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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

CONTO: O VISCONDE PARTIDO AO MEIO - FRAGMENTO - ÍTALO CALVINO - COM GABARITO

 Conto: O visconde partido ao meio – Fragmento

          Ítalo Calvino

        Havia uma guerra contra os turcos. O visconde Medardo di Terralba, meu tio, cavalgava pelas planícies da Boêmia rumo ao acampamento dos cristãos. Acompanhava-o um escudeiro chamado Curzio.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiud0Vsne_CeVUSJukpWUg3JZF2mkg3CRZ0UQUeySSN5xnq_hUUNCe_xB7rNPDpvL_hi77KI-lgTUMdhZSv2F6_zqMttaHVOhTS5ZEb97DLptbj1zxbf6jirCDwnH20zm66PzbN5xoGtR3rUXxiCDo_lJbkZTmysBzW2Jj2AWqCu5jWHW4tID5W0Onx7xw/s320/MG_4640a-e1556822169613.jpg


        As cegonhas voavam baixo, em bandos brancos, atravessando o ar opaco e parado.

        — Por que tantas cegonhas? — perguntou Medardo a Curzio —, para onde estão voando?

        Meu tio acabava de chegar, se alistara havia pouco, para agradar a alguns duques, nossos vizinhos, empenhados naquela guerra. Munira-se de um cavalo e de um escudeiro no último castelo em mãos cristãs, e ia apresentar-se ao quartel imperial.

        — Estão voando para os campos de batalha — disse o escudeiro, sombrio. — Vão nos acompanhar por todo o caminho.

        O visconde Medardo ficara sabendo que naquelas terras o voo das cegonhas é sinal de boa sorte; e queria mostrar-se alegre por vê-las. Mas, a contragosto, sentia-se inquieto.

        — O que pode atrair as pernaltas aos campos de batalha, Curzio? — perguntou.

        — Agora, também elas comem carne humana — respondeu o escudeiro —, desde que a carestia tornou os campos áridos e a estiagem secou os rios. Onde há cadáveres, as cegonhas, os flamingos e os grous substituíram os corvos e os abutres.

        Meu tio se achava então na primeira juventude: a idade em que os sentimentos se misturam todos num ímpeto confuso, ainda não separados em bem e mal; a idade em que cada experiência nova, também macabra e desumana, é toda trepidante e efervescente de amor pela vida.

        — E os corvos? E os abutres? — perguntou. — E as aves de rapina? Onde foram parar? — Estava pálido, mas seus olhos cintilavam.

        O escudeiro era um soldado de pele escura, bigodudo, que nunca erguia os olhos.

        — À força de comer as vítimas da peste, a peste os atacou também. — E apontou com a lança certas moitas escuras que a um olhar mais atento se revelavam não de plantas, mas de penas e pés ressecados de aves de rapina.

        — Assim, nem dá para saber quem morreu antes, se a ave ou o homem, e quem se lançou sobre o outro para esganá-lo — disse Curzio.

        Para fugir da peste que exterminava as populações, famílias inteiras tinham se encaminhado para os campos, e a agonia havia golpeado a todos ali. Em montes de carcaças, espalhadas pela planície árida, viam-se corpos de homens e mulheres, nus, desfigurados pelas marcas da peste e, coisa a princípio inexplicável, penugentos: como se daqueles braços macilentos e costelas tivessem crescido penas pretas e asas. Eram as carcaças de abutres misturadas com as sobras deles.

        O terreno já ia mostrando sinais de batalhas. A marcha se tornara mais lenta porque os dois cavalos topavam nos restos e lombadas.

        — O que está acontecendo com nossos cavalos? — perguntou Medardo ao escudeiro.

        — Senhor — respondeu ele —, nada desagrada tanto aos cavalos quanto o fedor das próprias tripas.

        A faixa de planície que atravessavam achava-se de fato cheia de carcaças equinas, algumas para cima, com os cascos voltados para o céu, outras de bruços, com o focinho enfiado na terra. 

        — Por que tantos cavalos caídos neste ponto, Curzio? — perguntou Medardo.

        — Quando o cavalo sente que está sendo atingido na barriga — explicou Curzio —, trata de segurar as vísceras. Alguns apoiam a pança no chão, outros se viram de costas para que elas não caiam. Mas a morte não tarda a ceifá-los do mesmo jeito.

        — Quer dizer que são sobretudo os cavalos que morrem nesta guerra?

        — As cimitarras turcas parecem feitas de propósito para rasgar-lhes o ventre com um só golpe. Mais adiante verá os corpos dos homens. Primeiro caem os cavalos e depois os cavaleiros. Pronto, lá está o campo.

        Nos limites do horizonte elevavam-se os pináculos das tendas mais altas, os estandartes do exército imperial e a fumaça.

