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domingo, 3 de agosto de 2025

NOTÍCIA: PALMAS E PRECONCEITOS - PAULO CASTAGNA - COM GABARITO

 Notícia: Palmas e preconceitos

        Talento não bastava: para se aa primeira cantora brasileira aplaudida na Europa, Lapinha teve de esconder sua pele negra

Por Paulo Castagna, 3/1/2011

        Óperas já eram encenadas no Brasil durante o século XVIII. Foi nesse período que surgiu, no Rio de Janeiro, Joaquina Lapinha, a primeira cantora lírica brasileira que virou celebridade, e sobre quem pouca coisa se sabe. O sucesso de suas apresentações a levou a fazer uma longa e bem-sucedida temporada na Europa. Mesmo assim, até hoje não foram descobertos retratos que mostrem suas feições. Só existem citações de seu nome em documentos da época, principalmente programas teatrais, partituras e críticas musicais. Sua origem é tão misteriosa quanto sua morte. O pouco que se sabe dela é que, por ser negra, teve que vencer diversos entraves sociais para que pudesse deleitar as plateias cariocas e lusitanas.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhaXXMHUOzTIPWS8hcvWUyvkB56UpFj9d1h9E-zANnwThBaQkWL7tfv5idUiQHr2jbBWlLmmdQ-Qrd7k7-MNyxESCpzIRInsdNMohcw1QDXydC4IPSSr7LXqbq5AUOYRnIUJMDbsbHaucg94O8WyshU2DzY975SFUJAQFrQMcgob41wNVxGnnVtFs2sgdA/s1600/download.jpg


        Mesmo na Europa, raramente havia cantoras de ópera até meados do século XVIII. Os papéis femininos eram, em grande parte, interpretados por homens. Muitos desses intérpretes, por sinal, eram castrados, como o famoso cantor italiano Farinelli, alcunha pela qual Carlo Maria Broschi (1705-1782) se tornou conhecido. Algo parecido ocorria no cenário da música sacra. A Igreja Católica foi a instituição que mais restringiu o gênero feminino, proibindo que as mulheres cantassem nas missas até o começo do século XX. Uma passagem da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios justifica essa proibição: “É vergonhoso para a mulher falar na igreja”. E na opinião de Santo Ambrósio, que viveu no século IV, “a mulher deverá permanecer calada na igreja”.

        Foi somente a partir das transformações sociais e do crescimento dos valores burgueses – como o maior acesso à música, a construção de teatros públicos de ópera que podiam ser frequentados pela compra de ingressos, e não somente pela condição de nobreza – no decorrer do século XVIII que as mulheres começaram a atuar e a cantar profissionalmente. Como o canto sacro ainda lhes era vetado, essas primeiras profissionais acabaram encontrando seu espaço no teatro e na ópera. A italiana Margherita Durastanti (ativa entre 1700 e 1734) foi uma das primeiras cantoras profissionais na Europa, chegando a participar de várias óperas de Händel (1685-1759) na Inglaterra. Cantoras brasileiras surgiram pouco tempo depois.

        Já havia mulheres cantando no Rio de Janeiro e em Minas Gerais pelo menos desde 1770. Nesse ano, João de Souza Lisboa, proprietário da casa da ópera de Vila Rica – atual Teatro Municipal de Ouro Preto (MG) –, chegou a comunicar ao governador da capitania de Minas Gerais que já tinha “na casa da ópera duas fêmeas que representam, e uma delas com todo o primor, muito melhor que as do Rio de Janeiro”. Diferentemente do que ocorria no Velho Mundo, eram comuns no Brasil, até o início do século XIX, atores negros e mulatos, maquiados com tinta branca e vermelha, representando os europeus daquela época. Cantar ópera por aqui, naquele tempo, não envolvia o glamour dos cantores de hoje. Esse tipo de trabalho, muito pelo contrário, era feito por subalternos, e seu descumprimento poderia ser severamente punido. Em casos extremos, a punição podia ser até a prisão.

        Foi nesse contexto que surgiu Lapinha, cujo nome verdadeiro era Joaquina Maria da Conceição Lapa e que começou a atuar e cantar em óperas no Rio de Janeiro na década de 1780. Manuscritos que vêm sendo estudados em Portugal, principalmente pelo musicólogo inglês David Cranmer, demonstram que ela trabalhou em várias peças dos italianos Giovanni Paisiello (1740-1816) e Domenico Cimarosa (1749-1801), os compositores mais conhecidos do gênero em seu tempo. De Paisiello, ela cantou, entre outras, “O Barbeiro de Sevilha” – cujo enredo também foi musicado por Gioacchino Rossini (1792-1868) anos depois. Lapinha se apresentou ainda em algumas óperas do italiano Fortunato Mazziotti (1782-1855), do lusitano Marcos Portugal (1762-1830) e do brasileiro José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), que lhe dedicou papéis líricos em “Ulisseia” e em “O Triunfo da América”, representadas no Rio de Janeiro em 1809.

        Preparar-se para atuar numa ópera, tanto naquela época quanto posteriormente, exigia muito tempo e bastante trabalho. As boas cantoras executavam com frequência as coloraturas, ou seja, a emissão de várias notas agudas numa só sílaba, técnica que exigia muito do intérprete e que, quando bem utilizada, causava furor na plateia. Lapinha não só tinha nesse recurso um de seus trunfos, como o usou para cativar o público, segundo algumas críticas que foram preservadas até hoje.

        Os documentos até agora localizados sobre Lapinha indicam que, depois de seu começo de carreira no Rio de Janeiro, a cantora se apresentou em várias cidades de Portugal entre 1791 e 1805. A edição da Gazeta de Lisboa de 16 de janeiro de 1795 se refere a “Joaquina Maria da Conceição Lapinha, natural do Brasil, onde se fizeram famosos os seus talentos músicos, que têm já sido admirados pelos melhores avaliadores desta capital”. Em 6 de fevereiro de 1795, o mesmo jornal fez uma crítica ainda mais elogiosa, que enfatizou a capacidade que a cantora tinha de deixar até mesmo plateias europeias deslumbradas: “A 24 do mês passado, houve no Teatro de São Carlos desta cidade [de Lisboa] o maior concurso que ali se tem visto, para ouvir a célebre cantora americana Joaquina Maria da Conceição Lapinha, a qual, na harmoniosa execução do seu canto, excedeu a expectação de todos: foram gerais e muito repetidos os aplausos que expressavam a admiração que causou a firmeza e sonora flexibilidade da sua voz, reconhecida por uma das mais belas e mais próprias para teatro”.

        Além de receber os aplausos dos portugueses, Lapinha havia superado outra barreira na Europa: ela foi uma das primeiras mulheres a receber autorização para participar de espetáculos públicos em Lisboa. Assim que chegou à cidade, Joaquina se deparou com um veto da própria rainha D. Maria I à participação feminina nas apresentações realizadas nos teatros da capital. O motivo provavelmente estava relacionado aos flertes de seu marido, o rei D. Pedro III, com as atrizes que se apresentavam em Lisboa. O viajante sueco Carl Ruders (1761-1837), responsável por essa informação, também comenta que a cantora era obrigada a disfarçar a cor de sua pele – que os europeus julgavam “inconveniente” – com tinta branca: “Joaquina Lapinha é natural do Brasil e filha de uma mulata, por cujo motivo tem a pele bastante escura. Este inconveniente, porém, remedeia-se com cosméticos. Fora disso, tem uma figura imponente, boa voz e muito sentimento dramático”.

        Depois de passar esse período em Portugal, enfrentando as dificuldades decorrentes da sua condição de mulher negra, a cantora retornou ao Rio de Janeiro e continuou cantando óperas. Seu nome parou de aparecer nos anúncios de espetáculos de música lírica em meados de 1813.

