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sexta-feira, 6 de setembro de 2024

CONTO: A AVÓ, A CIDADE E O SEMÁFORO - MIA COUTO - COM GABARITO

 CONTO: A avó, a cidade e o semáforo

               Mia Couto

        Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Ndzima emitiu as maiores suspeitas:

        -- E vai ficar em casa de quem?

        -- Fico no hotel, avó.

        -- Hotel? Mas é casa de quem?

        Explicar, como? Ainda assim, ensaiei: de ninguém, ora. A velha fermentou nova desconfiança: uma casa de ninguém?

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjCqliSHZim7Zwd1YDElnlt3Fxj5o87F8OwkugZ3y4Q_PCf1jNX-2D6WtCRW0dfPKUHvVhn74RABpdcd6rO-ogtLy2mrS-7xZYfSv2UWBBY_j1anVvgJAugmnFOcV9aJ_zr6oJ1mO4Y9Li7ni6BCDzpRK9HoqNIKzTCEN0oE-OWSD1NIq2E_Rc7ohGVryQ/s320/casa-de-av%C3%B3.jpg

        -- Ou melhor, avó: é de quem paga – palavreei, para a tranquilizar.

        Porém, só agravei – um lugar de quem paga? E que espíritos guardam uma casa como essa?

        A mim me tinha cabido um prêmio do Ministério. Eu tinha sido o melhor professor rural. E o prêmio era visitar a grande cidade. Quando, em casa, anunciei a boa nova, a minha mais-velha não se impressionou com meu orgulho. E franziu a voz:

        -- E, lá, quem lhe faz o prato?

        -- Um cozinheiro, avó.

        -- Como se chama esse cozinheiro?

        Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso, nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado ato. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegurava a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anônima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador de que nem o rosto se conhece.

        -- Cozinhar não é serviço, meu neto – disse ela. – Cozinhar é um modo de amar os outros.

        Ainda tentei desviar-me, ganhar uma distração. Mas as perguntas se somavam, sem fim.

        -- Lá, aquela gente tira água do poço?

        -- Ora, avó...

        -- Quero saber é se tiram todos do mesmo poço...

        Poço, fogueira, esteira: o assunto pedia muita explicação. E divaguei, longo e lento. Que aquilo, lá, tudo era de outro fazer. Mas ela não arredou coração. Não ter família, lá na cidade, era coisa que não lhe cabia. A pessoa viaja é para ser esperado, do outro lado a mão de gente que é nossa, com nome e história. Como um laço que pede as duas pontas. Agora, eu dirigir-me para lugar incógnito onde se deslavavam os nomes! Para a avó, um país estrangeiro começa onde já não reconhecemos parente.

        -- Vai deitar em cama que uma qualquer lençolou?

        Na aldeia era simples: todos dormiam despidos, enrolados numa capulana ou numa manta conforme os climas. Mas lá, na cidade, o dormente vai para o sono todo vestido. E isso minha avó achava de mais. Não é nus que somos vulneráveis. Vestidos é que somos visitados pelas valoyi e ficamos à disposição dos seus intentos. Foi quando ela pediu. Eu que levasse uma moça da aldeia para me arrumar os preceitos do viver.

        -- Avó, nenhuma moça não existe.

        Dia seguinte, penetrei na penumbra da cozinha, preparado para breve e sumária despedida, quando deparei com ela, bem sentada no meio do terreiro. Parecia estar entronada, a cadeira bem no centro do universo. Mostrou-me uns papéis.

        -- São os bilhetes.

        -- Que bilhetes?

        -- Eu vou consigo, meu neto.

        Foi assim que me vi, acabrunhado, no velho autocarro. Engolíamos poeiras enquanto os alto-falantes espalhavam um roufenho ximandjemandje. A avó Ndzima, gordíssima, esparramada no assento, ia dormindo. No colo enorme, a avó transportava a cangarra com galinhas vivas. Antes de partir, ainda a tentara demover: ao menos fossem pouquitas as aves de criação.

        -- Poucas como? Se você mesmo disse que lá não semeiam capoeiras.

        Quando entramos no hotel, a gerência não autorizou aquela invasão avícola. Todavia, a avó falou tanto e tão alto que lhe abriram alas pelos corredores. Depois de instalados, Ndzima desceu à cozinha. Não me quis como companhia. Demorou tempo de mais. Não poderia estar apenas a entregar os galináceos. Por fim, lá saiu. Vinha de sorriso:

        -- Pronto, já confirmei sobre o cozinheiro...

        -- Confirmou o quê, avó?

        -- Ele é da nossa terra, não há problema. Só falta conhecer quem faz a sua cama.

        Aconteceu, depois. Chegado do Ministério, dei pela ausência da avó. Não estava no quarto, nem no hotel. Me urgenciei, aflito, pelas ruas no encalço dela. E deparei com o que viria a repetir-se todas tardes, a vovó Ndzima entre os mendigos, na esquina dos semáforos. Um aperto me minguou o coração: pedinte, a nossa mais-velha?! As luzes do semáforo me chicoteavam o rosto:

        -- Venha para casa, avó!

