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segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

CONTO: FAMIGERADO - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: Famigerado
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          João Guimarães Rosa

        Foi de incerta feita – o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pé nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.
        Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse – o oh-homem-oh – com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto, pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
        Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.
        Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:
        -- “Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada…”
        Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.
        — “Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras… Estou vindo da Serra…”
        Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:
        — “Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso… Saiba que estou com ele à revelia… Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade… O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado…”
        Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.
        O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, insequentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:
        — “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado… faz-megerado… falmisgeraldo… familhas-gerado…?
        Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?
        — “Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro…”
        Se sério, se era. Transiu-se-me.
        — “Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras…
        É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias… Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam… A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?”
        Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
        — Famigerado?
        — “Sim senhor…” — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara.
        — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
        — “Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho…”
        Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.
        — Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”…
        — “Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”
        — Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos…
        — “Pois… e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?”
        — Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece louvor, respeito…
        — “Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?”
        Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
        — Olhe: eu, como o sr. Me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!…
        — “Ah, bem!…” — soltou, exultante.
        Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — “Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição…” — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d’água. Disse: — “Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!” Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — “Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não…” Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — “A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças… Só pra azedar a mandioca…” Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.

                                          ROSA, João Guimarães. Famigerado. In: Primeiras estórias. 15. ed.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001, p. 56-61.
Entendendo o conto:

01 – Quem conta a história?
      Um narrador em primeira pessoa que, vai se saber mais tarde, tem o “poder” da linguagem. Tal como o autor do texto.

02 – Como a história começa?
      Com a chegada de quatro homens a cavalo.

03 – Observe como, no início do conto, o narrador estuda o valentão. O que a aparência do visitante denota?
      Rudeza, violência, esperteza, braveza, perversidade.

04 – Todos os visitantes tinham a mesma aparência? Explique.
      Não. Os outros três pareciam ser prisioneiros do primeiro.

05 – Depois da identificação do visitante, o personagem-narrador ficou mais ou menos apreensivo?
      Ficou com muito mais medo. Afinal, o visitante era conhecido como homem perigosíssimo, já havia matado muita gente.

06 – O que queria o valentão?
      Saber o significado de uma palavra: famigerado.

07 – O que pensava o visitante sobre o significado da palavra?
      Pensava ele que poderia ser uma ofensa.

08 – Qual foi sua atitude quando soube do real significado da palavra?
      Sorriu, libertou seus prisioneiros, agradeceu e foi embora.

09 – “Certa vez” é uma fórmula muito usada para iniciar contos populares. De que maneira o autor inverte essa expressão?
      Utilizando a expressão “incerta feita”.

10 – Releia a seguinte frase: “Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado.” Observe que a frase aproxima-se da poesia. Por quê?
      Por causa da rima, da organização rítmica e das relações originais que o autor estabelece entre as palavras.

11 – A expressão “O medo me miava” foi criada pelo autor. A leitura do conto, porém, permite atribuir-lhe sentido. Que significado pode ser dado a tal expressão?
      Fiquei com muito medo. A expressão intensifica o medo do personagem narrador.

12 – A expressão “cabismeditado” também é uma criação linguística do autor. O que pode significar?
      Cabisbaixo, o personagem meditava.

13 – “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-gerado... famisgerado... familhasgerado...?” Observe a criatividade linguística de Damázio: não dominando o sentido da palavra, ele a desdobra em várias possibilidades de significação. Relacione a palavra “famanasse” com o sentido de famigerado.
      “Famanasse” se relaciona com “fama”.

14 – “Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes.” O que sugere essa frase sobre o estado de espírito do narrador?
      Medo e indecisão. Por um triz, ele poderia ser morto por Damázio.

15 – Observe que, depois do pedido de Damázio para que o narrador explicasse o sentido da palavra, o narrador pergunta duas vezes: “Famigerado?” Por que faz isso?
      O narrador procura encontrar formas para retardar a sua explicação.

16 – “Não há como que as grandezas manchas duma pessoa instruída.” Essa frase foi um elogio ao narrador? Explique.
      Sim. Damázio louva o poder de linguagem do narrador, o qual considera uma “grandeza macha”.

17 – O narrador analisa os gestos, atitudes e expressões faciais do valentão. Não só o que ele diz, mas também como diz significa muito. De que forma essa ideia também pode ser aplicada à literatura?
      Na literatura, também importa o como se dizem as coisa.

3 comentários:

  1. Só queria saber se ele realmente sabia o que era famigerado mas parece que não.

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  2. Eu até então, não entendi o que significa famigerado.

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  3. Dependendo a quem é ou ao ponto de vista da pessoa atribuída a palavra, pode ser uma ofensa ou um elogio.

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