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quarta-feira, 3 de agosto de 2022

CONTO: A CARTEIRA DE CROCODILO - MIA COUTO - COM GABARITO

 Conto: A carteira de crocodilo

         Mia Couto

        A Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas. Exibia a carteirinha que o marido lhe trouxera das outras Áfricas, toda em substância de pele de crocodilo. As amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce. Até a bílis lhes escorria pelos olhos. Motivadas pela desfaçatez, elas comentavam: o bichonho, assim tão desfolhado, não teria sofrido imensamente? Tal dermificina não seria contra os católicos mandamentos?

        – E com o problema das insolações, o bicho, assim esburacado, apanhando em cheio os ultravioletas...

        – Cale-se, Clementina.

        Mas o governador Sacramento também se havia contemplado a ele mesmo. Adquirira um par de sapatos feitos com pele de cobra. O casal calçava do reino animal, feitos pássaros que têm os pés cobertos de escamas. Certo dia, uma das nobres damas trouxe a catastrágica novidade. O governador-geral contraíra grave e irremediável viuvez. A esposa, coitada, fora comida inteira, incluído corpo, sapatos, colares e outros anexos.

        – Foi comida mas... pelo marido, supõe-se?

        – Cale-se, Clementina.

        Mas qual marido? Tinha sido o crocodilo, o monstruoso carnibal. Que horror, com aqueles dentes capazes de arrepiar tubarões.

        – Um crocodilo no Palácio?

        – Clemente-se, Clementina.

        O monstro de onde surgira? Imagine-se, tinha emergido da carteira, transfigurado, reencarnado, assombrado. Acontecera em instantâneo momento: a malograda ia tirar algo da mala e sentiu que ela se movia, esquiviva. Tentou assegurá-la: tarde e de mais. Foi só tempo de avistar a dentição triangulosa, língua amarela no breu da boca. No resto, os testemunhadores nem presenciaram. O sáurio se eminenciou a olhos imprevistos.

        E o governador, sob o peso da desgraça? O homem ia de rota abatida. Lágrimas catarateavam pelo rosto. O dirigente recebeu o desfile das condolências. Vieram íntimos e ilustres. A todos ele cumprimentou, reservado, invisivelmente emocionado. Os visitantes se juntaram no nobre salão, aguardando palavras do dirigente. O governador avançou para o centro e anunciou não o luto mas, espantem-se cristãos, a inadiável condecoração do crocodilo. Em nome da protecção das espécies, explicou. A bem da ecologia faunística, acrescentou.

        No princípio, houve relutâncias, demoras no entendimento. Mas logo os aplausos abafaram as restantes palavras. O que sucedeu, então, foi o inacreditável. O governador Sacramento suspendeu a palavra e espreitou o chão que o sustinha. Pedindo urgentes desculpas ele se sentou no estrado e se apressou a tirar os sapatos. Entre a audiência ainda alguém vaticinou:

        – Vai ver que os sapatos se convertem em cobra...

        – Clementina!

        Sucedeu exactamente o inverso. O ilustre nem teve tempo de desapertar os atacadores. Perante um espanto ainda mais geral que o título do governador, se viu o honroso indignitário a converter-se em serpente. Começou pela língua, afilada e bífida, em rápidas excursões da boca. Depois, se lhe extinguiram os quase totais membros, o homem, todo ele, um tronco em flor. Caiu desamparado no mármore do palácio e ainda se ouviu seu grito:

        – Ajudem-me!

        Ninguém, porém, avivou músculo que fosse. Porque, logo e ali, o mutante mutilado, em total mutismo, se começou a enredar pelo suporte do microfone. Enquanto serpenteava pelo ferro ele se desnudava, libertadas as vestes como se foram uma desempregada pele. O governador finalizava elegâncias de cobra. O ofídio se manteve hasteado no microfone, depois largou-se. Quando se aguardava que se desmoronasse, afinal, o governador encobrado desatou a caminhar. Porque de humano lhe restavam apenas os pés, esses mesmos que ele cobrira de ornamento serpentífero.

        – Não aplauda, Clementina, por amor de Deus!

COUTO, Mia. Contos do nascer da Terra. 3. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1997. p. 101-103.

             Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 132-5.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Canasta: jogo de cartas de baralho também chamado, no Brasil, de canastra ou tranca.

·        Desfaçatez: descaramento, cinismo; falta de vergonha ou de pudor.

·        Atacador: cordão, cadarço.

