Crônica: Bailes e divertimentos suburbanos – Fragmento
Lima Barreto
Há
dias, na minha vizinhança, quase em frente à minha casa, houve um baile. Como
tinha passado um mês enfurnado na minha modesta residência, que para enfezar Copacabana
denominei "Vila Quilombo", pude perceber todos os preparativos da
festa doméstica: a matança de leitões, as entradas das caixas de doces, a ida
dos assados para a padaria, etc.
Na
noite do baile, fui deitar-me cedo, como sempre faço quando me resolvo a
descansar a sério. Às 9 horas, por aí assim, estava dormindo a sono solto. O
baile já havia começado e ainda com algumas polcas repinicadas ao piano. Às 2 e
meia, interrompi o sono e estive acordado até às 4 da madrugada, quando acabou
o sarau. A não ser umas barcarolas cantadas em italiano, não ouvi outra espécie
de música, a não ser polcas adoidadas e violentamente sincopadas, durante todo
esse tempo.
O dia
veio se fazer inteiramente. Levantei-me da cama e, dentro em breve, tomava o
café matinal em companhia de meus irmãos.
Perguntei
a minha irmã, provocado pela monótona musicaria do baile da vizinhança, se nos
dias presentes não se dançavam mais valsas, mazurcas, quadrilhas ou quadras,
etc. Justifiquei-lhe o motivo da pergunta.
—
Qual! – disse-me ela. – Não se gosta mais disso... O que apreciam os dançarmos
de hoje, são músicas apolcadas, tocadas "a la diable", que servem
para dançar o tango, fox-trot, rang-time, e...
—
"Cake-walk"? – perguntei.
—
Ainda não se dança, ou já se dançou; mas agora, está aparecendo um tal de
"shimmy".
[...]
O baile, não sei se é, era ou foi, uma instituição nacional, mas tenho certeza
de que era profundamente carioca, especialmente suburbano.
Na
escolha da casa, presidia sempre a capacidade da sala de visitas para a
comemoração coreográfica das datas festivas da família. Os construtores das
casas já sabiam disso e sacrificavam o resto da habitação à sala nobre. Houve
quem dissesse que nós fazíamos casa, ou as tínhamos para os outros, porque a
melhor peça dela era destinada a estranhos.
Hoje,
porém, as casas minguam em geral, e especialmente, na capacidade dos seus
aposentos e cômodos. [...] Isto acontece com as famílias remediadas; com as verdadeiramente
pobres, a coisa piora. Ou moram em cômodos ou em casitas de avenidas, que são
um pouco mais amplas do que a gaiola dos passarinhos.
[...]
Quando
fui morar naquelas paragens não havia noite em que voltando tarde para casa, não
topasse no caminho com um baile, com um chôro, como se dizia na gíria do tempo.
Havia famílias que davam um por mês, fora os extraordinários, e havia também
cavalheiros e damas que não faltavam a eles, além de irem a outros de famílias
diferentes.
Eram célebres nos subúrbios, certos rapazes e
moças, como tipos de dançarinos domésticos. Conheci alguns, e ouvi muitos falar
neles. Lembro-me bem, dentre eles, de uma moça que, às vezes, atualmente ainda
encontro, [...]. Chamavam-na Santinha, e tinha uma notoriedade digna de um
poeta de "Amor" ou de um gatimanhas de cinematógrafo. [...] A sua
especialidade estava na valsa americana que dançava como ninguém. Não
desdenhava as outras contradanças, mas a valsa era a sua especialidade. Dos
trezentos e sessenta e cinco dias do ano, só nos dias de luto da semana santa e
no de finados, não dançava. Em todos os mais, Santinha valsava até de
madrugada. [...]
[...]
Nesses
bailes suburbanos, o mártir era o dono da casa: Seu Nepomuceno começava por não
conhecer mais da metade da gente que, transitoriamente, abrigava, porque
Cacilda trazia Nenê e esta o irmão que era namorado daquela – a única cuja
família tinha relações com a do Seu Nepomuceno; e, assim, a casa se enchia de
desconhecidos. Além destes subconvidados, ainda existiam os penetras.
Chamava-se assim certos rapazes que, sem nenhuma espécie de convite, usavam
deste ou daquele truque, para entrar nos bailes – penetrar.
Em
geral, apesar da multidão dos convidados, essas festas domésticas tinham um
grande cunho de honestidade e respeito. Eram raros os excessos e as danças, com
o intervalo de um hora, para uma ceia modesta, se prolongavam até o clarear do
dia sem que o mais arguto do sereno pudesse notar uma discrepância nas atitudes
dos pares, dançando ou não. Sereno, era chamado o agrupamento de curiosos que
ficavam na rua a espiar o baile. Quase sempre era formado de pessoas das
vizinhanças e outras que não haviam sido convidadas e lá se postavam para ter
assunto em que baseassem a sua despeitada crítica.
[...]
Sem
receio de errar, entretanto, pode-se dizer que o baile familiar e burguês,
democrático e efusivo, está fora da moda, nos subúrbios. A carestia da vida, a
exiguidade das casas atuais e a imitação da alta burguesia desfiguraram-no
muito e tendem a extingui-lo.
[...]
Uma
outra diversão que, antigamente, os suburbanos apreciavam muito e hoje está
quase morta, era a do teatrinho de amadores. Quase todas as estações tinham
mantido um Clube. O do Riachuelo, teve a sua meia hora de celebridade; possuía
um edifício de razoáveis proporções; mas desapareceu, e, atualmente, foi
transformado em escola municipal. O que havia de característico na vida
suburbana, em matéria de diversão, pouco ou quase nada existe mais. O cinema
absorveu todas elas e, pondo de parte o Mafuá semi-eclesiástico, é o maior
divertimento popular da gente suburbana.