        O sucesso que Joaquina Lapinha alcançou em vida ocorreu independentemente de sua condição racial. Isso demonstra que a herança africana e a excelência da arte, mesmo vistas por um olhar europeu, não eram fatores opostos, como se acreditava antes.

Paulo Castagna. Disponível em: http://revistadehistoria.com.br/secao/retrato/opera-da-discriminacao. Acesso em: fev. 2013.

Fonte: Arte em Interação – Hugo B. Bozzano; Perla Frenda; Tatiane Cristina Gusmão – volume único – Ensino médio – IBEP – 1ª edição – São Paulo, 2013. p. 272-274.

Entendendo a notícia:

01 – Qual foi o principal desafio enfrentado por Joaquina Lapinha para alcançar o sucesso como cantora lírica, tanto no Brasil quanto na Europa, e como ela o superou?

      O principal desafio enfrentado por Joaquina Lapinha foi o preconceito racial e de gênero em uma sociedade onde mulheres e, especialmente, mulheres negras, tinham seu acesso à música profissional severamente restrito. No Brasil do século XVIII, embora atores negros fossem comuns, o trabalho em ópera era subalterno, e na Europa, cantoras eram raras e o canto era predominantemente masculino. Como mulher negra, Lapinha teve que superar entraves sociais significativos. Ela superou isso através de seu talento excepcional, especialmente sua maestria nas coloraturas e sua voz reconhecida como "uma das mais belas e mais próprias para teatro", que deslumbrou plateias cariocas e lusitanas. Além disso, na Europa, ela precisou esconder a cor de sua pele com cosméticos para ser aceita em espetáculos públicos, uma exigência para superar o preconceito racial "inconveniente" na visão europeia da época.

02 – De que forma a trajetória de Joaquina Lapinha, apesar dos obstáculos, desafiou as concepções da época sobre a arte e a origem racial?

      A trajetória de Joaquina Lapinha desafiou diretamente as concepções da época ao provar que o talento artístico e a excelência não estavam atrelados à raça ou ao gênero, mesmo sob o olhar europeu. Em uma era onde o preconceito racial era arraigado e a participação feminina na música lírica era limitada, Lapinha, uma mulher negra, alcançou reconhecimento internacional e foi aplaudida em teatros europeus. Seu sucesso demonstrou que a "herança africana e a excelência da arte" não eram "fatores opostos", como se acreditava. Ela quebrou barreiras ao ser uma das primeiras mulheres a se apresentar em espetáculos públicos em Lisboa e ao ser aclamada por sua voz, superando a visão de sua pele como "inconveniente" através da maestria de sua arte.

03 – Quais foram as restrições impostas às mulheres no cenário musical, tanto sacro quanto secular, antes do surgimento de cantoras profissionais como Lapinha?

      Antes do surgimento de cantoras profissionais como Lapinha, as mulheres enfrentavam significativas restrições no cenário musical. No âmbito da música sacra, a Igreja Católica proibia a participação feminina nas missas até o início do século XX, baseando-se em passagens bíblicas como a Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios ("É vergonhoso para a mulher falar na igreja") e na opinião de Santo Ambrósio ("a mulher deverá permanecer calada na igreja"). No cenário secular da ópera europeia, até meados do século XVIII, era raro haver cantoras, com muitos papéis femininos sendo interpretados por homens, inclusive castrados. Essas restrições sociais e religiosas limitavam severamente as oportunidades para as mulheres desenvolverem carreiras profissionais na música, direcionando as primeiras profissionais que surgiram para o teatro e a ópera quando as transformações sociais permitiram.

04 – Descreva a situação das cantoras e atores no Brasil do século XVIII em comparação com a Europa, conforme o texto.

