Conto: TRAGÉDIA CARIOCA
Raquel de Queiroz
A menina vestia calças compridas e um
casacão de malha, informe, de mangas arregaçadas. Sentou-se no sofá, cruzou as
pernas longas, pediu licença para se servir um dos meus cigarros. O nariz
arrebitado, a pele borrifada de sardas, o cabelo curto de rapazinho dão-lhe um
ar de grande imaturidade – quinze, dezesseis anos não mais. Ela diz que tem
dezessete e está grávida. Meu Deus, como é que estão casando meninas assim tão
novas? Mas olhando a mão esquerda da moça, não lhe vejo aliança. E, antes que
eu possa fazer qualquer pergunta, ela é que vai explicando:
-- A senhora já ouviu falar em
transviada? Pois está aqui uma. Pelo menos até o carnaval deste ano eu era das
péssimas. Doida por garupa de lambreta, anarquia em inferninho, cuba livre,
bolinha, camisa de homem...

Meteu-se com uma turma forte que o
pessoal do quarteirão chamava o “jardim-de-infância”... mas cada
jardim-de-infância! Depois, fez par com um garoto da idade dela, um cretininho
de cabeça de peruca, dizia que tinha vindo dos Estados Unidos mas nem falar
inglês não sabia, só dizer “oh boy let’s go, golly”, essas besteiras, inglês
mesmo de conversar com americano ele não pesca tusta. E nem lambreta dele mesmo
tinha, era emprestada; bem, propriamente emprestada não, de condomínio; todo o
grupo pagava um rateio e cada um tinha o seu horário de usar a máquina. O dele caía
de tarde, na hora do rush, quando Copacabana fica infecta pra lambreta, então
procuravam esses lugares mais desertos onde se pode dar uma chispada. E a gente
andando assim os dois sozinhos, às vezes encosta a máquina, tem cada lugar
lindo de floresta e montanha, não é mesmo? Este Rio de Janeiro não é à toa que
se chama Cidade Maravilhosa. E depois com essa balda de geração em revolta,
educação sexual, ninguém se lembra que pode vir criança. Pois foi logo o que
apareceu.
-- O povo lá em casa recebeu como se
fosse o fim do mundo – quero dizer minha mãe porque a irmã não liga mesmo e pai
não tenho mais. agora me diga, a gente é mulher, e para uma mulher ter um filho
é fim de mundo? Minha mãe foi logo avisar ao pai dele que ia dar queixa na
polícia, mas o pai dele tem um irmão que trabalha no Fórum e ele explicou para
minha mãe que se nós déssemos queixa do garoto eles davam queixa de mim – que
ele também sendo menor o crime é recíproco. A senhora sabia que nesses casos
tem crime recíproco? Pois é.
Aí minha mãe ficou com medo, quem sabe
me mandavam para o presídio, aquele em que botam as moças-mães do SAM, que saiu
a reportagem na revista, uma coisa pavorosa. O garoto diz que não precisa fazer
show, que ele casa e pronto. Isso ele queria! Mas eu que não quero. Que é que
eu ganho casando com aquele boboca? A senhora me diga, eu posso ter algum
futuro? O cara ainda não fez nem dezoito, se sabe ler esconde, quanto mais
ganhar a vida direitinho, está bem? Eu quero ser aeromoça ou modelo, mas casada
não posso ser nada disso, em qualquer dessas profissões não permite casamento.
A senhora me vendo agora não diz, mas tenho mesmo todas as medidas de manequim
– altura 1,68, cintura 56, 80 de quadril e 81 de busto. Já disse pra minha mãe
aguentar a mão até a criança nascer, depois a gente resolve. E ela aí me enche
de tapa, diz que estou completamente perdida, que aquele cara ou casa comigo ou
casa com o juiz de menores. Imagine tanta loucura!
Sei que a senhora não tem nada com
isso, mas não podia dar um conselho? Não falo pra mim, mas para minha mãe, que
ela disse que ia telefonar à senhora, pedindo para botar uma reportagem
contando como é que está sendo esse caso de mocidade transviada e que a filha
dela é uma vítima da dissolução da família. Mas o que ela quer mesmo é o
casamento, e eu já disse pra ela que se fizer o casamento vai ver – tem que
sustentar a mim, à criança e ao mustafá do genro. Louco pra isso está mesmo
ele! Eu, hein?
