TRISTE FIM DE
POLICARPO QUARESMA
Noiva havia
quase cinco anos, Ismênia já se sentia meio casada. Esse sentimento junto à sua
natureza pobre fê-la não sentir um pouco mais de alegria. Ficou no mesmo. Casar,
para ela, não era negócio de paixão. nem se inseria no sentimento ou nos
sentidos: era uma ideia, uma pura ideia. Aquela sua inteligência rudimentar
tinha separado da ideia de casar o amor, o prazer dos sentidos, uma tal ou qual
liberdade, a maternidade, até o noivo. Desde menina, ouvia a mamãe dizer: “Aprenda
a fazer isso, porque quando você se casar” ... ou senão: “Você precisa aprender
a pregar botões, porque quando você se casar...”
A todo instante
e a toda hora, lá vinha aquele --- “porque, quando você se casar...” --- e a
menina foi se convencendo de que toda a existência só tendia para o casamento.
A instrução, as satisfações íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se
resumia numa cousa: casar.
De resto, não
era só dentro de sua família que ela encontrava aquela preocupação. No colégio,
na rua, em casa das famílias conhecidas, só se falava em casar. “Sabe, Dona
Maricota, a Lili casou-se, não fez grande negócio, pois parece que o noivo não
é lá grande cousa”; ou então: “A Zezé está doida para arranjar casamento, mas é
tão feia, meu Deus! ...”
A vida, o
mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das ideias, o nosso próprio direito
à felicidade, foram parecendo ninharias para aquele cerebrozinho; e, de tal
forma casar-se se lhe representou cousa importante, uma espécie de dever, que
não se casar, ficar solteira, “tia”, parecia-lhe um crime, uma vergonha.
De natureza
muito pobre, sem capacidade para sentir qualquer cousa profunda e intensamente,
sem quantidade emocional para a paixão ou para um grande afeto, na sua
inteligência a ideia de “casar-se” incrustou-se teimosamente como uma obsessão.
Ela não era feia; amorenada, com os seus
traços acanhados, o narizinho mal feito, mas galante, não muito baixa nem muito
magra e a sua aparência de bondade passiva, de indolência de corpo, de ideia e
de sentidos --- era até um bom tipo das meninas a que os namorados chamam --- “bonitinhas”.
O seu traço de beleza dominante, porém, eram os seus cabelos: uns bastos
cabelos castanhos, com tons de ouro, sedosos até ao olhar.
Aos dezenove
anos arranjou namoro com o Cavalcânti, e à fraqueza de sua vontade e ao temor
de não encontrar marido não foi estranha a facilidade com que o futuro dentista
a conquistou.
LIMA BARRETO. Triste fim de
Policarpo Quaresma (1. frag.).
São
Paulo, Ática, 1983. p. 38-9.
1 – A proximidade do casamento não alterou os sentimentos de
Ismênia. Copie do primeiro parágrafo a frase que comprova essa afirmativa.
“Ficou no mesmo”.
2 – Para Ismênia, o casamento baseia-se no sentimento
individual ou na pressão social?
Na
pressão social, visto que lhe foi incutida, durante toda a vida, a ideia de que
ficar solteira era uma grande tragédia.
3 – Qual é a denúncia que o autor faz a respeito da educação
recebida por Ismênia?
O
aluno deverá deduzir que a personagem, graças à influência do meio familiar e
social, tem uma ideia distorcida do amor e do casamento.
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