Crônica: Vida de Cachorro
Walcyr Carrasco
Ando
com vontade de virar cachorro. Não pagam contas de luz nem seguro de carro e
ainda se dão ao direito de deitar de patas para cima, oferecendo o corpo aos
carinhos de quem querem. Comportamento que não atingi em quase duas décadas de
terapia.
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhspmI8i3s6B8wwzAGOndGqXPIQ_KmeDidNH0Jsc_efxNUEYY43YpDCCN-iQU4fJkSQoVb_zkuvmmmu68hPfMcBGTCMLmFaK91j2ljBCYQp15y-t_dGIsTvzxUVAv-MrGAk0IxuCHoRUGqF_kXzZMjG0vp7njZ4pH_oqIXhoZI-aAXOWAxkKBk3pgzVjRg/s320/CACHORRO.jpg
Quem
ama os cães enlouquece por eles. É uma vocação. Minha vizinha não pode ver um
filhote: leva para casa. Chegou a dez. Todos de raças diferentes, mas com um
ponto em comum: hoje são enormes. Decidida a transformar a paixão em negócio,
ela montou um pet shop. O primeiro filhote, trazido em consignação, era um
poodle de cor champanhe. Sem coragem de vender, aumentou a coleção. O pai da
moça anda preocupado: nesse ritmo, toda a ração da loja será consumida pelos
seus próprios cachorros.
Amigos
do melhor amigo do homem não podem se encontrar sem passar horas e horas
descrevendo as qualidades dos bichinhos:
—
O Gandhi entende o que eu falo. Outro dia eu estava na maior deprê. Ele abanou
o rabinho e deitou no meu colo, com um jeito triste, triste.
—
O Fidel é apaixonado por mim. Cada vez que meu ex-marido chega, ele rosna!
Atenção
para um detalhe: o bom dono confere ao seu bicho o nome de uma personalidade,
nunca um nome de cachorro! Meus amigos Vera e Fúlvio são donos da Cora
Coralina, uma gigantesca cadela rottweiler. Da poetisa, ela ostenta o olhar
meigo, mas apenas quando quer conquistar um osso ou um pãozinho francês.
Venderam
o sítio onde Cora vivia em liberdade e trouxeram-na para sua nova e ampla
residência, no Alto da Boa Vista. No primeiro dia Cora tentou devorar Florbela,
uma altiva cadelinha fox-terrier, já habitante da casa. Com o coração partido,
a rottweiler foi entregue a um criador da raça. No dia seguinte Fúlvio pegou o
carro, juntamente com um beneficiário, para buscar, também no sítio, o companheiro
da cadela, Pablo Neruda. No céu, percebeu algumas nuvens escuras. — Vai chover
— comentou Fúlvio. — E melhor voltarmos. — Mas não caiu nem um pingo!
Fúlvio
entrou no acostamento, com o rosto transformado na máscara da
tragédia.
—
Quando chove, à estrada inunda. Há batidas. As pessoas se afogam. Acelerou até a casa do outro, no Morumbi.
Desceu e pegou Cora Coralina de volta. Resumindo: o casal recontratou os
antigos caseiros do sítio. Alugou uma casa para os dois, na estrada.
Paga
um salário para que cuidem dos cães e os visita regularmente, como pessoas da
família. Pensaram até em comprar o sítio de volta.
Não
são os únicos. Há um florescente comércio em torno dos peludos. Outro dia houve
uma feira funerária no Anhembi. Um dos grandes sucessos: caixõezinhos para
cães. O detalhe: tinham a forma de um Y invertido, para caber as patinhas
abertas. Quem é cachorreiro, como se diz no jargão, vive em busca de
veterinários melhores. Há um, na Vila Mariana, onde se formam filas de senhoras
com cachorrinhos do tamanho de luvas. Entre elas, comentam os espirros de cada
bichinho, o melhor corte de pelo. Meu amigo Rogério levou o seu, da raça Akita,
branco e magro como um varapau. Enfrentou, na fila, um macaco de circo com
boné, sentado, que fingia ler uma revista, e dez papagaios gripados, que
tossiam como gente, uma aflição. O diagnóstico: anorexia nervosa. Talvez
causada porque o cão fora proibido de entrar em casa e comer as almofadas do
sofá.
As
rações melhoram de sabor a cada dia. Um rapaz, recém-separado, chegou a comprar
um saco para comer no jantar. Alimentou-se durante um mês com os biscoitinhos,
e até me aconselhou:
—
Para regime, nada melhor. E uma refeição completa.
Eu
me imagino entrando no pet shop e experimentando Bonzo, Purina, Canadian...
—
Levo dois sacos de vinte quilos daquela lá. — Está feita a compra do mês.
E
um caso raro em que a língua não evoluiu juntamente com a realidade. A
expressão "vida de cachorro" relaciona-se com uma existência
desagradável. Agora o significado está mais para o de mordomia. Vou ser franco:
hoje em dia tornou-se mais fácil para um cão encontrar um lar do que para uma
criança abandonada. Nada contra os amigos caninos, porque também amo os meus.
Mas há alguma coisa errada, não há não?
Entendendo a crônica:
01 – Qual é a
crônica em que Walcyr Carrasco discute a relação entre os donos e seus cães?
a) Vida de Cachorro.
b) Amor Incondicional.
c) A Paixão Canina.
d) Filhotes e Companheiros.
02 – Qual é o
principal sentimento expresso pelo autor em relação aos cachorros?
a) Pena.
b) Admiração.
c) Desprezo.
d) Descontentamento.
03 – O que a vizinha
do autor fez com os filhotes que adotou?
a) Levou para a casa.
b) Devolveu para o criador.
c) Vendeu os filhotes.
d) Mantém todos em casa.
04 – Segundo a
crônica, por que os amigos dos cachorros se reúnem?
a) Para descrever suas qualidades.
b) Para contar histórias engraçadas.
c) Para discutir problemas pessoais.
d) Para compartilhar receitas de petiscos.
05 – Qual é a
sugestão do autor sobre como os bons donos devem nomear seus cachorros?
a) Com nomes de personalidades.
b) Com nomes exóticos.
c) Com nomes de outros animais.
d) Com nomes de lugares famosos.
06 – O que aconteceu
com a cadela Cora Coralina ao ser trazida para a nova casa?
a) Ela se adaptou rapidamente.
b) Ela tentou atacar outra cadela.
c) Ela se tornou agressiva.
d) Ela ficou doente.
07 – O que o autor
comenta sobre o comércio relacionado aos cachorros?
a) Está em declínio.
b) Está crescendo.
c) Está perdendo popularidade.
d) Está sendo regulamentado.
08 – O que um rapaz
recém separado fez com a ração de cachorro?
a) Alimentou-se dela.
b) Vendeu para os amigos.
c) Jogou fora.
d) Doou para um abrigo de animais.
09 – Qual é a visão
do autor sobre a expressão "vida de cachorro"?
a) Está ultrapassada.
b) Deve ser desencorajada.
c) Mudou seu significado.
d) Deve ser preservada.
10 – Segundo o
autor, o que ele acha mais fácil do que encontrar um lar para uma criança
abandonada?
a) Adotar um gato.
b) Comprar um cachorro.
c) Adotar um cachorro.
d) Criar um canário.
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