CRÔNICA: QUANDO A ESCOLA É DE
VIDRO
Ruth Rocha
Naquele tempo
eu até que achava natural que as coisas fossem daquele jeito.
Eu nem
desconfiava que existissem lugares muito diferentes...
Eu ia pra
escola todos os dias de manhã e quando chegava, logo, logo, eu tinha que me
meter no vidro.
É, no vidro!
Cada menino ou
menina tinha um vidro e o vidro não dependia do tamanho de cada um, não!
O vidro
dependia da classe em que a gente estudava.
Se a gente
reclamava?
Alguns
reclamavam.
E então os
grandes diziam que sempre tinha sido assim; ia ser assim o resto da vida.
Uma
professora, que eu tinha, dizia que ela sempre tinha usado vidro, até pra
dormir, por isso é que ela tinha boa postura.
Uma vez um
colega meu disse pra professora que existem lugares onde as escolas não usam
vidro nenhum, e as crianças podem crescer à vontade.
Então a
professora respondeu que era mentira, que isso era conversa de comunistas. Ou
até coisa pior...
Tinha menino
que tinha até que sair da escola porque não havia jeito de se acomodar nos
vidros. E tinha uns que mesmo quando saíam dos vidros ficavam do mesmo
jeitinho, meio encolhidos, como se estivessem tão acostumados que até
estranhavam sair dos vidros.
Mas uma vez,
veio para a minha escola um menino, que parece que era favelado, carente, essas
coisas que as pessoas dizem pra não dizer que é pobre.
Aí não tinha
vidro pra botar esse menino.
Então os
professores achavam que não fazia mal não, já que ele não pagava a escola
mesmo...
Então o
Firuli, ele se chamava Firuli, começou a assistir as aulas sem estar dentro do
vidro.
O engraçado é
que o Firuli desenhava melhor que qualquer um, o Firula respondia perguntas
mais depressa que os outros, o Firuli era muito mais engraçado...
E os
professores não gostavam nada disso...
Afinal, o
Firuli podia ser um mau exemplo pra nós...
E nós
morríamos de inveja dele, que ficava no bem-bom, de perna esticada, quando
queria ele espreguiçava, e até meio que gozava a cara da gente que vivia preso.
Então um dia
um menino da minha classe falou que também não ia entrar no vidro.
Dona Demência
ficou furiosa, deu um coque nele e ele acabou tendo que se meter no vidro, como
qualquer um.
Mas no dia
seguinte duas meninas resolveram que não iam entrar no vidro também:
--- Se o
Firuli pode por que é que nós não podemos?
Mas Dona Demência não era sopa.
Deu um coque em cada uma, e lá se foram
elas, cada uma pro seu vidro...
Já no outro dia
a coisa tinha engrossado.
Já tinha oito
meninos que não queriam saber de entrar nos vidros.
Dona Demência
perdeu a paciência e mandou chamar seu Hermenegildo, que era o diretor lá da
escola.
Seu
Hermenegildo chegou muito desconfiado:
--- Aposto que
essa rebelião foi fomentada pelo Firuli. É um perigo esse tipo de gente aqui na
escola. Um perigo!
A gente não
sabia o que é que queria dizer fomentada, mas entendeu muito bem que ele estava
falando mal do Firuli.
E seu
Hermenegildo não conversou mais. Começou a pegar os meninos um por um e enfiar
à força dentro dos vidros.
Mas nós
estávamos loucos para sair também, e para cada um que ele conseguia enfiar
dentro do vidro --- já tinha dois fora.
E todo mundo
começou a correr do seu Hermenegildo, que era pra ele não pegar a gente, e na
correria começamos a derrubar os vidros.
E quebramos um
vidro, depois quebramos outro e outro mais e doa Demência já estava na janela
gritando --- SOCORRO! VÂNDALOS! BÁRBAROS!
(Pra ela
bárbaro era xingação).
Chamem os
Bombeiros, o Exército da Salvação, a Polícia Feminina...
Os professores
das outras classes mandaram, cada um, um aluno para ver o que estava
acontecendo.
E quando os
alunos voltaram e contaram a farra que estava na 6ª série todo mundo ficou
assanhado e começou a sair dos vidros.
Na pressa de
sair começaram a esbarrar uns nos outros e os vidros começaram a cair e a
quebrar.
Foi um custo
botar ordem na escola e o diretor achou melhor mandar todo mundo pra casa, que
era pra pensar num castigo bem grande, pro dia seguinte.
Então eles
descobriram que a maior parte dos vidros estava quebrada e que ia ficar muito
caro comprar aquela vidraria toda de novo.
Então diante
disso seu Hermenegildo pensou um bocadinho, e começou a contar pra todo mundo
que em outros lugares tinha umas escolas que não usavam vidro nem nada, e que
dava bem certo, as crianças gostavam muito mais.
E que de agora
em diante ia ser assim: nada de vidro, cada um podia se esticar um bocadinho,
não precisava ficar duro nem nada, e que a escola agora ia se chamar Escola
Experimental.
Dona Demência,
que apesar do nome era louca nem nada, ainda timidamente:
--- Mas seu
Hermenegildo, Escola Experimental não é bem isso...
Seu
Hermenegildo não se perturbou:
--- Não tem
importância. A gente começa experimentando isso. Depois a gente experimenta
outras coisas...
E foi assim
que na minha terra começaram a aparecer as Escolas Experimentais.
Depois
aconteceram muitas coisas, que um dia eu ainda vou contar...
ROCHA, Ruth. Este
admirável mundo louco. São Paulo: Salamandra, 1986.
1 – Por que os alunos se acostumaram a estudar nessa escola
em que tinham que ficar dentro de recipientes de vidro?
Eles
não conheciam nenhuma escola diferente, e todos diziam que aquela era a forma
de aprender.
2 – Que consequências o hábito de estudar dentro de vidros
causava aos alunos?
Eles
se tornavam tímidos, com medo de das opiniões ou de agir de maneira diferente
da escolhida pelos outros, porque ficavam inseguros e dependentes.
3 – O que acontecia com os meninos que reclamavam?
Eram
informados que aquela era a única maneira de estudar. Mudavam de escola, mas
nem sempre perdiam a postura adquirida por ficarem dentro dos vidros.
4 – Que acontecimento alterou, aos poucos, as regras da
escola? Por quê?
A
chegada de um novo aluno que ficou fora do vidro por ser pobre e não poder
pagar a escola.
5 – Por que a liberdade de Firuli, o novo aluno, começou a
incomodar os professores?
Firuli
aprendia com mais facilidade, era melhor que os outros alunos e alegre. Tudo
isso causava inveja nos colegas que começaram a reagir.
6 – Qual foi a atitude de Dona Demência ao ver que os alunos
queriam ficar fora do vidro?
A
professora repreendeu os alunos, no início, com um coque; depois, pediu ajuda
ao diretor que também não conseguiu evitar a rebelião da classe.
7 – Por que os vidros, ao se quebrarem, facilitaram as
mudanças na escola?
A
compra de novos vidros ficaria muito cara, por isso o diretor achou melhor não
usar mais vidros e deixar os alunos livres, assim como faziam em outras
escolas.
8 – A ideia de alunos obrigados a estudar dentro de vidros
nos permite pensar em situações reais. Identifique-as.
Permite-nos pensar em alunos obrigados a permanecer quietos
em seus lugares, sem dizer nada, apenas ouvindo e obedecendo. São coagidos a
fazer tudo exatamente o que os professores mandam, calados e submissos.
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