Conto: LIVRO – eu te lendo – Fragmento
Lygia Bojunga Nunes
[...]
Eu tinha sete anos quando ganhei de
presente um livro do Monteiro Lobato chamado Reinações de Narizinho. Um livro
grosso assim. Só de olhar pra ele eu me senti exausta. Dei um dos muito
obrigada mais sem convicção da minha vida, sumi com o livro num canto do
armário, e voltei pras minhas histórias em quadrinho.
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjb2AkXgTgfe7JNfr8ge9F5wx-AyOUuD5cUKp8CrXXym3Q7fTQpU3JfAwNyMyHa0K_elrAlfVdV_nKToyPOr55sVx_Y_0CGhoUeZLU-EpTW4Qfpw2JiG8Dk4tp-8oe_Oa0xIlH3t7rVLqRTpZUeMh9awa5shVWEIcqDpX0LlfoqB_A3iEUkW8mlmD6s08Q/s320/nARIZINHO.jpg Eu estava superfresquinha de recém ter
aprendido a ler, e andava às voltas com história em quadrinho. Era um pessoal
legal, eu gostava deles, mas, sei lá! era uma gente tão diferente da gente.
Eles moravam nuns lugares que eu nunca tinha ouvido falar; eles tinham cada
nome tão estranho (às vezes até acabando com h!), como é? como é mesmo que se
diz esse Flash? Flachi? Flachi Gordon? E se eu contava, por exemplo, eu hoje li
que o Mandrake perdeu a cartola, tinha sempre alguém por perto aprendendo
inglês pra querer mostrar que sabia mais que eu: não é assim que se diz, sua
boba, é Mandreike.
[...]
E aí o meu tio, que tinha me dado
Reinações de Narizinho (e que era um tio que eu adorava), chegou lá em casa e
quis saber, então? gostou do livro? Eu fiz uma cara meio vaga.
Passados uns tempos ele me cobrou outra
vez, como é? já leu? Não tinha outro jeito: tirei o livro do armário, tirei a
poeira do livro, tirei a coragem não sei de onde, e comecei a ler: "Numa
casinha branca, lá no sítio do Picapau Amarelo..." E quando cheguei no fim
do livro eu comecei tudo de novo, numa casinha branca lá no sítio do Picapau
Amarelo, e fui indo toda a vida outra vez, voltando atrás num capítulo,
revisitando outro, lendo de trás pra frente, e aquela gente toda do sítio do
Picapau Amarelo começou a virar a minha gente.
Muito especialmente uma boneca de pano
chamada Emília, que fazia e dizia tudo que vinha na cabeça dela. A Emília me
deslumbrava! nossa, como é que ela teve coragem de dizer isso? ah, eu vou fazer
isso também!
Mas longe de imaginar que eu estava
vivendo o meu primeiro caso de amor.
[...]
Esse acordar da imaginação começou a
mudar tudo. De repente, já não me bastava cantar junto a música que tocava no
rádio só repetindo as palavras e mais nada. Eu me lembro de uma música que eu
cantava sempre, e que falava numa tal Maria abrindo a janela numa manhã de sol
e laralalá não sei o quê, mas que, agora, eu cantava querendo imaginar a
janela: era verde? tinha veneziana? E a Maria como é que era? ela era gorda,
ela era magra, ela tinha uma franja assim feito eu?
Na hora de pular amarelinha, a pedra
que eu ia jogar já ficava no ar; a minha imaginação imaginando: e se em vez de
jogar a pedra assim, eu jogo ela assim?
Mas o que a minha imaginação queria
mesmo era voltar pr’aquele mundo encantado que o Lobato tinha criado, e ficar
imaginando o tamanho e a cor da pedrinha que a Emília tinha engolido (e que não
era pedrinha coisa nenhuma, era uma pílula falante); e ficar imaginando que
jeito eu ia dar pra me encontrar com a Dona Aranha costureira, que tinha feito
o vestido de casamento da Narizinho, e pedir pra, na hora do meu casamento, ela
fazer o meu vestido também.
[...]
BOJUNGA, Lygia. Livro – eu te lendo. Disponível em: www.ibbycompostela2010.org/descarregas/cp/Cp_IBBY2010_3-po.pdf. Acesso em: 20 jul. 2018.
Fonte: Da escola para o
mundo. Roberta Hernandes; Ricardo Gonçalves Barreto. Ensino Fundamental – Anos
finais. Projetos integradores 8º e 9º anos. Ed. Ática. São Paulo, 1ª edição,
2018. p. 16.
Entendendo o conto:
01
– Qual foi a reação inicial da narradora ao ganhar o livro "Reinações de
Narizinho" e por que ela teve essa reação?
A reação inicial
da narradora, aos sete anos, foi de falta de convicção e exaustão só de olhar
para o livro, que era "grosso assim". Ela o considerou tão
desanimador que o escondeu "num canto do armário" e preferiu
continuar lendo suas histórias em quadrinho.
02
– O que a narradora achava diferente ou problemático nas histórias em
quadrinhos que ela lia, mesmo gostando delas?
Ela gostava dos
personagens, mas sentia que eram "tão diferentes da gente". Eles
moravam em lugares que ela nunca tinha ouvido falar e tinham nomes estranhos
(muitas vezes terminando com H), como Flash Gordon (que ela tentava pronunciar
como Flachi). Além disso, havia a interferência de outras pessoas que corrigiam
a pronúncia dos nomes em inglês, como Mandrake (Mandreike).
03
– O que motivou a narradora a finalmente começar a ler o livro de Monteiro
Lobato e como a leitura a impactou?
Ela foi motivada
pela cobrança insistente do seu tio (que ela adorava) que havia dado o livro. O
impacto foi profundo: após terminar a leitura da primeira vez, ela começou tudo
de novo, lendo e relendo trechos, o que fez com que "aquela gente toda do
sítio do Picapau Amarelo começou a virar a minha gente."
04
– Qual personagem do Sítio do Picapau Amarelo deslumbrou a narradora e qual
característica dessa personagem a inspirou?
A personagem que
a deslumbrou foi a boneca de pano Emília. A característica que a inspirou foi o
fato de Emília fazer e dizer tudo que vinha na cabeça dela. A narradora se
perguntava: "nossa, como é que ela teve coragem de dizer isso? ah, eu vou
fazer isso também!".
05
– De que forma a leitura do livro de Monteiro Lobato "acordou" a
imaginação da narradora e mudou sua percepção de outras atividades?
O "acordar
da imaginação" começou a mudar tudo. Em vez de apenas repetir palavras ao
cantar músicas no rádio, ela passava a imaginar os detalhes da cena (ex: se a
janela era verde, se Maria era gorda ou magra). Além disso, na hora de pular
amarelinha, ela ficava imaginando possibilidades diferentes para o movimento da
pedra, transportando a imaginação para o cotidiano.
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