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sexta-feira, 20 de novembro de 2020

CRÔNICA: CUIDADO COM OS REVIZORES - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Crônica: CUIDADO COM OS REVIZORES                    

                    Luís Fernando Veríssimo

Todo escritor convive com um terror permanente: o do erro de revisão. O revisor é a pessoa mais importante na vida de quem escreve. Ele tem o poder de vida ou de morte profissional sobre o autor. A inclusão ou omissão de uma letra ou vírgula no que sai impresso pode decidir se o autor vai ser entendido ou não, admirado ou ridicularizado, consagrado ou processado. Todo texto tem, na verdade, dois autores: quem o escreveu e quem o revisou. Toda vez que manda um texto para ser publicado, o autor se coloca nas mãos do revisor, esperando que seu parceiro não falhe. Não há escritor que não empregue palavras como, por exemplo: “ônus” ou “carvalho” e depois fique metaforicamente de malas feitas, pronto para fugir do país se as palavras não saírem impressas como no original, por um lapso do revisor. Ou por sabotagem.

Sim, porque a paranoia autoral não tem limites. Muitos autores acreditam firmemente que existe uma conspiração de revisores contra eles. Quando os revisores não deixam passar erros de composição (hoje em dia, de digitação), fazem pior: não corrigem os erros ortográficos e gramaticais do próprio autor, deixando-o entregue às consequências dos seus próprios pecados de concordância, das suas crases indevidas e pronomes fora do lugar. O que é uma ignomínia. Ou será ignomia? Enfim, não se faz.

Pode-se imaginar o que uma conspiração organizada, internacional, de revisores significaria para a nossa civilização. Os revisores só não dominam o mundo porque ainda não se deram conta do poder que têm. Eles desestabilizariam qualquer regime com acentos indevidos e pontuações maliciosas, além de decretos oficiais ininteligíveis. Grandes jornais seriam levados à falência por difamações involuntárias, exércitos inteiros seriam imobilizados por manuais de instrução militar sutilmente alterados, gerações de estudantes seriam desencaminhadas por cartilhas ambíguas e fórmulas de química incompletas. E os efeitos de uma revisão subversiva na instrução médica são terríveis demais para contemplar.

Existe um exemplo histórico do que a revisão desatenta – ou mal-intencionada – pode fazer. Uma das edições da Versão Autorizada da Bíblia publicada na Inglaterra por iniciativa do rei James I, no século XVII, ficou conhecida como a “Bíblia Má”, porque a injunção “Não cometerás adultério” saiu, por um erro de impressão, sem o “não”. Ninguém sabe se o volume de adultérios entre os cristãos de fala inglesa aumentou em decorrência dessa inesperada sanção bíblica até descobrirem o erro, ou se o impressor e o revisor foram atirados numa fogueira juntos, mas o fato prova que nem a palavra de Deus está livre do poder dos revisores.

A mesma bíblia do rei James serve como um alerta (ou como o incentivo, dependendo de como se entender a história) para a possibilidade que o revisor tem de interferir no texto. O objetivo de James I era fazer uma versão definitiva da Bíblia em inglês, com aprovação real, para substituir todas as outras traduções da época, principalmente as que mostravam uma certa simpatia republicana nas entrelinhas (como a Bíblia de Genebra, feita por calvinistas e adotada pelos puritanos ingleses, e que é a única Bíblia da História em que Adão e Eva vestem calções. Para isso, James reuniu um time dividido entre os que cuidariam do Velho e do Novo Testamento, das partes proféticas e das partes poéticas, etc. Especula-se que as traduções dos trechos poéticos teriam sido distribuídas entre os poetas praticantes da época, para revisarem e, se fosse o caso, melhorarem, desde que não traíssem o original. Entre os poetas em atividade na Inglaterra de James I estava William Shakespeare. O que explicaria o fato de o nome de Shakespeare aparecer no Salmo 46 – “shake” é a 46ª palavra do salmo a contar do começo, “speare” a 46ª a contar do fim. Na tarefa de revisor, e incerto sobre a sua permanência na História como sonetista ou dramaturgo, Shakespeare teria inserido seu nome clandestina e disfarçadamente numa obra que sem dúvida sobreviveria aos séculos. (Infelizmente, diz Anthony Burgess, em cujo livro A mouthful of air a encontrei, há pouca probabilidade de esta história ser verdadeira. De qualquer maneira, vale para ilustrar a tentação que todo revisor deve sentir de deixar sua marca, como grafite, na criação alheia.)

Não posso me queixar dos revisores. Fora a vontade de reuni-los em algum lugar, fechar a porta e dizer “Vamos resolver de uma vez por todas a questão da colocação das vírgulas, mesmo que haja mortos”, acho que me têm tratado bem. Até me protegem. Costumo atirar os pronomes numa frase e deixá-los ficar onde caíram, certo de que o revisor os colocará no lugar adequado. Sempre deixo a crase ao arbítrio deles, que a usem se acharem que devem. E jamais uso a palavra “medra”, para livrá-los da tentação.

Texto originalmente publicado em: VIP Exame, mar. 1995, p. 36-37.

Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fjornalggn.com.br%2Fopiniao%2Frevisores-que-enrolam-editores-que-empacam%2F&psig=AOvVaw1LNipws7_QQKSPF3P3zaXo&ust=1606005342461000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCNDR5aqyku0CFQAAAAAdAAAAABAD

ENTENDENDO A CRÔNICA

1)   Em “Toda vez que manda um texto para ser publicado, o autor se coloca nas mãos do revisor, esperando que seu parceiro não falhe. Não há escritor que não empregue palavras como, por exemplo: “ônus” ou “carvalho” e depois fique metaforicamente de malas feitas, pronto para fugir do país se as palavras não saírem impressas como no original, por um lapso do revisor. Ou por sabotagem”. (1º parágrafo), o “lapso” ou “sabotagem” do revisor se daria por:

a)   Coesão malfeita, oriunda de um problema de colocação pronominal.

b)   Imprecisão vocabular, que redundaria em erro de concordância nominal.

c)   Erro de regência verbal, implicando dificuldade na interpretação.

d)   Uma confusão ortográfica, que provocaria modificação semântica no texto.

e)   Utilização de palavras eruditas, dando um caráter demasiadamente culto ao texto.

 2)   Leia o excerto extraído do texto de Verissimo e o comentário abaixo. Em seguida, identifique as afirmativas como verdadeiras ( V ) e falsas ( F ).

“Todo escritor convive com um terror permanente: o do erro de revisão.”

 Para evitar “o terror permanente do escritor”, ou seja, para revisar com segurança, o revisor deve levar em conta alguns fatores:

 (  ) o tipo e o nível de linguagem em que o texto está escrito.

(  ) a adequação da linguagem ao objetivo do texto e ao leitor.

(  ) a adequação dos conhecimentos veiculados pelo texto ao nível de conhecimentos de base do leitor a quem ele se destina, de modo que seja mantido o equilíbrio entre o “dado” e o “novo”.

(  ) a presença da linguagem plurissignificativa no texto literário.

(  ) a variação linguística, a complexidade, a preponderância de conotação que caracterizam o texto técnico. Assinale a alternativa que indica a sequência correta, de cima para baixo.

a. ( X ) V – V – V – V – F

b. (  ) V – F – V – F – V

c. (  ) V – V – V – F – F

d. (  ) F – V – F – V – F

e. (  ) F – V – V – F – V

3) Considerando as ideias presentes no 1º parágrafo, assinale a única alternativa correta:

a) Todo escritor comete erros, e por isso, seus textos necessariamente precisam de rigorosa revisão, de caráter gramatical.

b) Os escritores temem a questão da revisão, porque qualquer deslize de linguagem é motivo para críticas negativas.

c) O texto refere-se ao revisor como um profissional mais importante que o escritor, visto que ele tem poder de vida ou de morte sobre o autor.

d) O temor constante dos escritores em relação ao erro de revisão, não se justifica, pois é comum ouvir-se que não existe perfeição, e, dessa forma, perdoa-se qualquer desvio de linguagem nos textos.

 

4)Considerando o entendimento adequado da informação “Todo escritor convive com o terror permanente:  do erro da revisão.” Marque a alternativa que contradiz com a informação.

a) Nem todo escritor comete erro passível de revisão.

b) Todo escritor teme a revisão de seu texto, ainda que ela seja impecável.

c) Todo escritor escreve bem, mas a revisão é indispensável.

d) O terror maior na vida profissional de um escritor é a revisão de seu texto.

5) Em relação às ideias apresentadas no 6º parágrafo, assinale a alternativa correta.

a) A citação de um exemplo como o da Bíblia Má é irrelevante para a ideia defendida pelo autor de que todo texto é passível de revisão.

b) A observação acerca da revisão desatenta que caracteriza o texto da Bíblia Má funciona como argumento contrário à ideia defendida ao longo do texto.

c) O exemplo da revisão do texto da Bíblia Má funciona como elemento argumentativo que ratifica o ponto de vista do autor da importância de uma revisão cuidadosa.

d) O exemplo da revisão do texto bíblico retifica a argumentação defendida pelo autor de que nem Deus foi poupado do poder dos revisores.

6) Leia: “Grandes jornais seriam levados à falência por difamações involuntárias, exércitos inteiros seriam imobilizados por manuais de instrução militar sutilmente alterados, [...] (linhas 27-28).

Considerando a reescritura do trecho destacado nesse fragmento, observando-se o mesmo tempo da voz passiva,  segundo a norma padrão da língua escrita, e mantendo-se o mesmo sentido textual, assinale a estrutura correta.

a)   Grandes jornais serão levados à falência por difamações involuntárias.

b)   Grandes jornais deveriam ser levados à falência por difamações involuntárias.

c)   Levar-se-iam grandes jornais à falência por difamações involuntárias.

d)   Levar-se-ão grandes jornais à falência por difamações involuntárias.

7) Quanto ao uso da forma destacada no fragmento “Ninguém sabe se o volume de adultérios entre os cristãos de fala inglesa aumentou [...]” , Que alternativa está correta?

a) Inicia uma estrutura oracional de valor circunstancial, indicando uma condição para a realização do fato anunciado na oração anterior.

b) Pode ser retirado do fragmento sem alterar o sentido e a estrutura sintática do período.

c) Introduz uma oração de valor complementar que ressalva a incerteza do autor em relação ao aumento de adultério provocado por um erro de revisão.

d) Funciona como um conector de orações, interligando estruturas de mesmo valor sintático.

8) No fragmento “[...] Vamos resolver de uma vez por todas a questão da colocação das vírgulas, mesmo que haja mortos, [...]” o conectivo destacado pode ser substituído por outros sem alteração semântica. Nesse sentido julgue o único errado.

a) posto que.

b) se bem que.

c) além do que.

d) por mais que.

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