 – Qual o papel do travesseiro na narrativa e qual o seu significado simbólico?

      O travesseiro representa o objeto do desejo e da transgressão. Ele se transforma em um símbolo da descoberta do corpo e da sexualidade, incitando nos personagens sensações de culpa e de desejo ao mesmo tempo. O travesseiro é um catalisador para o primeiro beijo entre o narrador e Maria, marcando um momento de intensa emoção e descoberta.

04 – Como a figura de Tia Velha é apresentada no fragmento e qual o seu papel na narrativa?

      Tia Velha é apresentada como uma figura autoritária e moralista, que representa a censura e a repressão à expressão da sexualidade infantil. Sua descoberta do beijo entre o narrador e Maria interrompe bruscamente o momento de intimidade e inocência, introduzindo o sentimento de culpa e vergonha.

05 – Qual a importância do primeiro beijo entre o narrador e Maria para a narrativa?

      O primeiro beijo entre o narrador e Maria é um momento de grande intensidade emocional e transformação. Ele representa a passagem da infância para a adolescência, a descoberta do amor e da sexualidade. Esse momento marca profundamente o narrador, que o descreve como uma experiência de pureza e perfeição.

06 – Qual o tom predominante do fragmento e como ele contribui para a construção do significado?

      O tom predominante do fragmento é sensível e melancólico, com momentos de intensa emoção e lirismo. Esse tom contribui para a construção do significado, pois ele transmite a delicadeza e a complexidade dos sentimentos experimentados pelos personagens, especialmente a descoberta da sexualidade e do amor.

07 – Como o ambiente físico da casa de Tia Velha influencia a narrativa?

      O ambiente físico da casa de Tia Velha, com seus muitos quartos e a atmosfera de repressão, influencia a narrativa ao proporcionar o espaço ideal para a realização da brincadeira de família e para a descoberta da sexualidade. A casa se torna um microcosmo onde os personagens exploram seus desejos e confrontam seus medos.

08 – Qual a importância da memória para a narrativa e como ela se manifesta no fragmento?

      A memória é fundamental para a narrativa, pois ela permite ao narrador adulto relembrar e reinterpretar os acontecimentos de sua infância. A memória se manifesta no fragmento através da linguagem rica e sensorial, que evoca as sensações e as emoções daquela época. Através da memória, o narrador busca compreender a si mesmo e o mundo ao seu redor.

 

 

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