Conto: A
menor mulher do mundo – Fragmento
Clarice Lispector
Nas profundezas da África Equatorial o
explorador francês Marcel Pretre, caçador e homem do mundo, topou com uma tribo
de pigmeus de uma pequenez surpreendente. Mais surpreso, pois, ficou ao
ser informado de que menor povo ainda existia além de florestas e distâncias.
Então mais fundo ele foi.
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkARKZonRB3Lv6t0lB-JzG1OjQrhtQy-8YeHxBhebcYRhxfAmaHVQc0Wdyh5mynLR5cnvrLhJe2G3QcNvn-Ld7pFvWjJyh3MkI4F2jOUzDKJCHWFGmwHrhtnRygHdhM3to8GFemn8CBkBdx4gTadFxVc0X_l1dsUN2tZzB1l-E7LO551ENrayZqe4xs4g/s320/pigmeia.jpg
No Congo Central descobriu realmente os
menores pigmeus do mundo. E — como uma caixa dentro de um caixa — entre os
menores pigmeus do mundo estava o menor dos menores pigmeus do mundo,
obedecendo talvez à necessidade que às vezes a Natureza tem de exceder a si
própria.
Entre mosquitos e árvores mornas de
umidade, entre as folhas ricas do verde mais preguiçoso, Marcel Pretre
defrontou-se com uma mulher de quarenta e cinco centímetros, madura, negra,
calada. "Escura como um macaco", informaria ele à imprensa, e que
vivia no topo de uma árvore com seu pequeno concubino. Nos tépidos humores
silvestres, que arredondam cedo as frutas e lhes dão uma quase intolerável
doçura ao paladar, ela estava grávida.
Ali em pé estava, portanto, a menor
mulher do mundo. Por um instante, no zumbido do calor, foi como se o francês
tivesse inesperadamente chegado à conclusão última. Na certa, apenas por não
ser louco, é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites. Sentindo
necessidade imediata de ordem, e dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena
Flor. E, para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo
passou a colher dados a seu respeito.
[...]
A fotografia de Pequena Flor foi
publicada no suplemento colorido dos jornais de domingo, onde coube em tamanho
natural. Enrolada num pano, com a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a
cara preta, os olhos fundos, os pés espalmados. Parecia um cachorro.
Nesse domingo, num apartamento, uma
mulher, ao olhar no jornal aberto o retrato de Pequena Flor, não quis olhar uma
segunda vez "porque me dá aflição".
Em outro apartamento uma senhora teve
tal perversa ternura pela pequenez da mulher africana que — sendo tão melhor
prevenir que remediar — jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a
ternura da senhora. Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho. A
senhora passou um dia perturbada, dir-se-ia tomada pela saudade. Aliás era
primavera, uma bondade perigosa estava no ar.
Em outra casa uma menina de cinco anos
de idade, vendo o retrato e ouvindo os comentários, ficou espantada. Naquela casa
de adultos, essa menina fora até agora o menor dos seres humanos. E se isso era
fonte das melhores carícias, era também fonte deste primeiro medo do amor
tirano. A existência de Pequena Flor levou a menina a sentir — com uma vaguidão
que só anos e anos depois, por motivos bem diferentes, havia de se concretizar
em pensamento — levou a sentir, numa primeira sabedoria, que "a desgraça
não tem limites".
Em outra casa, na sagração da
primavera, a moça noiva teve um êxtase de piedade:
— Mamãe, olhe o retratinho dela,
coitadinha! Olhe só como ela é tristinha!
— Mas — disse a mãe, dura e derrotada e
orgulhosa — mas é tristeza de bicho, não é tristeza humana.
— Oh! Mamãe — disse a moça desanimada.
Foi em outra casa que um menino esperto
teve uma ideia esperta:
— Mamãe, e se eu botasse essa
mulherzinha africana na cama de Paulinho enquanto ele está dormindo? Quando ele
acordasse, que susto, hein! Que berro, vendo ela sentada na cama! E a gente
então brincava tanto com ela! A gente fazia ela o brinquedo da gente, hein!
A mãe dele estava nesse instante
enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma
cozinheira lhe contara do tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar,
e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas
haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver num
armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e
comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a.
Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E
considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso
desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o
número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto
como se olhasse para um perigoso estranho. E teve terror da própria alma que,
mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felicidade.
Assim olhou ela, com muita atenção e um orgulho inconfortável, aquele menino
que já estava sem os dois dentes da frente, a evolução, a evolução se fazendo,
dente caindo para nascer o que melhor morde. "Vou comprar um terno novo
para ele", resolveu, olhando-o absorta. Obstinadamente enfeitava o filho
desdentado com roupas finas, obstinadamente queria-o bem limpo, como se limpeza
desse ênfase a uma superficialidade tranquilizadora, obstinadamente
aperfeiçoando o lado cortês da beleza. Obstinadamente afastando-se, e
afastando-o, de alguma coisa que devia ser "escura como um macaco".
Então, olhando para o espelho do banheiro, a mãe sorriu intencionalmente fina e
polida, colocando, entre aquele seu rosto de linhas abstratas e a cara crua de
Pequena Flor, a distância insuperável de milênios. Mas, com anos de prática,
sabia que este seria um domingo em que teria de disfarçar de si mesma a
ansiedade, o sonho, e milênios perdidos.
Em outra casa, junto a uma parede,
deram-se ao trabalho alvoroçado de calcular com fita métrica os quarenta e
cinco centímetros de Pequena Flor. E foi aí mesmo que, em delícia, se
espantaram: ela era ainda menor que o mais agudo da imaginação inventaria. No
coração de cada membro da família nasceu, nostálgico, o desejo de ter para si
aquela coisa miúda e indomável, aquela coisa salva de ser comida, aquela fonte
permanente de caridade. A alma ávida da família queria devotar-se. E, mesmo,
quem já não desejou possuir um ser humano só para si? O que, é verdade, nem
sempre seria cômodo, há horas em que não se quer ter sentimentos:
— Aposto que se ela morasse aqui
terminava em briga — disse o pai sentado na poltrona, virando definitivamente a
página do jornal. — Nesta casa tudo termina em briga.
— Você, José, sempre pessimista — disse
a mãe.
— A senhora já pensou, mamãe, de que
tamanho será o nenenzinho dela? — disse ardente a filha mais velha de treze
anos.
O pai mexeu-se atrás do jornal.
— Deve ser o bebê preto menor do mundo
— respondeu a mãe, derretendo-se de gosto. — Imagine só ela servindo a mesa
aqui de casa! E de barriguinha grande!
— Chega de conversas! — engrolou o pai.
— Você há de convir — disse a mãe
inesperadamente ofendida — que se trata de uma coisa rara. Você é que é
insensível.
E a própria coisa rara?
Enquanto
isso na África, a própria coisa rara tinha no coração — quem sabe se negro
também, pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode mais confiar —
enquanto isso a própria coisa rara tinha no coração algo mais raro ainda, assim
como o segredo do próprio segredo: um filho mínimo. Metodicamente o explorador
examinou com o olhar a barriguinha do menor ser humano maduro. Foi neste
instante que o explorador, pela primeira vez desde que a conhecera, em vez de
sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou espírito científico, o explorador
sentiu mal-estar.
É que a menor mulher do mundo estava
rindo.
Estava rindo, quente, quente. Pequena
Flor estava gozando a vida. A própria coisa rara estava tendo a inefável
sensação de ainda não ter sido comida. Não ter sido comida era que, em outras
horas, lhe dava o ágil impulso de pular de galho em galho. Mas, neste momento
de tranquilidade, entre as espessas folhas do Congo Central, ela não estava
aplicando esse impulso numa ação — e o impulso se concentrara todo na própria
pequenez da própria coisa rara. E então ela estava rindo. Era um riso como
somente quem não fala, ri. Esse riso, o explorador constrangido não conseguiu
classificar. E ela continuou fruindo o próprio riso macio, ela que não estava
sendo devorada. Não ser devorado é o sentimento mais perfeito. Não ser devorado
é o objetivo secreto de toda uma vida. Enquanto ela não estava sendo comida,
seu riso bestial era tão delicado como é delicada a alegria. O explorador
estava atrapalhado.
Em segundo lugar, se a própria coisa
rara estava rindo, era porque, dentro dessa sua pequenez, grande escuridão
pudera-se em movimento.
É que a própria coisa rara sentia o
peito morno do que se pode chamar de Amor. Ela amava aquele explorador amarelo.
Se soubesse falar e dissesse que o amava, ele inflaria de vaidade. Vaidade que
diminuiria quando ela acrescentasse que também amava muito o anel do explorador
e que amava muito a bota do explorador. E quando este desinchasse desapontado,
Pequena Flor não compreenderia por quê. Pois, nem de longe, seu amor pelo
explorador — pode-se mesmo dizer seu "profundo amor", porque, não
tendo outros recursos, ela estava reduzida à profundeza — pois nem de longe seu
profundo amor pelo explorador ficaria desvalorizado pelo fato de ela também
amar sua bota. Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos
nascem desse equívoco, tantos outros perderam o único instante de nascer apenas
por causa de uma suscetibilidade que exige que seja de mim, de mim! que se
goste, e não de meu dinheiro. Mas na umidade da floresta não há desses
refinamentos cruéis, e amor é não ser comido, amor é achar bonita uma bota,
amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro, amor é rir de amor a um
anel que brilha. Pequena Flor piscava de amor, e riu quente, pequena, grávida,
quente.
