A MORENINHA
Joaquim Manuel de Macedo
Um sarau é o
bocado mais delicioso que temos, de telhado abaixo.
Em um sarau
todo o mundo tem que fazer. O diplomata ajusta, com um copo de champanha na
mão, os mais intrincados negócios; todos murmuram e não há quem deixe de ser
murmurado. O velho lembra-se dos minuetes e das cantigas do seu tempo, e o moço
goza de todos os regalos da sua época; as moças são no sarau como as estrelas
no céu; estão no seu elemento; aqui uma, cantando suave cavatina, eleva-se
vaidosa nas asas dos aplausos, por entre os quais surde, às vezes, um
bravíssimo inopinado, que solta de lá da sala do jogo o parceiro que acaba de
ganhar sua partida do écarté, mesmo na ocasião em que a moça se espicha
completamente, desafinando um sustenido; daí a pouco vão outras pelo braço de
seus pares, se deslizando pela sala e
marchando em seu passeio, mais a compasso que qualquer de nossos batalhões da
Guarda Nacional, ao mesmo tempo que conversam sempre sobre objetos inocentes
que movem olhaduras e risadinhas apreciáveis. Outras criticam de uma gorducha
vovó, que ensaca nos bolsos meia bandeja de doces que vieram para o chá, e que
ela leva aos pequenos que, diz, lhe ficaram em casa. Ali vê-se um ataviado
dândi que dirige mil finezas a uma senhora idosa, tendo os olhos pregados na
sinhá, que senta-se ao lado. Finalmente, no sarau não é essencial ter cabeça
nem boca, porque, para alguns é regra, durante ele, pensar pelos pés e falar pelos
olhos.
E o mais é
que nós estamos num sarau: inúmeros batéis conduziram da corte para a ilha
de... senhoras e senhores, recomendáveis por caráter e qualidade: alegre,
numerosa e escolhida sociedade enche a grande casa, que brilha e mostra em toda
a parte borbulhar o prazer e o bom gosto.
Entre todas
essas elegantes e agradáveis moças, que com aturado empenho se esforçam por ver
qual delas vence em graças, encantos e donaires, certo que sobrepuja a travessa
Moreninha, princesa daquela festa.
Hábil menina
é ela! Nunca seu amor-próprio produziu com tanto estudo seu toucador e,
contudo, dir-se-ia que o gênio da simplicidade a penteara e vestira. Enquanto
as outras moças haviam esgotado a paciência de seus cabeleireiros, posto em tributo
toda a habilidade das modistas da rua do Ouvidor e coberto seus colos com as
mais ricas e preciosas joias, d. Carolina dividiu seus cabelos em duas tranças,
que deixou cair pelas costas; não quis adornar o pescoço com seu adereço de
brilhantes nem com seu lindo colar de esmeraldas; vestiu um finíssimo, mas
simples vestido de garça, que até pecava contra a moda reinante, por não ser
sobejamente comprido. Vindo assim aparecer na sala, arrebatou todas as vistas e
atenções.
Porém, se um
atento observador a estudasse, descobriria que ela adrede se mostrava assim,
para ostentar as longas e ondeadas madeixas negras, em belo contraste com a
alvura de seu vestido branco, e par mostrar, todo nu, o elevado colo de
alabastro, que tanto a aformoseava, e que seu pecado contra a moda reinante não
era senão um meio sutil de que se aproveitara para deixar ver o pezinho mais
bem feito e mais pequeno que se pode imaginar.
MACEDO, Joaquim Manuel de. A Moreninha. 9. ed. São Paulo,
Ática,
1979. p. 80-1.
Minuete: antiga dança francesa.
Cavatina: pequena ária.
Écarté: jogo entre dois parceiros com 32
cartas.
Ataviado: enfeitado, ornado.
Dândi: homem que se veste com extremo
apuro; almofadinha.
Batel: pequeno barco.
Toucador: espécie de cômoda encimada por um
espelho; penteadeira.
Adereço: joia, objeto de adorno.
Sobejamente: demasiadamente.
Adrede: intencionalmente; de propósito.
Colo: parte do corpo formada pelo pescoço
e ombros.
Alabastro: rocha pouco dura e muito branca;
brancura, alvura.
1 – A que classe social pertencem as personagens que aparecem
no texto?
Pertencem à elite da sociedade carioca da época.
2 – Segundo Werneck Sodré, Macedo refletiu as “trivialidades”
dos meados do século XIX. Identifique, no texto lido, elementos que denotam
essa trivialidade.
A
preocupação com a indumentária, os galanteios, os mexericos.
3 – O baile era muito importante na vida social e sentimental
do século passado, pois as mulheres viviam reclusas no ambiente doméstico e o
baile propiciava os encontros que poderiam se transformar em namoro e
casamento. Como se reflete essa preocupação na indumentária das mulheres?
Todas
procuravam atingir o requinte máximo de elegância, de acordo com a moda da
época.
4 – Que característica romântica se pode notar na descrição
da personagem central da narrativa?
A
personagem é idealizada.
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