·        Bífida: fendida ou separada em duas partes, como a língua das serpentes.

·        Serpentífero: relativo a uma situação em que há ou em que se produz serpente ou cobra venenosa.

02 – Você conhece a literatura em prosa de algum escritor africano de língua portuguesa? Qual?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – O realismo mágico também faria parte do contexto literário desse continente?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – Qual seria o tema ou o assunto de um conto intitulado “A carteira de crocodilo”?

      Resposta pessoal do aluno.

05 – Leia as informações a seguir:

        A República de Moçambique, cuja capital é Maputo, situa-se na costa sudeste do continente africano. Foi uma colônia portuguesa e tornou-se independente em 25 de junho de 1975. Segundo estudos arqueológicos, os povos bantu se fixaram nessa região entre os séculos I e V. Além de agricultores, eles dominavam a metalurgia, ciência que estuda os processos de extração de metais e seu uso industrial ou a arte de trabalhar metais. Os portugueses chegaram pela primeira vez em Moçambique em 1497.

        Com base nessas informações, quem representariam as personagens governador-geral, Sacramento; sua mulher, Dona Francisca Júlia Sacramento; suas amigas; e os “íntimos e ilustres”?

      Todas essas personagens representam o colonizador português em Moçambique.

06 – Segundo estudiosos, esse conto (assim como “O edifício”, de Murilo Rubião) é filiado ao realismo fantástico.

a)   Que elementos desse conto de Mia Couto extrapolam a realidade, ou seja, podem ser considerados fantásticos?

As circunstâncias absurdas que envolveram a morte da senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, que é devorada por um crocodilo que sai de sua bolsa de pele; e a metamorfose pública e gradual do corpo do governador em serpente.

b)   Como você interpreta a presença desses elementos fantásticos no conto “A carteira de crocodilo”?

No contexto, esses elementos foram usados com o objetivo de provocar a reflexão a respeito da arrogância, da vaidade, da hipocrisia, da inveja e de denunciar a realidade: a política colonialista, o oportunismo político, etc.

c)   O que o crocodilo e a serpente simbolizam no contexto?

Os nomes dos dois animais estão associados a aspectos negativos do ser humano. É chamada de cobra uma pessoa traiçoeira, maldosa. A expressão “lágrimas de crocodilo” está associada a fingimento. Tanto no Brasil como em Moçambique, a gíria crocodilar/crocodilagem tem o sentido pejorativo de “agir com falsidade, hipocrisia”.

d)   Que sentimentos, ações humanas e fatos reais são tematizados nesse conto?

A hipocrisia, a falsidade, a vaidade, a inveja, a exploração colonial, assim como o uso político das tragédias.

07 – Releia e explique no caderno cada um dos trechos a seguir:

a)    A Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas. Exibia a carteirinha que o marido lhe trouxera das outras Áfricas, toda em substância de pele de crocodilo.

O trecho crítica de forma irônica a vaidade da mulher do político, que se mostrava superior e exibia sua carteira de crocodilo, que pode representar a exploração das colônias portuguesas da África. É uma crítica, também, às atividades sociais realizadas com o falso pretexto de fazer ações de caridade.

b)    As amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce. Até a bílis lhes escorria pelos olhos. Motivadas pela desfaçatez, elas comentavam: o bichonho, assim tão desfolhado, não teria sofrido imensamente? Tal dermificina não seria contra os católicos mandamentos?

– E com o problema das insolações, o bicho, assim esburacado, apanhando em cheio os ultravioletas...

Crítica, de forma irônica, à inveja das “amigas” de Dona Francisca, aos falsos discursos religioso e ecológico, à hipocrisia. A palavra amigas foi usada no sentido irônico, em que se afirma o contrário do que se pensa.

c)    E o governador, sob o peso da desgraça? O homem ia de rota abatida. Lágrimas catarateavam pelo rosto. O dirigente recebeu o desfile das condolências. Vieram íntimos e ilustres. A todos ele cumprimentou, reservado, invisivelmente emocionado. Os visitantes se juntaram no nobre salão, aguardando palavras do dirigente. O governador avançou para o centro e anunciou não o luto mas, espantem-se cristãos, a inadiável condecoração do crocodilo. Em nome da protecção das espécies, explicou. A bem da ecologia faunística, acrescentou.

Ironiza a comemoração do marido pela viuvez, como se ele estivesse comemorando a morte da mulher ao condecorar o crocodilo; e critica os políticos que se apropriam do discurso ecológico e até da “própria desgraça” para obter ganhos políticos.

d)    – Cale-se, Clementina.; – Clemente-se, Clementina.; – Não aplauda, Clementina, por amor de Deus!

Uma personagem adverte uma outra, chamada Clementina, para que ela não expresse o que pensa e mantenha as aparências. É uma crítica irônica à hipocrisia das relações sociais e de poder.

08 – Baseando-se nos trechos lidos na atividade 7, responda:

        Nesse conto, o narrador de terceira pessoa é neutro, ou seja, ele só narra o que presencia, ou se posiciona perante os fatos? Explique sua resposta.

      O narrador posiciona-se, criticando e ironizando as personagens por meio da escolha das palavras, dos comentários e de descrições, como as seguintes: “As amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce”; “O governador finalizava elegâncias de cobra”; “[...] invisivelmente emocionado [...]”; “[...] honroso indignitário [...]”; etc. Além disso, dirige-se ao leitor com interrogações: “E o governador, sob o peso da desgraça?”.

09 – O texto apresenta a voz do narrador, a do governador, a de uma personagem anônima que se dirige à personagem Clementina, fazendo-lhe advertências. Pelas advertências, é possível inferir a voz da personagem Clementina.

a)   Quem Clementina pode representar?

As pessoas que aplaudem e consideram justo o destino do governador e de sua mulher.

b)   O que a voz da personagem anônima pode representar?

As pessoas que, por algum interesse, querem manter as aparências.

10 – Nesse conto, Mia Couto criou neologismos, alterando a classe gramatical de várias palavras e aglutinando-as a outras. Qual é o feito do emprego desses neologismos no texto?

      Eles criam um efeito humorístico e também reflexivo, irônico, crítico e fantástico.

11 – Explique no caderno:

a)   O sentido e/ou a formação das palavras destacadas em:

·        A Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas.

·        No resto, os testemunhadores nem presenciaram.

·        Acontecera em instantâneo momento: a malograda ia tirar algo da mala e sentiu que ela se movia, esquiviva

         Certo dia, uma das nobres damas trouxe a catastrágica novidade.

O termo excelenciava-se é um neologismo formando pela mudança de classe gramatical. Formado pelo adjetivo excelente e pela forma de tratamento excelência, tem o sentido de “exibia-se”. A palavra testemunhadores é usada com o sentido de pessoas presentes, que estavam no local do acontecimento. O termo esquiviva é um neologismo formado pelos adjetivos esquiva e viva: a carteira movimentou-se de forma defensiva e dela saiu um crocodilo vivo. O termo catastrágica é um neologismo formado pelos adjetivos catastrófica e trágica, com o objetivo de reforçar o ocorrido.

b)   O sentido das expressões destacadas em:

·        O sáurio se eminenciou a olhos imprevistos.

·        A todos ele cumprimentou, reservado, invisivelmente emocionado.

A expressão “se eminenciou a olhos imprevistos” tem o sentido de “se destacou, se fez ver, ganhou grandes proporções diante das pessoas presentes, que foram pegas de surpresa, pois não esperavam ver o que viram”. Brincadeira, humor com a expressão “visivelmente emocionado”, com o sentido de que não conseguia demonstrar emoção.

c)   O sentido da metáfora e da hipérbole em:

         Até a bílis lhes escorria pelos olhos.

     A expressão “bílis lhes escorria pelos olhos” é metáfora e hipérbole, com o sentido de muita inveja.

d)   O sentido da frase:

Clemente-se, Clementina.

     Clemente-se é um neologismo formado de verbo com base em substantivo. O nome da personagem pode ser uma ironia porque a palavra clemência tem o sentido de indulgência, bondade; e a palavra clemente tem o sentido de indulgente, bondoso.

12 – Explique a formação e/ou o sentido de mais estes neologismos criados por Mia Couto:

a)   Bichonho;

Neologismo formado com as palavras bicho + medonho, tem o sentido de bicho medonho, terrível.

b)   Carnibal;

Neologismo formado com as palavras derma/derme (do grego pele) + carnificina, tem o sentido de mortandade, grande extermínio ou carnagem de peles de animais.

c)   Dermificina;

Neologismo formado com as palavras carne + canibal, para reforçar a voracidade do crocodilo.

d)   Catarateavam.

Neologismo e hipérbole, para reforçar o sentido de lágrimas que cairiam como cataratas, ou cachoeiras.

 

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