        -- Casa?!

        -- Para o hotel. Venha.

        Passou-se o tempo. Por fim, chegou o dia do regresso à nossa aldeia. Fui ao quarto da vovó para lhe oferecer ajuda para os carregos. Tombou-me o peito ao assomar à porta: ela estava derramada no chão, onde sempre dormira, as tralhas espalhadas sem nenhum propósito de serem embaladas.

        -- Ainda não fez as malas, avó?

        -- Vou ficar, meu neto.

        O silêncio me atropelou, um riso parvo pincelando-me o rosto.

        -- Vai ficar, como?

        -- Não se preocupe. Eu já conheço os cantos disto aqui.

        -- Vai ficar sozinha?

        -- Lá, na aldeia, ainda estou mais sozinha.

        A sua certeza era tanta que o meu argumento murchou. O autocarro demorou a sair. Quando passamos pela esquina dos semáforos, não tive coragem de olhar para trás.

        O verão passou e as chuvadas já não espreitavam os céus quando recebi encomenda de Ndzima. Abri, sôfrego, o envelope. E entre os meus dedos uns dinheiros, velhos e encarquilhados, tombaram no chão da escola. Um bilhete, que ela ditara para que alguém escrevesse, explicava: a avó me pagava uma passagem para que eu a visitasse na cidade. Senti luzes me acendendo o rosto ao ler as últimas linhas da carta: “... agora, neto, durmo aqui perto do semáforo. Faz-me bem aquelas luzinhas, amarelas, vermelhas. Quando fecho os olhos até parece que escuto a fogueira, crepitando em nosso velho quintal...”.

COUTO, Mia. A avó, a cidade e o semáforo. In: COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 125-129.

Fonte: Linguagens em Interação – Língua Portuguesa – Ensino Médio – Volume Único – Juliana Vegas Chinaglia – 1ª edição, São Paulo, 2020 – IBEP – p. 258-260.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Capulana: pano utilizado tradicionalmente pelas mulheres de Moçambique e de outros países da África para diversas funções, como saia, adereço dos cabelos, toalha, cortina, entre outras.

·        Valoyi: na tradição moçambicana, são feiticeiras más que atormentam os indivíduos à noite.

·        Roufenho: fanho, que fala pelo nariz.

·        Ximandjemandje: ritmo musical.

·        Cangarra: cesto de palha.

·        Capoeira: terra preparada para cultivo.

02 – Qual foi a reação inicial da avó Ndzima ao saber que o neto ia para a cidade?

      A avó Ndzima ficou desconfiada e fez muitas perguntas, demonstrando preocupação com a segurança e os costumes do lugar onde o neto ficaria.

03 – Por que a avó Ndzima se preocupou com quem iria cozinhar para o neto na cidade?

      A avó Ndzima acreditava que cozinhar era um ato de amor e intimidade, e temia que um cozinheiro desconhecido pudesse colocar veneno na comida ou não preparar os alimentos com a devida ternura.

04 – O que o neto ganhou como prêmio e por que motivo?

      Ele ganhou um prêmio do Ministério por ter sido o melhor professor rural, que incluía uma visita à grande cidade.

05 – Por que a avó insistiu em acompanhar o neto na viagem à cidade?
      A avó Ndzima temia que o neto estivesse vulnerável em um lugar desconhecido e queria garantir que ele estivesse bem cuidado.

06 – Qual foi a reação do hotel em relação às galinhas que a avó levou?

      Inicialmente, a gerência do hotel não autorizou a entrada das galinhas, mas depois de muita insistência da avó, permitiram que ela as levasse.

07 – Por que a avó Ndzima se aproximou dos mendigos na cidade?

      A avó encontrou uma espécie de conforto e pertencimento entre os mendigos, sentindo-se mais próxima deles do que dos outros habitantes da cidade.

08 – O que a avó fez quando soube que o cozinheiro do hotel era da terra dela?

      Ela se tranquilizou, acreditando que, por ser da mesma terra, o cozinheiro prepararia a comida com o cuidado e o amor que ela julgava necessário.

09 – Por que a avó decidiu ficar na cidade em vez de voltar para a aldeia?

      A avó sentiu que estava mais sozinha na aldeia do que na cidade e que já conhecia bem os cantos do novo lugar.

10 – Qual foi a reação do neto ao saber que a avó queria ficar na cidade?

      Ele ficou surpreso e sem palavras, pois não esperava que a avó quisesse ficar sozinha na cidade.

11 – Qual o significado das luzes do semáforo para a avó no final da história?

      As luzes do semáforo a faziam lembrar da fogueira no quintal da aldeia, trazendo-lhe uma sensação de conforto e nostalgia, como se estivesse mais próxima de suas raízes.

 

 

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