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domingo, 31 de julho de 2022

CRÔNICA: AI DE TI, COPACABANA - RUBEM BRAGA - COM GABARITO

 Crônica: Ai de ti, Copacabana

               Rubem Braga

        1. AI DE TI, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.

        2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.

        3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia.

        4. Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.

        5. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão.

        6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.

        7. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska.

        8. Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum.

        9. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.

        10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação.

        11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência.

        12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.

        13. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.

        14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.

        15. Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?

        16. Antes de te perder eu agravarei s tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.

        17. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.

        18. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas.

        19. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.

        20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará.

        21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares.

        22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!

Rio, janeiro, 1958

BRAGA, Rubem. Ai de ti, Copacabana. 13. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 80-3.

             Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 106-9.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Iniquidade: injustiça.

·        Setentrião: vento norte.

·        Jamanta: arraia-gigante; peixe dos mares tropicais que atinge até 3 metros comprimento e 5 metros de diâmetro.

·        Mero: peixe do Atlântico tropical que atinge até 3 m de comprimento e pesa até 450 kg.

·        Mancebo: rapaz, jovem.

·        Lambreta: veículo motorizado semelhante à motocicleta; motoneta; vespa.

·        Concupiscência: prazer; desejo intenso de bens ou gozos materiais.

·        Quebrantar: vencer, domar, amansar.

·        Badejos, garoupas e tainhas: peixes do Oceano Atlântico.

·        Fariseu: com o sentido de indivíduo que aparenta santidade não a tendo; indivíduo hipócrita, fingido.

·        Rapina: ato de roubar, tirar, subtrair com violência.

·        Libação: ato de tomar bebidas alcoólicas por prazer e para fazer brindes.

·        Hetaira: na antiga Grécia, mulher dissoluta, cortesã; prostituta elegante e distinta.

·        Alfonje: sabre, espada de lâmina curta e larga.

·        Cação: peixe da família do tubarão.

02 – Caracterize o narrador de “Ai de ti, Copacabana” usando passagens da crônica.

      O narrador é um ser superior, um profeta, que tem o poder de prever o futuro. Trechos do texto que justificam a resposta: “[...] minha voz te abalará até as entranhas”; “Já movi o mar de uma parte e de outra parte [...]”; “[...] eu agravarei a tua demência [...]”; “[...] eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá.”.

03 – A quem o narrador se dirige? Com que objetivo?

      Ele se dirige ao bairro boêmio de Copacabana em tom ameaçador e irônico, profetizando seu fim.

04 – “Ai de ti, Copacabana” é uma crônica intertextual. Releia estes trechos:

        Ai de ti; referver de espumas; bando de carneiros em pânico; as muralhas ruirão; a hora da provação; Por que rezais em vossos templos, fariseus [...]; a multidão de vossos pecados; porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá; Pois o fogo e a água te consumirão. Com qual texto a crônica dialoga? Justifique.

      A crônica dialoga com o texto bíblico (a Bíblia), apropriando-se de imagens e de trechos do livro do Apocalipse.

05 – Explique a presença de numeração nos parágrafos.

      Os 22 parágrafos são numerados como se fossem versículos da Bíblia.

06 – O que o narrador de “Ai de ti, Copacabana” expressa por meio do texto?

a)   Ironia e rancor.

b)   Ameaça e lamento.

c)   Desprezo e horror.

d)   Queixa e dor.

e)   Arrogância e alerta.

07 – Releia os trechos a seguir e explique o que motivou as “profecias apocalípticas” do narrador.

·        [...] estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia. (3).

·        Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas. (8).

·        Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? (8)

·        [...] desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão. (9).

·        Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto. [...]. (10).

·        E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações. (14).

·        Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados? (19).

·        Pois grande foi a tua vaidade [...]. (19).

      O que motivou essas e outras “profecias apocalípticas” do narrador foram a desigualdade social, o desprezo pela natureza, a corrupção e a especulação imobiliária, a prostituição, as futilidades, os vícios.

08 – Releia o trecho a seguir e explique a que ele se refere.

        “Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite?”

      O trecho refere-se à fusão de cultos religiosos, chamada de “sincretismo religioso”.

09 – Qual é o efeito provocado pela citação de nomes de bairros, espaços públicos, casas noturnas, galerias comerciais, personalidade, etc.?

      A citação de nomes dá um tom documental, de registro de locais, cenários e fatos, que é uma das marcas do gênero crônica.

 

 

 

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