Crônica: Areias de Portugal
Carlos Heitor Cony
No meio do quintal, ao lado da casa,
havia a mangueira, enorme, de um de seus ramos o pai pendurara um balanço que
teve seus dias de glória até que meu irmão dele se despencou. Minha mãe iniciou
campanha feroz e bem-sucedida, o balanço serviu de lenha numa fogueira de Santo
Antônio.
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Naqueles dias, Humberto de Campos
publicara uma página de suas memórias, evocando o cajueiro de sua infância. Meu
pai lera a crônica para mim. Recortei-a do jornal e quase a decorei. Pior:
procurei imitar o menino que subia nos galhos mais altos e gritava:
"Assobe, assobe, gajeiro, naquele topo real, para ver se tu avistas terras
de Espanha, Otolina, areias de Portuga!!".
Passei a subir nos galhos mais altos,
onde descobri um nicho no meio das folhas verdes e perfumadas – como só as
mangueiras sabem ter. E lá de cima eu também gritava aos ventos da Boca do
Mato, garantindo que via terras de Espanha, quando, na verdade, via apenas os
tetos cor de moringa da vizinhança, ao longe a torre mais-que-branca da Matriz
de Nossa Senhora da Guia e, depois, a formidável massa azulada do pico da
Tijuca.
Pois ontem, tantos anos depois, sonhei
com a mangueira dos dias antigos do passado. No sonho, ela surgia destacada,
talvez mais alta e mais espetacular. E como na paisagem do sonho era quase
noite, ela parecia iluminada por dentro, um pouco fosforescente, mas sem dúvida
era a minha mangueira, intacta, esperando por mim.
Olhei-a bem e não foi difícil
encontrar, em seus ramos mais altos, o nicho de folhas verdes e perfumadas –
como só as mangueiras sabem ter. Lá estava ele, também, intacto, reconheci até
mesmo o galho mais forte em que me segurava com maior confiança, deixando a
outra mão livre para proteger os olhos do sol e dos ventos do mar largo. E de
onde o menino, que nada vira do mundo até então, assombrado, avistava terras de
Espanha, areias de Portugal.
Carlos Heitor Cony.
Fonte: Letra e Vida.
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos –
Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 28.
Entendendo a crônica:
01 – Qual a importância da
mangueira na infância do narrador?
A mangueira era
um elemento central na infância do narrador, servindo como o local onde o pai
pendurou um balanço, que teve "dias de glória" antes de ser removido.
Mais importante ainda, a mangueira se tornou o refúgio e ponto de observação do
menino, onde ele se aventurava a imitar o personagem de Humberto de Campos.
02 – Como a crônica de
Humberto de Campos influenciou o menino narrador?
A crônica de Humberto
de Campos, que evocava o cajueiro de sua infância, inspirou o menino a imitar o
personagem que subia nos galhos e gritava avistando terras distantes. Essa
leitura o levou a procurar um nicho na sua própria mangueira para reproduzir a
cena, estimulando sua imaginação e seu senso de aventura.
03 – O que o menino realmente
via do alto da mangueira, em contraste com o que gritava?
Embora gritasse
que via "terras de Espanha, Otolina, areias de Portuga!!", o menino,
na verdade, via apenas os "tetos cor de moringa da vizinhança", a
"torre mais-que-branca da Matriz de Nossa Senhora da Guia" ao longe,
e a "formidável massa azulada do pico da Tijuca". Isso destaca a
força da imaginação infantil sobre a realidade.
04 – Qual o significado do
sonho do narrador com a mangueira, tantos anos depois?
O sonho com a
mangueira tantos anos depois simboliza a permanência e a vivacidade das
memórias de infância. No sonho, a mangueira surge "intacta, esperando por
mim", "iluminada por dentro", representando um refúgio
nostálgico e um portal para o passado, onde o narrador pode reencontrar sua
essência de criança e a capacidade de sonhar.
05 – O que a última frase
"E de onde o menino, que nada vira do mundo até então, assombrado, avistava
terras de Espanha, areias de Portugal" revela sobre a perspectiva da
infância?
Essa frase final
encapsula a magia e a vastidão da imaginação infantil. Mesmo sem ter visto o
mundo real, o menino, através da fantasia inspirada pela leitura, era capaz de
"avistar" terras distantes. Isso sugere que, na infância, a
imaginação é um poderoso meio de explorar e compreender o mundo, superando os
limites da experiência física.
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