      No Brasil do século XVIII, a situação das cantoras e atores diferia consideravelmente da Europa. Enquanto na Europa as mulheres encontravam grandes restrições para atuar e cantar profissionalmente em óperas até meados do século XVIII, no Brasil, já havia mulheres cantando no Rio de Janeiro e em Minas Gerais pelo menos desde 1770. O texto menciona que eram comuns no Brasil, até o início do século XIX, atores negros e mulatos, que frequentemente se maquiavam com tinta branca e vermelha para representar europeus. No entanto, o trabalho em ópera no Brasil daquela época não possuía o glamour de hoje, sendo realizado por subalternos e sujeito a punições severas, incluindo prisão, em caso de descumprimento, o que contrasta com o status de celebridade que cantores como Farinelli alcançavam na Europa.

05 – Quais foram as evidências documentais que confirmam o sucesso e a aclamação de Joaquina Lapinha na Europa?

      As evidências documentais que confirmam o sucesso e a aclamação de Joaquina Lapinha na Europa incluem manuscritos estudados em Portugal, principalmente pelo musicólogo inglês David Cranmer, que demonstram sua participação em várias peças de compositores renomados como Giovanni Paisiello e Domenico Cimarosa. Além disso, edições da Gazeta de Lisboa de 1795 são citadas como prova de seu reconhecimento. A edição de 16 de janeiro de 1795 se refere a ela como "natural do Brasil, onde se fizeram famosos os seus talentos músicos, que têm já sido admirados pelos melhores avaliadores desta capital". Mais enfaticamente, a edição de 6 de fevereiro de 1795 elogia sua performance no Teatro de São Carlos, descrevendo o "maior concurso que ali se tem visto" para ouvi-la e ressaltando que ela "excedeu a expectação de todos", recebendo "gerais e muito repetidos os aplausos que expressavam a admiração que causou a firmeza e sonora flexibilidade da sua voz".

06 – Explique a importância da técnica de "coloratura" para as cantoras da época, incluindo Lapinha, e como ela foi utilizada para cativar o público.

      A técnica da coloratura, que consiste na "emissão de várias notas agudas numa só sílaba", era de extrema importância para as cantoras da época, incluindo Lapinha, pois exigia um alto nível de habilidade e controle vocal do intérprete. Quando bem executada, essa técnica causava furor e deslumbramento na plateia, sendo um verdadeiro trunfo para as cantoras. Para Lapinha, a coloratura era um de seus recursos mais fortes, e ela a utilizava precisamente para cativar o público, como atestam críticas preservadas. A capacidade de executar essa técnica com "firmeza e sonora flexibilidade" era um diferencial que evidenciava o talento e a destreza da cantora, contribuindo significativamente para sua aclamação e sucesso.

07 – Embora pouco se saiba sobre a vida de Joaquina Lapinha, o que o texto revela sobre sua origem e o período em que atuou, e por que a falta de retratos é um detalhe significativo?

      O texto revela que Joaquina Lapinha, cujo nome verdadeiro era Joaquina Maria da Conceição Lapa, surgiu e começou a atuar e cantar em óperas no Rio de Janeiro na década de 1780. Sua origem é descrita como "misteriosa", mas sabe-se que ela era negra ("filha de uma mulata"), o que implicava superar diversos entraves sociais. Ela atuou em Portugal entre 1791 e 1805 e continuou cantando óperas no Rio de Janeiro após seu retorno, com seu nome deixando de aparecer em anúncios por volta de 1813. A falta de retratos que mostrem suas feições é um detalhe significativo porque, apesar de seu imenso sucesso e fama como "primeira cantora lírica brasileira que virou celebridade" e a primeira a ser aplaudida na Europa, a ausência de sua imagem perpetua a ideia de que sua identidade visual, em particular a cor de sua pele, era algo a ser ocultado ou negligenciado, reforçando o preconceito e a invisibilidade que mulheres negras enfrentavam naquela época, mesmo as mais talentosas e aclamadas. Isso contrasta com a documentação de outros artistas da época, mostrando como o preconceito ainda a limitava na história visual.

 

 

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