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domingo, 16 de abril de 2017

CRÔNICA: QUANDO A ESCOLA É DE VIDRO - RUTH ROCHA - COM GABARITO

CRÔNICA: QUANDO A ESCOLA É DE VIDRO
                      Ruth Rocha

         Naquele tempo eu até que achava natural que as coisas fossem daquele jeito.
         Eu nem desconfiava que existissem lugares muito diferentes...
         Eu ia pra escola todos os dias de manhã e quando chegava, logo, logo, eu tinha que me meter no vidro.
         É, no vidro!
         Cada menino ou menina tinha um vidro e o vidro não dependia do tamanho de cada um, não!
         O vidro dependia da classe em que a gente estudava.
         Se a gente reclamava?
         Alguns reclamavam.
         E então os grandes diziam que sempre tinha sido assim; ia ser assim o resto da vida.
         Uma professora, que eu tinha, dizia que ela sempre tinha usado vidro, até pra dormir, por isso é que ela tinha boa postura.
         Uma vez um colega meu disse pra professora que existem lugares onde as escolas não usam vidro nenhum, e as crianças podem crescer à vontade.
         Então a professora respondeu que era mentira, que isso era conversa de comunistas. Ou até coisa pior...
         Tinha menino que tinha até que sair da escola porque não havia jeito de se acomodar nos vidros. E tinha uns que mesmo quando saíam dos vidros ficavam do mesmo jeitinho, meio encolhidos, como se estivessem tão acostumados que até estranhavam sair dos vidros.
         Mas uma vez, veio para a minha escola um menino, que parece que era favelado, carente, essas coisas que as pessoas dizem pra não dizer que é pobre.
         Aí não tinha vidro pra botar esse menino.
         Então os professores achavam que não fazia mal não, já que ele não pagava a escola mesmo...
          Então o Firuli, ele se chamava Firuli, começou a assistir as aulas sem estar dentro do vidro.
         O engraçado é que o Firuli desenhava melhor que qualquer um, o Firula respondia perguntas mais depressa que os outros, o Firuli era muito mais engraçado...
         E os professores não gostavam nada disso...
         Afinal, o Firuli podia ser um mau exemplo pra nós...
         E nós morríamos de inveja dele, que ficava no bem-bom, de perna esticada, quando queria ele espreguiçava, e até meio que gozava a cara da gente que vivia preso.
         Então um dia um menino da minha classe falou que também não ia entrar no vidro.
         Dona Demência ficou furiosa, deu um coque nele e ele acabou tendo que se meter no vidro, como qualquer um.
         Mas no dia seguinte duas meninas resolveram que não iam entrar no vidro também:
         --- Se o Firuli pode por que é que nós não podemos?
        Mas Dona Demência não era sopa.
        Deu um coque em cada uma, e lá se foram elas, cada uma pro seu vidro...
        Já no outro dia a coisa tinha engrossado.
        Já tinha oito meninos que não queriam saber de entrar nos vidros.
        Dona Demência perdeu a paciência e mandou chamar seu Hermenegildo, que era o diretor lá da escola.
        Seu Hermenegildo chegou muito desconfiado:
        --- Aposto que essa rebelião foi fomentada pelo Firuli. É um perigo esse tipo de gente aqui na escola. Um perigo!
        A gente não sabia o que é que queria dizer fomentada, mas entendeu muito bem que ele estava falando mal do Firuli.
        E seu Hermenegildo não conversou mais. Começou a pegar os meninos um por um e enfiar à força dentro dos vidros.
        Mas nós estávamos loucos para sair também, e para cada um que ele conseguia enfiar dentro do vidro --- já tinha dois fora.
        E todo mundo começou a correr do seu Hermenegildo, que era pra ele não pegar a gente, e na correria começamos a derrubar os vidros.
        E quebramos um vidro, depois quebramos outro e outro mais e doa Demência já estava na janela gritando --- SOCORRO! VÂNDALOS! BÁRBAROS!
         (Pra ela bárbaro era xingação).
         Chamem os Bombeiros, o Exército da Salvação, a Polícia Feminina...
         Os professores das outras classes mandaram, cada um, um aluno para ver o que estava acontecendo.
         E quando os alunos voltaram e contaram a farra que estava na 6ª série todo mundo ficou assanhado e começou a sair dos vidros.
         Na pressa de sair começaram a esbarrar uns nos outros e os vidros começaram a cair e a quebrar.
         Foi um custo botar ordem na escola e o diretor achou melhor mandar todo mundo pra casa, que era pra pensar num castigo bem grande, pro dia seguinte.
         Então eles descobriram que a maior parte dos vidros estava quebrada e que ia ficar muito caro comprar aquela vidraria toda de novo.
         Então diante disso seu Hermenegildo pensou um bocadinho, e começou a contar pra todo mundo que em outros lugares tinha umas escolas que não usavam vidro nem nada, e que dava bem certo, as crianças gostavam muito mais.
         E que de agora em diante ia ser assim: nada de vidro, cada um podia se esticar um bocadinho, não precisava ficar duro nem nada, e que a escola agora ia se chamar Escola Experimental.
         Dona Demência, que apesar do nome era louca nem nada, ainda timidamente:
         --- Mas seu Hermenegildo, Escola Experimental não é bem isso...
         Seu Hermenegildo não se perturbou:
         --- Não tem importância. A gente começa experimentando isso. Depois a gente experimenta outras coisas...
         E foi assim que na minha terra começaram a aparecer as Escolas Experimentais.
         Depois aconteceram muitas coisas, que um dia eu ainda vou contar...

  ROCHA, Ruth. Este admirável mundo louco. São Paulo: Salamandra, 1986.

1 – Por que os alunos se acostumaram a estudar nessa escola em que tinham que ficar dentro de recipientes de vidro?
       Eles não conheciam nenhuma escola diferente, e todos diziam que aquela era a forma de aprender.

2 – Que consequências o hábito de estudar dentro de vidros causava aos alunos?
       Eles se tornavam tímidos, com medo de das opiniões ou de agir de maneira diferente da escolhida pelos outros, porque ficavam inseguros e dependentes.

3 – O que acontecia com os meninos que reclamavam?
      Eram informados que aquela era a única maneira de estudar. Mudavam de escola, mas nem sempre perdiam a postura adquirida por ficarem dentro dos vidros.

4 – Que acontecimento alterou, aos poucos, as regras da escola? Por quê?
      A chegada de um novo aluno que ficou fora do vidro por ser pobre e não poder pagar a escola.

5 – Por que a liberdade de Firuli, o novo aluno, começou a incomodar os professores?
       Firuli aprendia com mais facilidade, era melhor que os outros alunos e alegre. Tudo isso causava inveja nos colegas que começaram a reagir.

6 – Qual foi a atitude de Dona Demência ao ver que os alunos queriam ficar fora do vidro?
       A professora repreendeu os alunos, no início, com um coque; depois, pediu ajuda ao diretor que também não conseguiu evitar a rebelião da classe.

7 – Por que os vidros, ao se quebrarem, facilitaram as mudanças na escola?
       A compra de novos vidros ficaria muito cara, por isso o diretor achou melhor não usar mais vidros e deixar os alunos livres, assim como faziam em outras escolas.

8 – A ideia de alunos obrigados a estudar dentro de vidros nos permite pensar em situações reais. Identifique-as.
       Permite-nos pensar em alunos obrigados a permanecer quietos em seus lugares, sem dizer nada, apenas ouvindo e obedecendo. São coagidos a fazer tudo exatamente o que os professores mandam, calados e submissos.



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