Crônica: Desculpa Esfarrapada
Walcyr Carrasco
SEMPRE FUI UM
DORMINHOCO. Adoro acordar tarde. É o tipo de coisa malvista por possíveis
empregadores. Em época de vacas magras eu instruía o pessoal de casa a dizer,
todas as vezes que alguém ligasse: "Ele está no banho".
Nada mais prático.
Quem está no banho, não atende telefone. O problema é que às vezes a pessoa
ligava várias vezes, hora após hora. A resposta, invariável. No banho.
— Será que ele não
se afogou embaixo do chuveiro? — vinha a pergunta irônica.
Ou batiam o
telefone.
— Se ele não quer me
atender, por que não diz de uma vez?
Ganhei a fama de ser
o homem mais limpo da cidade. O Sabonetinho, como diziam! Chegaram a me citar
uma crônica do Nelson Rodrigues sobre o tema. Ou seja: acabou a desculpa. Mas,
nessa era de celulares, de comunicação, rápida; como se safar? Faço terapia
todas as sextas-feiras. Quando estou esperando alguma ligação importante, deixo
o celular ligado. Às vezes não reconheço o número no visor. Em dúvida, atendo.
Já tentei mil vezes explicar:
— Estou no meio de
uma consulta e...
Que adianta? A
pessoa continua falando, falando! Agora uso o estratagema do túnel, — Ih! Olha,
estou no meio do trânsito... ih! Estou entrando em um túnel, se a ligação
cair... ih! Não estou ouvindo mais nada, alô, alô. Ih!, ih!
Desligo, enquanto o interlocutor se esgoela
do outro lado. Muita gente usa a estratégia, de tão boa. Já está ficando velha.
Antes da revolução das comunicações o interurbano funcionava como desculpa.
Bastava mandar dizer.
— Ele está em um
interurbano.
Falar com outra
cidade era complicado. Todo mundo compreendia. Nesta era de DDD e DDI
facilitados, é uma desculpa esfarrapadíssima! Mas a do chefe ainda funciona.
— Sinto muito, ele
está em reunião com o diretor.
Dá certo e confere
status. Reunião privada com o diretor não é para qualquer um. Podem ligar vinte
vezes no dia. Quanto mais longa parecer a reunião, mais importante será o
cargo. A não ser que venha um rugido do outro lado:
— Invente outra.
Quem está falando sou eu, o diretor.
Afinal, onde é que
ele está?
Há outra que está
entrando em moda.
— Liguei o dia todo
e você não atendeu.
— Mas eu estava em
casa. Houve um problema nas linhas telefônicas de todo o bairro. Ficamos
incomunicáveis.
A estratégia costuma
provocar um gesto de solidariedade. Raios, trovões, ventanias. Tudo mexe com as
linhas. Bateria do celular que pifa também é outra. A pessoa está doida para se
livrar. Então começa:
— Oh! A bateria está
pifando... olha, se a ligação cair, depois eu ligo.
E bate o telefone na
cara do outro, a salvo!
Excesso de trabalho
também funciona. O problema é quando uma desculpa óbvia se contrapõe a outra
mais óbvia ainda. Como quando o casal se encontra, depois de um cano.
— Desculpa ter
deixado você esperando ontem à noite, querida. Surgiu um projeto super urgente,
fiquei até tarde trabalhando. Nem me aguento em pé — diz
ele, aproveitando para disfarçar as olheiras e os sinais de ressaca. . .
— Ah, meu amor, eu
até fiquei preocupada! Houve um problema nas linhas do bairro. Para cúmulo, a
bateria do celular pifou. Então... se você tentou ligar... — responde ela,
inocentemente.
Os dois se olham,
imperturbáveis. E agora?
A sorte foi que não
deram de cara um com o outro na farra!
Os tempos mudam. A tecnologia dos pretextos evolui. A desculpa ganha roupa nova. Mas dificilmente muda a aparência. Desculpa que é desculpa, sempre tem jeito de esfarrapada!
Entendendo o texto
01. O autor menciona que, em época de vacas magras,
instruía o pessoal de casa a dizer que ele estava:
a) Fazendo
exercícios.
b) No trabalho.
c) No banho.
d) Cozinhando.
02. Por que o autor
ganhou a fama de ser o homem mais limpo da cidade?
a) Por tomar banho constantemente.
b) Por estar sempre no banho quando ligavam.
c) Por sua reputação como um grande chef.
d) Por seu interesse em produtos de limpeza.
03. Qual estratagema
o autor utiliza para evitar ligações durante suas consultas de terapia?
a) Estar no trânsito.
b) Estar em um túnel.
c) Estar no cinema.
d) Estar em uma reunião.
04. Antes da
revolução das comunicações, qual era uma desculpa comum para evitar ligações?
a) Estar em outra cidade.
b) Estar no trabalho.
c) Estar no banho.
d) Estar em um interurbano.
05. Segundo o autor,
qual desculpa ainda funciona e confere status?
a) Problemas nas linhas telefônicas.
b) Bateria do celular pifada.
c) Reunião com o diretor.
d) Excesso de trabalho.
06. Qual estratégia
o autor menciona como entrando em moda para evitar ligações?
a) Problema nas linhas telefônicas.
b) Bateria do celular pifada.
c) Excesso de trabalho.
d) Linhas do bairro incomunicáveis.
07. O que o autor
menciona como estratégia quando a bateria do celular pifa?
a) Pedir para ligar depois.
b) Encerrar a ligação imediatamente.
c) Continuar a conversa mesmo sem bateria.
d) Trocar de celular.
08. Segundo o autor,
o que costuma acontecer quando uma desculpa óbvia se contrapõe a outra mais
óbvia ainda?
a) A pessoa se irrita.
b) Ambas são aceitas sem questionamento.
c) A verdade é revelada.
d) Um impasse surge.
09. O que o autor
menciona como motivo para o casal se desculpar mutuamente após um cano?
a) Projeto super urgente.
b) Problema nas linhas do bairro.
c) Bateria do celular pifada.
d) Excesso de trabalho.
10. Qual é a
conclusão do autor sobre as desculpas?
a) Elas sempre têm uma aparência
esfarrapada.
b) Elas evoluem com a tecnologia.
c) Elas mudam conforme os tempos.
d) Elas são sempre inquestionáveis.
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