[...]
O
futebol flagela também aquelas paragens como faz ao Rio de Janeiro inteiro. Os
clubes pululam e os há em cada terreno baldio de certa extensão.
Nunca
lhes vi uma partida, mas sei que as suas regras de bom-tom em nada ficam a
dever às dos congêneres dos bairros elegantes.
A
única novidade que notei, e essa mesma não me parece ser grave, foi a de
festejarem a vitória sobre um rival, cantando os vencedores pelas ruas, com
gambitos nus, a sua proeza homérica com letra e música da escola dos cordões
carnavalescos. Vi isto só uma vez e não garanto que essa hibridação do samba,
mais ou menos africano com o futebol anglo-saxônio, se haja hoje generalizado
nos subúrbios. Pode ser, mas não tenho documentos para tanto afiançar.
Resta-nos
o Carnaval; é ele, porém, tão igual por toda a parte, que foi impossível,
segundo tudo faz crer, ao subúrbio dar-lhe alguma coisa de original. Lá, como
na Avenida, como em Niterói, como em Maxambomba, como em todo este Brasil
inteiro, são os mesmos cordões, blocos, grupos, os mesmos versos indignos de
manicômio, as mesmas músicas indigestas [...].
O
subúrbio não se diverte mais. A vida é cara e as apreensões muitas, não
permitindo prazeres simples e suaves, doces diversões familiares, equilibradas
e plácidas. Precisa-se de ruído, de zambumba, de cansaço, para esquecer, para
espançar as trevas que em torno da nossa vida, mais densas se fazem, dia para
dia, acompanhando "pari-passu" as suntuosidades republicanas.
[...]
Para as dificuldades materiais de sua precária existência, criou esse seu
paraíso artificial, em cujas delícias transitórias mergulha, inebria-se
minutos, para esperar, durante horas, dias e meses, um aumentozinho de
vencimentos...
Gazeta de Notícias, 7-2-1922.
BARRETO, Lima. Bailes e
divertimentos suburbanos. In: BARRETO, Lima. Marginália. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000154.pdf.
Acesso em: 20 abr. 2020.
Fonte: Linguagens em
Interação – Língua Portuguesa – Ensino Médio – Volume Único – Juliana Vegas
Chinaglia – 1ª edição, São Paulo, 2020 – IBEP – p. 42-45.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
À la diable: expressão em francês que significa “para o diabo”.
·
Arguto: aquele que tem a capacidade de perceber rapidamente as coisas
mais sutis.
·
Mazurca: dança polonesa em compasso ternário; ritmo musical cuja
composição instrumental tem as características dessa dança.
·
Fox-trot: dança de salão de origem norte-americana, cuja direção segue
o sentido anti-horário, em andamento suave e progressivo.
·
Gatimanha: neologismo do autor.
·
Mafuá: baile popular.
02 – Qual é o cenário inicial da crônica?
O cenário inicial
é uma vizinhança onde há um baile, próximo à casa do narrador, que ele chama de
"Vila Quilombo". O narrador descreve os preparativos para a festa e
comenta sobre a música ouvida durante a noite.
03
– Por que o narrador pergunta à irmã sobre as danças da época?
O narrador
pergunta à irmã sobre as danças porque, durante o baile, percebeu que apenas
polcas eram tocadas, o que o fez questionar se outros tipos de danças, como
valsas e quadrilhas, ainda eram populares.
04
– Quais estilos de música e dança eram populares entre os dançarinos na época?
Os dançarinos
apreciavam músicas "apolcadas", tocadas de maneira acelerada, e
dançavam principalmente o tango, fox-trot, ragtime e estavam começando a dançar
o "shimmy".
05
– Como eram as casas suburbanas, segundo o narrador?
As casas
suburbanas eram construídas com uma grande sala de visitas, destinada a bailes
e reuniões familiares, mesmo que o resto da casa fosse sacrificado em termos de
espaço.
06
– O que o narrador comenta sobre a mudança no tamanho das casas suburbanas?
O narrador
observa que, com o tempo, as casas suburbanas ficaram menores, especialmente em
relação ao tamanho dos cômodos, o que dificultava a realização de bailes e
reuniões familiares.
07
– Como eram os bailes suburbanos mencionados na crônica?
Os bailes
suburbanos eram eventos frequentes, realizados em casas de família, com muitos
convidados, incluindo pessoas que os anfitriões muitas vezes não conheciam bem.
Esses eventos eram marcados por honestidade e respeito, e as danças duravam até
o amanhecer.
08
– Quem eram os "penetras" mencionados na crônica?
Os
"penetras" eram rapazes que entravam nos bailes sem convite, usando
truques para se infiltrar nas festas. Apesar disso, os bailes mantinham uma
atmosfera de respeito.
09
– Como o narrador descreve a diversão suburbana no passado em comparação com o
presente?
O narrador
lamenta que as diversões suburbanas tradicionais, como bailes e teatrinhos de
amadores, estejam desaparecendo. Ele menciona que o cinema e o futebol
substituíram essas atividades, e que a vida suburbana se tornou mais cara e
preocupante, reduzindo os prazeres simples.
10
– Qual é a opinião do narrador sobre o Carnaval nos subúrbios?
O narrador acredita
que o Carnaval nos subúrbios é igual ao de outras partes do Brasil, sem
originalidade, com os mesmos cordões, blocos e músicas repetitivas.
11
– Qual é o tom final do narrador em relação à vida suburbana?
O narrador adota
um tom melancólico e crítico, destacando que a vida suburbana perdeu suas
antigas diversões simples e que os moradores agora buscam um alívio temporário
em prazeres barulhentos e intensos para escapar das dificuldades da vida
cotidiana.
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