        Continuando a galopar, viram que os caídos da última batalha tinham sido quase todos removidos e enterrados. Só se viam alguns membros dispersos, especialmente dedos, apoiados nos restolhos.

        — De vez em quando há um dedo indicando o caminho — disse meu tio Medardo. — Que significa?

        — Deus os perdoe: os vivos cortam os dedos dos mortos para arrancar-lhes os anéis.

        — Quem vem lá? — disse uma sentinela com capote coberto de mofo e musgo como a casca de uma árvore exposta à tramontana.

        — Viva a sagrada coroa imperial! — gritou Curzio.

        — E que morra o sultão! — replicou a sentinela. — Mas, por favor, quando chegarem ao comando, digam-lhes para mudar logo o turno, pois começo a deitar raízes!

        Agora os cavalos corriam para escapar da nuvem de moscas que circundava o campo, zumbindo pelas montanhas de excrementos.

        — De muitos valentes — observou Curzio — o esterco de ontem ainda está no chão, e eles já chegaram ao céu. — E benzeu-se.

        Na entrada do acampamento, costearam uma fila de baldaquins, sob os quais mulheres de cabelos encaracolados e corpulentas, com longos vestidos de brocado e os seios nus, acolheram-nos com gritos e risadas.

        — São os pavilhões das cortesãs — disse Curzio. — Nenhum exército possui outras tão lindas.

        Meu tio já cavalgava com o rosto virado para trás, observando-as.

        — Cuidado, senhor — acrescentou o escudeiro —, andam tão sujas e empestadas que nem os turcos as aceitariam como presas de um saque. Além de carregadas de chatos, percevejos e carrapatos, agora até os escorpiões e os lagartos fazem ninhos sobre elas.

        Passaram diante das baterias do campo. À noite, os artilheiros cozinhavam o rancho de água e nabos no bronze das espingardas e dos canhões, abrasado dos intensos disparos da jornada.

        Chegavam carroças cheias de terra e os artilheiros a peneiravam.

        — A pólvora está ficando escassa — explicou Curzio —, mas a terra onde as batalhas aconteceram está tão impregnada que, insistindo-se, dá para recuperar algumas cargas.

        Depois vinham as instalações da cavalaria, onde, entre as moscas, os veterinários trabalhavam sem parar remendando a pele dos quadrúpedes com costuras, faixas e emplastos de alcatrão fervente, todos relinchando e escoiceando, inclusive os doutores.

        As tendas da infantaria seguiam-se por um grande trecho. O sol se punha e diante de cada tenda os soldados estavam sentados com os pés imersos em tinas de água morna. Sendo comuns os alarmes repentinos de dia e de noite, mesmo na hora do pedilúvio continuavam a segurar o capacete e a lança. Em tendas mais altas e montadas em forma de quiosque, os oficiais punham talco nas axilas e se refrescavam com leques de rendas.

        — Não fazem isso por frescura — disse Curzio —, ao contrário: querem mostrar que se acham completamente à vontade em meio à dureza da vida militar.

        O visconde de Terralba foi logo conduzido à presença do imperador. Em seu pavilhão cheio de tapeçarias e troféus, o soberano estudava nos mapas os planos de futuras batalhas. As mesas estavam cobertas de mapas abertos, e o imperador espetava neles alfinetes, retirando-os de uma almofada própria que um dos marechais lhe estendia. Os mapas já estavam tão carregados de alfinetes que não se entendia mais nada, e para ler alguma coisa precisavam tirar os alfinetes e voltar a recolocá-los. Nesse tira e põe, para ficar com as mãos livres, tanto o imperador quanto os marechais mantinham os alfinetes entre os lábios e só podiam falar por meio de ganidos.

        Ao ver o jovem que se inclinava diante dele, o soberano emitiu um ganido interrogativo e tirou depressa os alfinetes da boca.

        — Um cavaleiro recém-chegado da Itália, majestade — apresentaram-no —, o visconde de Terralba, de uma das mais nobres famílias da região de Gênova.

        — Que seja logo nomeado tenente.

        Meu tio bateu as esporas, ficando em sentido, enquanto o imperador fazia um amplo gesto real e todos os mapas se enrolavam sobre si mesmos e caíam.

        Naquela noite, embora cansado, Medardo tardou a dormir. Andava para a frente e para trás perto da tenda, e ouvia os apelos das sentinelas, os cavalos relinchando e a fala entrecortada de soldados durante o sono. Observava no céu as estrelas da Boêmia, pensava na nova patente, na batalha do dia seguinte e na pátria distante, na música dos caniços dentro d’água. No coração não guardava nem nostalgia, nem dúvidas, nem apreensão. Para ele as coisas ainda eram inteiras e indiscutíveis, e assim era ele próprio. Se tivesse podido prever a terrível sorte que o aguardava, talvez também a tivesse considerado natural e acabada, mesmo em toda a sua dor. Estendia o olhar até o limite do horizonte noturno, onde sabia que se localizava o campo dos inimigos, e com os braços cruzados apertava as costas com as mãos, contente por ter certeza ao mesmo tempo de realidades longínquas e diferentes, e da própria presença no meio delas. Sentia o sangue daquela guerra cruel, disseminado por mil córregos sobre a terra, chegar até ele; e se deixava tocar, sem experimentar raiva nem piedade.

