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quinta-feira, 27 de abril de 2017

INOCÊNCIA - VISCONDE DE TAUNAY - (FRAGMENTO) COM GABARITO

INOCÊNCIA
        Visconde de Taunay

         Descrever o abalo que sofreu Inocência ao dar, cara a cara, com Manecão fora impossível. Debuxaram-se-lhe tão vivos na fisionomia o espanto e o terror, que o reparo, não só da parte do noivo, como do próprio pai, habitualmente tão despreocupado, foi repentino.
        --- Que tem você? perguntou Pereira apressadamente.
        --- Homem, a modos, observou Manecão com tristeza, que meto medo à senhora dona...
        Batiam de comoção os queixos da pobrezinha: nervoso estremecimento balanceava-lhe o corpo todo.
        A ela se achegou o mineiro e pegou-lhe o braço.
        --- Mas você não tem febre?... Que é isso, rapariga de Deus?
        Depois, meio risonho e voltando-se para Manecão:
        --- Já sei o que é... ficou toda fora de si... vendo o que não contava ver... Vamos, Nocência, deixe-se de tolices.
        --- Eu quero, murmurou ela, voltar para o meu quarto.
        E encostando-se à parede, com passo vacilante se encaminhou para dentro.
        Ficara sombrio o capataz.
        De sobrecenho carregado, recostara-se à mesa e fora, com a vista, seguindo aquela a quem já chamava esposa.
        Sentou-se defronte dele Pereira com ar de admiração.
        --- E que tal? exclamou por fim... Ninguém pode contar com mulheres, iche!
       Nada retorquiu o outro.
       --- Sua filha, indagou ele de repente com voz muito arrastada e parado a cada palavra, viu alguém?
       Descorou o mineiro e quase a balbuciar:
       --- Não... isto é, viu... mas todos os dias... ela vê gente... Por que me pergunta isso?
       --- Por nada...
       --- Não; ... explique-se... Você faz assim uma pergunta que me deixa um pouco... anarquizado. Este negócio é muito, muito sério. Dei-lhe palavra de honra que minha filha haverá de ser sua mulher... a cidade já sabe e ... comigo não quero histórias... É o que lhe digo.
       --- Está bom, replicou ele, nada de precipitações. Toda a vida fui assim ... Já volto; vou ver onde para o meu cavalo.
       E saiu, deixando Pereira entregue a encontradas suposições.
       Decorreram dias, sem que os dois tocassem mais no assunto que lhes moía o coração. Ambos, calmos na aparência, viviam comum, visitavam as plantações, comiam juntos, caçavam e só se separavam à hora de dormir, quando o mineiro ia para dentro e Manecão para a sala dos hóspedes.
       Inocência não aparecia.
       Mal saía do quarto, pretextando recaída de sezões: entretanto, não era o seu corpo o doente, não; a sua alma, sim, essa sofria morte e paixão; e amargas lágrimas, sobretudo à noite, lhe inundavam o rosto.
       --- Meu Deus, exclamou ela, que será de mim? Nossa senhora da Guia me socorra. Que pode uma infeliz rapariga dos sertões contra tanta desgraça? Eu vivia tão sossegada neste retiro, amparada por meu pai... que agora tanto medo me mete... Deus do céu, piedade, piedade.
       E de joelhos, diante de tosco oratório alumiado por esguias velas de cera, orava com fervor, balbuciando as preces que costumava recitar antes de se deitar.
       Uma noite, disse ela:
       --- Quisera uma reza que me enchesse mais o coração... que mais me aliviasse o peso da agonia de hoje...
       E, como levada de inspiração, prostrou-se murmurando:
       --- Minha Nossa Senhora mãe da Virgem que nunca pecou, ide adiante de Deus. Pedi-lhe que tenha pena de mim... que não me deixe assim nesta dor cá de dentro tão cruel. Estendei a vossa mão sobre mim. Se é crime amar a Cirino, mandai-me a morte. Que culpa tenho eu do que me sucede? Rezei tanto, para não gostar deste homem! Tudo... Tudo... foi inútil! Por que então este suplício de todos os momentos? Nem sequer tem alívio no sono? sempre ele... ele!
       Às vezes, sentia Inocência em si ímpetos de resistência: era a natureza do pai que acordava, natureza forte, teimosa.
       --- Hei de ir, dizia então com olhos a chamejar, à igreja, mas de rastos! No rosto do padre gritei: Não, Não! ... Matem-me... mas eu não quero...
       Quando a lembrança de Cirino se lhe apresentava mais viva, estorcia-se de desespero. A paixão punha lhe o peito em fogo...
       --- Que é isto, Santo Deus? Aquele homem me teria botado um mau olhado? Cirino, Cirino, volta, vem tomar-me... leva-me! ... eu morro! Sou tua, só tua... de mais ninguém.
                    VISCONDE DE TAUNAY. Inocência. 7. ed. São Paulo, Ática, 1978.
                                                                                                                   p. 109-10.
Sobrecenho: semblante severo; carrancudo.
Sezão: febre intermitente ou periódica.

1 – Em que linha fica evidente a preocupação de Pereira em manter a palavra empenhada junto a Manecão?
       Linhas 30 e 31.

2 – Das características românticas abaixo relacionadas, quais são as que se aplicam ao texto?
a)     Idealização.
b)    Evasão do tempo;
c)     Supervalorização do amor.
d)    Supervalorização da natureza.
e)     Religiosidade.

3 – O aproveitamento da fala do sertanejo é uma das características marcantes da linguagem de Taunay. Transcreva do texto quatro termos que comprovam essa afirmativa e dê o significado de cada um deles.
       Iche! = Virgem! (interjeição)                haverá = haveria, teria
       Anarquisado = perturbado                   ansim = assim
       Percipitação = precipitação, pressa.


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