Crônica: Figuras do povoado
Viriato Corrêa
Tenho bem vivas na memória as crianças
de minha idade e de meu tamanho que brincaram comigo no povoado. Mas são poucas
as criaturas grandes que me ficaram na lembrança.
Uma delas é o Jorge Carreiro. Alto como
um gigante, forte como um novilho, possuía, no entanto, alma de criançola.
Brincava conosco como se fosse também
menino; carregava-nos aos ombros, escanchava-nos no cogote e fazia de cavalo
para que lhe montássemos nas costas.
Era nosso melhor amigo. Quando zoava,
ao longe, a cantiga do seu carro de bois, havia, nas casas, uma algazarra
estouvada de crianças. Corríamos todos para a estrada. Enquanto os outros
carreiros não se cansavam de nos ralhar, o Jorge consentia que trepássemos no
seu carro. Ele próprio nos apanhava no chão e nos ajeitava entre a carga.
Era uma cena encantadora de ruído e de
alegria, a entrada do carro do Jorge no povoado. Sobre rumas de cana,
melancias, espigas de milho ou sacos de feijão, vinham dezenas de meninos
gritando festivamente.
Os bois que puxavam o carro tinham a
alma do dono. Não houve bois mais mansos e mais pacientes no mundo. A natureza
como que os fez de propósito para aturar as traquinadas da infância.
Dávamos-lhes de comer, na mão, como se eles fossem carneiros; trepávamos-lhes
nas pernas, nos chifres, no pescoço, sem que fizessem o menor movimento de
irritação.
Outra figura é a do professor João
Ricardo. Homem velho, bigode branco, óculos escuros, pigarro de quem sofre de
asma.
Nunca lhe vi um sorriso no rosto. Vivia
sempre zangado, com o ar de quem está a ralhar com o mundo, cara amarrada,
rugas na testa.
Para as criancinhas do meu tamanho,
representava o papel de lobisomem. Tínhamos-lhe um medo louco. Se estávamos a
brincar num terreiro e o percebíamos ao longe, ficávamos silenciosos e quem
podia esconder-se — escondia-se; quem podia fugir — fugia.
Só depois que ele passava e quando já
não lhe víamos mais a sombra, é que o brinquedo recomeçava.
O velho Mirigido é também outra
criatura de quem nunca me esqueci.
Não me lembro qual a sua ocupação no
povoado, mas me parece que não tinha outro ofício senão o de meter medo às
crianças.
Era um pretalhão comprido, magro,
cabeludo, tão velho que já vivia curvado para a frente, em forma de arco.
Andava pelos caminhos de saco às
costas, resmungando cantigas esquisitas que ninguém entendia.
Nem um dente na boca, boca muito
vermelha, que ele escancarava horrendamente quando queria assustar algum
menino.
Corria como verdade, entre as crianças,
que o preto velho, na última sexta-feira de cada mês, virava bicho. O bicho,
dizia-se, era a "cobra chifruda" — cobra estranha, fantástica,
diferente das outras cobras, de cabeça de onça, chifres de veado, mais grossa
que um tronco de árvore.
E o pior de tudo é que era perna de
criança o petisco que a cobra mais gostava de comer.
O Mirigido enchia-nos a cabeça de pavor
e o sono de pesadelos. Mais de uma vez acordei, aos gritos, sonhando que ele me
estava roendo a canela.
Para as mães, o preto velho tinha uma
utilidade: ajudava-as a curar a doença dos filhinhos.
Não havia remédio que mais
repugnássemos do que o óleo de rícino e o quinino. Conseguir que os
engolíssemos era a dificuldade das nossas mães.
O Mirigido resolvia facilmente a
dificuldade. Quando se queria aplicar quinino ou óleo de rícino a alguma
criança, mandava-se chamar o preto-velho. Ele vinha pontualmente. E ia entrando
no quarto a roncar como um bicho, de facão desembainhado, dizendo
aterradoramente:
— Que barulho é esse aí? Vou comer esse
menino! Vou comer esse menino, agora mesmo!
E batia com os pés no chão e dançava e
se mexia desengonçadamente. Um verdadeiro demônio.
— Vou virar a cobra chifruda! berrava.
Vou virar a cobra chifruda!
E, fingindo amolar o grande facão no
braço, repetia com voz rouquenha:
— Vou comer a perna desse menino! Vou
chupar os ossinhos desse menino!
Ficávamos geladinhos da cabeça aos pés.
E de um trago, de um trago só,
engolíamos o remédio.
Viriato Corrêa. Cazuza.
27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.
Entendendo a crônica:
01 – Quem é Jorge Carreiro na
crônica "Figuras do povoado" de Viriato Corrêa?
Jorge Carreiro é um homem alto e forte,
mas com alma de criança, que brincava com as crianças do povoado, carregando-as
nos ombros e fazendo-as montar em seu carro de bois.
02 – Como as crianças do
povoado reagiam à chegada do carro de Jorge Carreiro?
Ao ouvirem a
cantiga do carro de bois de Jorge Carreiro ao longe, as crianças corriam para a
estrada, criando uma algazarra festiva. Ele permitia que as crianças subissem
em seu carro, tornando a cena encantadora.
03 – Qual é a impressão que o
professor João Ricardo causa nas crianças do povoado?
O professor João
Ricardo é visto como uma figura amedrontadora pelas crianças, sendo comparado a
um lobisomem. Elas tinham medo dele e se escondiam quando o avistavam, só
retomando suas brincadeiras depois que ele passava.
04 – Descreva a figura do
velho Mirigido na crônica.
O velho Mirigido
é um homem preto, comprido, magro, cabeludo e muito velho, que anda pelos
caminhos do povoado com um saco às costas. Ele resmunga cantigas estranhas, tem
uma boca sem dentes e é associado à lenda de se transformar em uma cobra
chifruda.
05 – Qual é a história
associada ao Mirigido que causa medo nas crianças?
Corre entre as crianças a história de que
o Mirigido se transforma em uma cobra chifruda na última sexta-feira de cada
mês. Dizem que essa cobra é diferente e fantástica, com cabeça de onça e
chifres de veado, e que gosta de comer pernas de crianças.
06 – Como o Mirigido ajudava
as mães a administrar remédios às crianças?
O Mirigido ajudava as mães a fazer as
crianças engolirem remédios desagradáveis, como óleo de rícino e quinino. Ele
entrava no quarto ameaçando virar uma cobra chifruda e assustava as crianças,
fazendo-as engolir o remédio de uma só vez.
07 – Qual era a reação das
crianças diante das encenações assustadoras do Mirigido?
As crianças
ficavam geladas da cabeça aos pés diante das encenações aterrorizantes do
Mirigido. Ele as assustava ameaçando comer suas pernas e chupar seus ossinhos,
levando as crianças a engolirem rapidamente o remédio para evitar tal destino
assustador.
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