Mas minha mãe diz que prefere, contanto
que eu fique com o nome limpo. A senhora acha que ser esposa de um tipinho
cafajeste daqueles é ter nome limpo? Ah, eu não entendo a minha mãe! Parece uma
criança, o que o pessoal diz pra ela logo ela acredita.
Eu vim na frente pra pedir à senhora
que explique a ela, porque eu dizer não adianta. Que esse negócio de casar pro
bem da honra foi no tempo do Dom João Charuto. Ela aguenta a mão agora, depois
eu fico emancipada, e se a profissão de modelo não der certo sempre posso
tentar o rebolado.
E, por favor, não bote essa reportagem
que ela quer, a turma até pode achar ruim, desacatar a velha, eles são loucos –
imagina se acontece aí um acidente, atropelam a minha mãe, quero ver se eu
tenho a culpa!
Ai, quanto problema nesta vida, a
senhora vê, eu estou só com dezessete anos, mas me parece que já vivi foi uns
cento e sete! E com essa mãe que eu tenho – me dá licença pra tirar outro
cigarro?
In: A palavra é...
mulher. São Paulo: Scipione, 1990, p. 86-89.
Fonte: Livro –
Português: Linguagens, Vol. Único. William Roberto Cereja, Thereza Cochar
Magalhães. Ensino Médio, 1ª ed. 4ª reimpressão – São Paulo: ed. Atual, 2003. p.
397-398.
Entendendo o conto:
01
– Qual é o tema central do conto?
O conto aborda a
gravidez precoce e suas consequências na vida de uma jovem carioca de 17 anos.
Através da narrativa da personagem principal, o texto discute temas como a
irresponsabilidade dos jovens, a falta de educação sexual, a dissolução
familiar e a busca por soluções para os problemas decorrentes da gravidez.
02
– Quem é a personagem principal do conto?
A personagem
principal é uma jovem de 17 anos que engravida após se envolver com um rapaz
irresponsável. Ela é descrita como uma menina com aparência imatura, mas que
demonstra ter uma visão pragmática da situação.
03
– Qual é o conflito central do conto?
O conflito
central do conto é a decisão da jovem sobre o que fazer com a gravidez. Ela se
recusa a casar com o pai da criança, pois não acredita que ele tenha condições
de sustentar a família. Ao mesmo tempo, ela enfrenta a pressão da mãe para se
casar e "limpar seu nome".
04
– Quais são os principais personagens do conto, além da protagonista?
Mãe da jovem: Uma mulher preocupada com a reputação da filha e que
pressiona-a para se casar.
Pai do bebê: Um rapaz
irresponsável que não tem condições de sustentar a família.
Irmã da jovem: Uma
pessoa que não se importa com a situação da irmã.
Pai da jovem: Já
falecido.
Pai do rapaz: Um
homem influente que tenta evitar que o filho seja processado.
Irmão do pai do rapaz:
Um advogado que ajuda o pai do bebê a evitar o processo.
05
– Qual é o papel da mãe da jovem no conto?
A mãe da jovem
representa a figura materna tradicional, preocupada com a honra da família e
com o que os outros vão pensar. Ela pressiona a filha para se casar, mesmo que
isso signifique se unir a um homem irresponsável e sem futuro.
06
– Qual é a crítica social presente no conto?
O conto faz uma crítica
social à falta de educação sexual e à irresponsabilidade dos jovens, que muitas
vezes não têm consciência das consequências de seus atos. Além disso, o texto
também critica a pressão social para que as jovens se casem, mesmo que não
queiram, apenas para "limpar seus nomes".
07
– Qual é o desfecho do conto?
O conto termina
sem um desfecho definitivo. A jovem decide esperar o bebê nascer para tomar uma
decisão sobre o que fazer. Ela demonstra ter uma visão pragmática da situação e
não se deixa levar pela pressão da mãe para se casar. O futuro da jovem e do
bebê fica em aberto, deixando o leitor com uma reflexão sobre os desafios da
maternidade precoce.
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