Crônica: A Vida é Falsa
Walcyr Carrasco
Estou em uma churrascaria. Termino de devorar pedaços variados de alcatra, de picanha, de costela. Sinto um pedacinho de carne infiltrado entre meus dentes. Tento arrancar com a língua, de leve. Inútil. Aspiro. Um ruído sai da minha boca. Shieeeeee! Os companheiros de mesa levantam os olhos. Estendo a mão para pegar o paliteiro. Sim, em churrascarias ainda existem paliteiros.
Nos restaurantes mais finos, eles vêm encapsulados. Ou nem mesmo são colocados na mesa. Agarro um palito. A moça na minha frente me olha horrorizada. Lembro-me de todos os manuais de etiqueta. E proibido palitar os dentes em público. No máximo pode-se palitar trancado no toalete, como se fosse um segredo inconfessável. Abandono o palito na mesa. Em seguida, penso: "Por que é proibido palitar os dentes?".
Não há motivo lógico para tornar o ato tão
vergonhoso. Enfio o palito nos dentes, sob o olhar constrangido da mesa.
Sorrio, deliciado. Existe coisa melhor do que palitar os dentes após uma
refeição?
Dizem que é feio fazer isso, fazer aquilo. Já
não sei. Outro dia estava andando no condomínio. Um cachorrinho saiu de uma
casa, correu, mordeu e rasgou minha calça. A moça — por sinal veterinária, como
soube depois —, em vez de perguntar se eu estava machucado, gritou, furiosa.
— Desculpa.
— Rasgou minha calça! -— respondi.
— O que você quer que eu faça, já pedi
desculpas?! — revidou a dama.
Exigi uma calça nova. Não só por ser do meu
direito. Mas pela atitude dela, que nem se preocupou em saber se eu estava
ferido. Dias depois, insisti em receber a calça. Um amigo torceu o nariz.
— Mas pode parecer mesquinharia.
— E daí se estou sendo mesquinho? — respondi. —
Então é feio exigir
o que é justo?
Acontece sempre. Basta a gente pedir alguma
coisa que é do nosso direito; e que envolve uma pequena quantia, para receber
cara feia. Quantas vezes, em restaurantes, são esquecidas as moedas, ou as
notas mais baixas? Sem. nenhuma explicação. Outro dia, no shopping D&D,
paguei o estacionamento. De troco, um real. O rapaz nem se mexeu. Foi preciso
dizer: — Pode me dar o troco, faz favor?
Atirou a nota nos meus dedos, como se eu fosse
um monstro. Há uma infinidade de coisas banidas da vida social. Comer frango
com a mão, por exemplo. E delicioso agarrar uma coxa com as mãos! As regras de
etiqueta até permitem, mas ninguém tem coragem. Ficam cortando pedacinhos com a
faca, enquanto o osso rola no prato. E chupar q tutano? Quem nunca provou não
sabe o que está perdendo. E uma delícia. Já me avisaram:
— Você vai ficar com a boca lambuzada.
— Lambuzou, lavou! — respondo.
Na trilha do frango, vai a manga. Cravar os
dentes no caroço de uma manga bem madura é inesquecível. Todo mundo serve a
fruta cortadinha. Existem frutas que nem são servidas diante de convidados.
Jaca, por exemplo. Impossível comer jaca de garfo e faca. Resultado: ninguém
mais oferece. Tem gente que acha feio até comer sanduíche com a mão. Já recebi
muitos olhares de acusação ao agarrar um cheesebúrguer e meter os dentes,
enquanto a pessoa na minha frente corta os pedacinhos. São tantas as falsidades
que já nem sei como me comportar.
Outro dia cheguei a uma festa de aniversário e
perguntei, alegre. Quantos anos?
A
aniversariante virou a cara. Na hora do bolo, só uma vela solitária.
Acabei comentando:
— Se ela botasse todas as velinhas, provocaria
um incêndio!
Quase fui expulso.
Alguém me responda: como dar festa de
aniversário sem que perguntem a idade?
Já me conformei. Se é para deixar de ser espontâneo, prefiro ser chamado de mal-educado. Pelo menos a vida se torna mais confortável.
Entendendo o texto
01. O que o autor sente
após uma refeição em uma churrascaria que o leva a pegar um palito de dente?
a. Um desconforto estomacal.
b. Um pedaço de carne entre os dentes.
c. Um desejo de palitar os dentes em
público.
d. Um sorriso de satisfação.
02. Por que o autor
considera estranho palitar os dentes em público?
a. Porque é proibido pelas regras de
etiqueta.
b. Porque os palitos de dente são
difíceis de encontrar.
c. Porque é uma prática insegura.
d. Porque os amigos não gostam dessa
atitude.
03. Qual foi a reação da moça veterinária após
o cachorro rasgar a calça do autor?
a. Ela pediu desculpas e ofereceu
ajuda.
b. Ela ficou preocupada com o autor.
c. Ela gritou
furiosa e não demonstrou preocupação.
d. Ela ofereceu dinheiro para
consertar a calça.
04. Por que o autor exigiu uma calça nova
após o incidente com o cachorro?
a. Porque queria uma calça melhor.
b. Porque achou a reação da moça
injusta.
c. Porque queria parecer mesquinho.
d. Porque não estava machucado.
05. O que o autor observa sobre receber o
troco em uma situação no shopping?
a. Os trocos são dados com gentileza.
b. Os funcionários são sempre
educados.
c. Às vezes, é necessário pedir o
troco.
d. Ninguém oferece troco em lojas.
06. Segundo o autor, por que certas
práticas, como comer frango com as mãos, são evitadas em público?
a. Porque é proibido por lei.
b. Porque as pessoas têm medo de se
sujar.
c. Porque as
regras de etiqueta desaprovam esses comportamentos.
d. Porque é mais educado usar
talheres.
07. Qual é a atitude do autor em relação
às convenções sociais mencionadas na crônica?
a. Ele se conforma com elas.
b. Ele desafia essas convenções.
c. Ele as ignora completamente.
d. Ele as respeita totalmente.
08. Por que o autor menciona a experiência
em uma festa de aniversário?
a. Para criticar a falta de velas no
bolo.
b. Para mostrar como é difícil evitar
certas perguntas.
c. Para explicar por que foi expulso da festa.
d. Para falar sobre a comemoração de
aniversário.
09. Como
o autor se sente em relação ao comportamento espontâneo versus seguir as regras
sociais?
a. Ele prefere ser considerado
mal-educado.
b. Ele prefere seguir as regras
sociais rigidamente.
c. Ele se conforma com as normas
sociais.
d. Ele busca sempre agradar as
pessoas ao seu redor.
10. Qual é a principal crítica do autor
em relação às convenções sociais mencionadas na crônica?
a. Elas são essenciais para a boa
convivência.
b. Elas são hipócritas e falsas.
c. Elas são úteis para evitar
conflitos.
d. Elas promovem uma
vida confortável.
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