O explorador tentou sorrir-lhe de
volta, sem saber exatamente a que abismo seu sorriso respondia, e então
perturbou-se como só homem de tamanho grande se perturba. Disfarçou ajeitando
melhor o chapéu de explorador, corou pudico. Tornou-se uma cor linda, a sua, de
um rosa-esverdeado, como a de um limão de madrugada. Ele devia ser azedo.
Foi provavelmente ao ajeitar o capacete
simbólico que o explorador se chamou à ordem, recuperou com severidade a
disciplina de trabalho, e recomeçou a anotar. Aprendera a entender algumas das
poucas palavras articuladas da tribo, e a interpretar os sinais. Já conseguia
fazer perguntas.
Pequena Flor respondeu-lhe que
"sim". Que era muito bom ter uma árvore para morar, sua, sua mesmo.
Pois — e isso ela não disse, mas seus olhos se tornaram tão escuros que o
disseram — pois é bom possuir, é bom possuir, é bom possuir. O explorador
pestanejou várias vezes.
Marcel Pretre teve vários momentos
difíceis consigo mesmo. Mas pelo menos ocupou-se em tomar notas e notas. Quem
não tomou notas é que teve que se arranjar como pôde:
— Pois olhe — declarou de repente uma
velha fechando o jornal com decisão — pois olhe, eu só lhe digo uma coisa: Deus
sabe o que faz.
LISPECTOR, Clarice. A
menor mulher do mundo. In: Laços de família. 10. ed. Rio de Janeiro. José Olympio,
1978. p. 77-86.
Fonte:
livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 3 – 2º grau – Edição
reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 247-251.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Concubino: amante.
·
Tépido: morno.
·
Humor: umidade.
·
Engrolar: pronunciar mal.
·
Inefável: indizível, encantador.
·
Fluir: gozar, desfrutar.
02 – Qual a principal característica física de Pequena
Flor?
Pequena Flor é
descrita como a menor mulher do mundo, com apenas 45 centímetros. Sua aparência
exótica e sua condição de menor a tornam um objeto de curiosidade e fascínio.
03
– Como Pequena Flor é vista pelos outros personagens e pela sociedade?
Pequena Flor é
vista como uma curiosidade, um objeto de estudo e de contemplação. Sua pequenez
a torna um símbolo da diferença e da excentricidade.
04
– Quais são os sentimentos de Pequena Flor em relação à sua condição?
O conto não
explora em profundidade os sentimentos de Pequena Flor, mas sugere que ela
aceita sua condição e encontra felicidade em sua vida simples. Seu riso é
descrito como "quente" e "macio", indicando uma sensação de
bem-estar e contentamento.
05
– Qual o impacto do encontro de Marcel Pretre com Pequena Flor?
O encontro com
Pequena Flor provoca uma crise existencial em Marcel Pretre. Ele se questiona
sobre a natureza humana, a felicidade e o significado da vida.
06
– Como a relação entre Marcel Pretre e Pequena Flor se desenvolve?
A relação entre
os dois personagens é marcada pela curiosidade e pela incompreensão. Marcel
Pretre tenta classificar e entender Pequena Flor, enquanto ela o observa com um
olhar enigmático.
07
– Como as diferentes pessoas reagem à notícia sobre Pequena Flor?
As pessoas reagem
de forma diversa ao saber da existência de Pequena Flor. Algumas sentem pena,
outras curiosidade, e outras ainda, um desejo de posse ou de exploração.
08
– Qual a crítica social presente nas reações das pessoas?
O conto critica a
curiosidade mórbida, a superficialidade e a falta de empatia das pessoas. As
reações das pessoas revelam a tendência humana a julgar e a categorizar os
outros com base em suas diferenças.
09
– Quais os temas principais do conto?
Os temas principais do conto
são a diferença, a identidade, a felicidade, a exploração e a natureza humana.
10
– Qual a importância da natureza no conto?
A natureza é um
personagem fundamental no conto. A floresta, com sua exuberância e mistério,
serve como pano de fundo para a história e simboliza a liberdade e a
espontaneidade.
11
– Qual a mensagem final do conto?
O conto nos convida a
refletir sobre o significado da felicidade e da existência. Pequena Flor, com
sua simplicidade e alegria, nos mostra que a felicidade não está ligada à posse
ou ao status social, mas sim à aceitação de si mesmo e à capacidade de
encontrar prazer nas pequenas coisas da vida.