        [...]

Ítalo Calvino. O visconde partido ao meio. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 11-16.

Fonte: Universos – Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos finais – 7º ano – Camila Sequetto Pereira; Fernanda Pinheiro Barros; Luciana Mariz. Edições SM. São Paulo. 3ª edição, 2015. p. 222-225.

Entendendo o conto:

01 – Quem são os personagens principais introduzidos no fragmento e qual a relação entre eles?

      Os personagens principais introduzidos são o Visconde Medardo di Terralba, um jovem que se alistou na guerra para agradar a duques vizinhos, e seu escudeiro Curzio, um soldado experiente que acompanha Medardo em sua jornada. Curzio serve como guia e informante para o visconde.

02 – Qual é o cenário da guerra e quem são os inimigos?

      O cenário da guerra é nas planícies da Boêmia, e os inimigos são os turcos. Medardo e Curzio estão a caminho do acampamento dos cristãos para que o visconde se apresente ao quartel imperial.

03 – Qual a "boa sorte" que o visconde esperava encontrar ao ver as cegonhas e como Curzio desmistifica essa crença?

      O visconde Medardo havia aprendido que o voo das cegonhas era sinal de boa sorte naquelas terras. No entanto, Curzio desmistifica essa crença ao explicar que as cegonhas agora comem carne humana nos campos de batalha, devido à carestia que deixou os campos áridos e secou os rios, substituindo corvos e abutres.

04 – O que aconteceu com os corvos e abutres, as aves de rapina tradicionais?

      Os corvos e abutres foram atacados pela peste ao se alimentarem das vítimas da doença. O escudeiro aponta moitas escuras que, de perto, revelam-se não de plantas, mas de penas e pés ressecados dessas aves.

05 – Como o texto descreve os restos de batalhas nos campos e o que Medardo e Curzio encontram?

      O terreno mostrava sinais de batalhas com montes de carcaças humanas (nus, desfigurados pela peste e penugentos devido à mistura com abutres), e carcaças equinas (cavalos caídos com as vísceras expostas). Além disso, encontram membros humanos dispersos, especialmente dedos, que Curzio explica serem cortados pelos vivos para roubar anéis dos mortos.

06 – Como os cavalos reagem ao fedor das próprias tripas nos campos de batalha?

      Curzio explica que "nada desagrada tanto aos cavalos quanto o fedor das próprias tripas". Eles tentam segurar as vísceras, alguns apoiando a pança no chão e outros se virando de costas para que elas não caiam.

07 – Que tipo de pessoas habitavam os baldaquins na entrada do acampamento, e qual a advertência de Curzio sobre elas?

      Os baldaquins na entrada do acampamento eram os pavilhões das cortesãs, mulheres de cabelos encaracolados, corpulentas, com longos vestidos de brocado e seios nus. Curzio adverte que elas estavam muito sujas e empestadas, a ponto de "nem os turcos as aceitariam como presas", e carregavam parasitas como chatos, percevejos e carrapatos, além de escorpiões e lagartos fazendo ninhos nelas.

08 – De que forma os artilheiros improvisavam a cozinha e a obtenção de pólvora?

      Os artilheiros cozinhavam o rancho de água e nabos no bronze das espingardas e dos canhões, aquecido pelos disparos do dia. Para obter pólvora, eles peneiravam a terra dos campos de batalha, que estava tão impregnada de resíduos que permitia a recuperação de algumas cargas.

09 – Descreva a cena dos oficiais na tenda e a explicação de Curzio para seu comportamento.

      Os oficiais, em tendas mais altas e luxuosas, punham talco nas axilas e se refrescavam com leques de rendas. Curzio explica que eles não faziam isso por frescura, mas para mostrar que se achavam completamente à vontade em meio à dureza da vida militar, um tipo de desafio à própria realidade.

10 – Qual era o estado de espírito do Visconde Medardo na noite anterior à batalha, e o que isso revela sobre sua personalidade naquele momento?

      Naquela noite, Medardo estava cansado, mas demorou a dormir. Ele observava o céu, pensava na nova patente e na batalha, sem sentir nostalgia, dúvidas ou apreensão. O texto revela que "para ele as coisas ainda eram inteiras e indiscutíveis, e assim era ele próprio". Isso mostra uma personalidade ingênua e imatura, que ainda não havia sido afetada pelas complexidades e horrores da vida, especialmente os da guerra.

 

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