Crônica: Na roça do Lourenço – Fragmento
Viriato Corrêa
De quando em quando, inventávamos uns
brinquedos e, como das nossas cabeças não saíam as histórias contadas por Vovó
Candinha, nos brinquedos que inventávamos quase sempre figuravam reis,
príncipes, princesas e pajens.
Naquela noite, ao luar, eu fazia de
rei. O Mundico batia à porta do meu palácio:
— Ó de casa!
— Ó de fora! respondia eu. Quem está
aí?
— Um príncipe.
— Entre.
Depois batia o Quincas. Eu perguntava.
— Quem é?
— Um lavrador que pede licença para
falar a Vossa Majestade.
— Espere aí embaixo.
— Majestade, eu tenho pressa, insistia
ele.
— Espere, se quiser. Não vou deixar de
atender a um príncipe para atender a um trabalhador de enxada.
No momento em que eu pronunciava estas
palavras, meu pai passava perto. Vi-o parar. Senti que me queria dizer alguma
coisa, mas imediatamente se arrependeu, seguindo o seu caminho.
No dia seguinte, às duas da tarde,
papai me convidou.
— Vamos à roça do Lourenço?
Pulei de contente. Passeios daqueles
enchiam-me sempre de alegria.
Papai montou a cavalo, sentou-me na lua
da sela e partimos.
Era no tempo da colheita.
No tempo da colheita, as roças dão à
gente uma deliciosa impressão de fartura e de esplendor. A terra como que se
transforma toda em frutos, frutos aos pares, às dezenas, aos milheiros, nos
caules, nos galhos e nas ramas.
A roça do Lourenço era imensa.
No milharal cerrado tremulava ao vento
a cabeleira loura das espigas. Abóboras e melancias fechavam os caminhos com as
longas ramagens e os grandes frutos. O mandiocal agitava ao sopro da brisa as
folhas espalmadas. O feijão subia enrascado nas hastes do milho. [...].
Havia de tudo: aipim, algodão, cana,
fumo, maxixeiros, gergelim, quiabeiros, batata-doce, cará. E tudo
abundantemente, excessivamente, como se a terra estivesse mostrando que tinha
muito e muito queria dar.
Logo que transpusemos a roça, o
Lourenço correu ao nosso encontro, levando-nos para a sombra de um cajazeiro.
[...].
Apoiado à enxada com que limpava o
mato, o lavrador pôs-se a contar a meu pai as suas esperanças de boa colheita.
Estava nu da cintura para cima e, com o
busto todo molhado pelo suor, dava a impressão de que se derretia ao fogo
daquele sol.
Mosquitos zumbiam em nuvens. Eu me
senti atordoado.
Ele percebeu a minha inquietação e
disse prestimosamente:
— Isso é calor. Para refrescar não há
como melancia. Vou abrir-lhe uma.
Gritou pelo nome dos dois filhos para
que trouxessem a fruta e, como ninguém respondesse, sumiu-se por entre a
folhagem do milharal.
— Não sei como esse homem trabalha com
tanto sol, tanto calor e tanto mosquito! exclamei.
Meu pai cravou-me os olhos amigos.
— No entanto tu não prezas o trabalho
desse homem.
— Eu? bradei surpreendido.
— Sim. Ontem à noite, quando brincavas
de rei, disseste que não ias deixar de atender a um príncipe para atender a um
trabalhador de enxada. Um trabalhador de enxada, meu filho, é maior do que um
príncipe, quando o príncipe vive na ociosidade. O homem só vale quando trabalha
e o trabalho, seja ele qual for — o de enxada ou qualquer outro — é digno e
nobre desde que seja honesto.
E depois de uma ligeira pausa:
— Os lavradores como o Lourenço são
humildes, mas nem por isso deixam de ser úteis. Não há nada mais insignificante
do que um pingo d’água. Mas, um pingo d’água, mais outro pingo, mais outro,
milhões, milhões e bilhões de pingos formam a chuva que molha a terra, que
enche os rios, que rebenta as sementes e que produz as colheitas. Cada
trabalhador de enxada que vês nas roças, cavando a terra, ao sol, ao calor,
entre nuvens de mosquitos, é o pingo d’água da grandeza do nosso país. O
bocadinho que um colhe aqui, o bocadinho que outro colhe acolá, outro bocadinho
além e muitos e muitos bocadinhos formam a vida do Brasil, a abundância do Brasil,
a riqueza do Brasil.
O Lourenço chegava.
Foi com um sorriso de agradecimento
respeitoso que eu lhe recebi as talhadas frescas de melancia.
Viriato Corrêa. Cazuza.
27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.
Entendendo a crônica:
01 – Quem são os personagens
principais na brincadeira de faz de conta descrita no início da crônica?
Os personagens
principais são o narrador (quem conta a história) e seus amigos Mundico e
Quincas.
02 – Qual é o motivo do
passeio à roça do Lourenço no dia seguinte?
O passeio à roça
do Lourenço acontece no dia seguinte porque o pai do narrador o convida para
visitar a plantação durante a colheita.
03 – Descreva a cena da roça
do Lourenço durante a colheita.
Durante a colheita, a roça do Lourenço se
transforma em um cenário exuberante, com milharais, abóboras, melancias,
mandiocal, feijão e uma variedade de cultivos dando a sensação de fartura e
esplendor.
04 – Como o lavrador Lourenço
recebe o pai e o narrador na roça?
Lourenço corre ao encontro deles e os
leva para a sombra de um cajazeiro, mostrando-se amigável e hospitaleiro.
05 – Como o narrador reage ao
calor e aos mosquitos na roça do Lourenço?
O narrador se
sente atordoado devido ao calor e aos mosquitos, expressando seu desconforto.
No entanto, Lourenço oferece uma solução ao sugerir melancia para refrescar.
06 – O que o pai do narrador
ensina a ele durante o passeio na roça?
O pai do narrador
ensina a importância do trabalho, destacando que o trabalho honesto, seja ele
de enxada ou qualquer outro, é digno e nobre. Ele compara os trabalhadores de
enxada a pequenos pingos d'água que, juntos, contribuem para a grandeza e
riqueza do país.
07 – Como termina a interação
entre o narrador e Lourenço na roça?
A interação
termina com o narrador recebendo as talhadas frescas de melancia de Lourenço
com um sorriso de agradecimento respeitoso, indicando uma mudança em sua
percepção sobre o valor do trabalho do lavrador.
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