Política de Privacidade

quarta-feira, 25 de junho de 2025

CONTO: FARINHA DE MANDIOCA - NINA HORTA - COM GABARITO

 Conto: Farinha de mandioca

           Nina Horta

        Que comida eu mais gosto… Que comida eu mais gosto?

        Fiquei com a pergunta na cabeça por uns dois meses. Qual a preferida, qual a mais digna de merecer a palavra saudade.

        Profunda, lúgubre, a toda hora me vinha à mente a feijoada, trançando o feijão, a linguiça, o paio, quiçá, o rabo, talvez, a orelhinha, ah, feijão-preto, o óbvio ululante.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEislmfgRaTrfvma8uOPPVWr5Qf3X4hR_seQk5FPZbEgsemOZyBh8FLU2PJU4N7NB9D-hcbVkHKeuVGFTbqLvlunXX4vG5i_R_eQ06aMsvB4W9VPfKmjlYAcCGPpV1NZr9hsHegEKTAUIoiEnqxtEKmYGy34Z101AuuNcWzhRzGGzEQemjrEO9MNHI3YHxs/s1600/images.jpg

        É, a feijoada resolveria. Só pode ser ela. Boa demais, brasileira com origens nobres de cassoulets, ela própria nascida no restaurante G. Lobo, carioca a mais não poder.

        Conheço uma autora de livros de comida que só escreve receitas que gostaria de comer todos os dias, se possível. Nada de excessos, novidades, exotismos. Só o que perdura e se repete. Concordo com ela. Neste caso a feijoada perderia pontos, barroca, exagerada.

        E o palmito? Só nosso. Quase só nosso, fruto da palmeira que anuncia nossa brasilidade, flor, folha, fruto, fresco, branco, macio, desmanchando na boca. Todo dia? Também não.

        O jeito é percorrer as raízes portuguesas, africanas e indígenas. Doces de ovos, o bacalhau ao azeite, as sardinhas fritas. Tudo delicioso, da pontinha, muito bom, pois, pois.

        Dos africanos, as papas, os mingaus, o dendê translúcido e dourado, comida baiana, vatapás, moquecas, carurus, acarajés. Comida de festa, comida de santo. Sai do rol das costumeiras.

        Dos índios, a farinha. Assim, curto e grosso. A mandioca ralada, espremida, trabalhada, transformada. Há para todo gosto.

        Na Amazônia pode quebrar a ponta do dente, desce o país em nuances de beijus, crocantes, etéreas, aéreas, embebem o feijão sem empapar, empapam-se de feijão.

        É de uma modéstia de coisa centrada, que sabe o seu lugar.

        Na Bahia conheço uma, macia como veludo e que escorre dos dedos como pó, massa saborosa que solta o sabor quando apertada contra o céu da boca com a língua. Tem um gosto decidido de mandioca.

        Em Paraty a granulada já se faz mais evidente, é comprada em casas de farinha pelos caboclos e trazida para casa em lombo de burro ou nas costas, mesmo, em sacos de aniagem alvejados, brancos, limpíssimos. Fazem isso uma vez por mês, num ritual, escolhem o produto, provam, comparam com o anterior, sentem pequenas diferenças de sabor, de ponto, de cor. Discutem sobre ela, conversam sobre ela com os amigos, eles que falam tão pouco. É que não há como comer nem feijão nem peixe frito sem ela, a companheira.

        É isso. Companheira. Acompanha sempre. Segura o melado, delimita o caldo grosso da galinha, corrige os exageros líquidos do feijão.

        Gosto dela em farofa e em pirão. Farofa mineira pura, sem ovo, sem bacon. Só a manteiga na frigideira ou o óleo. Passa-se rapidamente na gordura quente sem deixar queimar o fundo, o que seria um desastre. Vai se mexendo, mexendo, até que se tenha amalgamado na perfeição. E está pronta, quente, dando o crocante a tudo que é mole. Tem gente que gosta fria, gosto tão quente que faça tzzz na língua na hora de experimentar.

        Pirão em caldos de legume, pirão no peixe, farofa com lombo, com pernil e o vinagrete. Eu conheço e você conhece quem come arroz e macarrão com farofa, a companheira.

        Farofa, farinha, efes fricativos, tem que fechar os lábios senão pula fora, farofa, farinha, frigideira, frisada, frita, fritada, frugal, fúlvida, fundamental, fundadora.

Revista Ícaro Brasil, outubro de 1999. Nina Horta é jornalista, escritora, dona do bufê Ginger, autora do livro Não é sopa (Companhia das Letras) e colaboradora das páginas de gastronomia do jornal Folha de São Paulo.

Entendendo o conto:

01 – Qual foi a pergunta que a autora Nina Horta levou em mente por cerca de dois meses?

      A pergunta era: "Que comida eu mais gosto?", buscando a preferida, a mais digna de merecer a palavra saudade.

02 – Quais comidas brasileiras a autora considera e por que as descarta como sua preferida?

      Ela considera a feijoada, mas a descarta por ser "barroca, exagerada" para ser consumida todos os dias. Ela também pensa no palmito, mas decide que não é algo para comer diariamente. Por fim, menciona comidas africanas como vatapás e moquecas, classificando-as como "comida de festa", não "costumeira".

03 – De qual herança culinária a farinha de mandioca é destacada como vinda?

      A farinha de mandioca é destacada como vinda da herança indígena.

04 – Que qualidades a autora atribui à farinha de mandioca que a fazem ser a comida mais amada?

      Ela a descreve como "modesta", "centrada", que "sabe o seu lugar". É uma "companheira" que "acompanha sempre", segura o melado, delimita o caldo grosso e corrige os exageros líquidos do feijão.

05 – Como a autora descreve a farinha de mandioca encontrada na Bahia?

      Na Bahia, ela conhece uma farinha "macia como veludo" que "escorre dos dedos como pó", com uma "massa saborosa que solta o sabor quando apertada contra o céu da boca com a língua" e um "gosto decidido de mandioca".

06 – Qual o ritual de compra e importância da farinha para os caboclos de Paraty, segundo o texto?

      Em Paraty, a farinha granulada é comprada em casas de farinha uma vez por mês. Os caboclos a levam em lombo de burro ou nas costas, em sacos alvejados. Eles provam, comparam com a anterior, notam pequenas diferenças de sabor, ponto e cor, e discutem sobre ela, pois não conseguem comer feijão nem peixe frito sem ela.

07 – De que duas formas principais a autora gosta de consumir a farinha de mandioca e como descreve uma delas?

      A autora gosta da farinha em farofa e em pirão. Ela descreve a farofa mineira pura, sem ovo ou bacon, feita rapidamente na gordura quente, mexendo até "amalgamado na perfeição", resultando em algo "quente, dando o crocante a tudo que é mole".

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário