Conto: Dublê de Ogum!
Cidinha da Silva
Tudo começou com uma brincadeira quando
ele ainda era criança. O menino subia na cisterna com a capa de prata colada ao
pescoço, espada de plástico azul em punho e gritava: pelos poderes de
Graiscow. Depois pulava no chão fingindo voar. A família preocupava-se
porque ele já era um moço com sombra de bigode e não abandonava o brinquedo
infantil, mesmo que o desenho-animado não passasse mais na TV. Às vezes ficava
emburrado, pensativo. A mãe atribuía o fato ao fim do seriado.
Aos treze, completados em 24 de abril,
muniu-se da capa e da espada e parou no portão da casa, de braços cruzados,
olhar muito firme. Assim ficou por longos minutos. A avó que morava na casa de
cima, disse que aquilo já passava dos limites e deveriam levá-lo a um
psiquiatra. Levaram. A gota d’água para tomar tão difícil e dolorosa decisão
familiar foi o dia em que o menino enfrentou um cachorro com sua espada de
plástico, dizendo coisas esquisitas: “Não ouse me enfrentar, levantar a cabeça
ou os olhos para me ver que sua cabeça rolará serra abaixo”.
Marcaram a consulta com uma psiquiatra.
A avó foi junto. Primeiro a médica explicou às duas mulheres como trabalhava.
Disse que não existiam loucos, mas pessoas inadaptadas ao mundo em que viviam,
em sofrimento mental ou espiritual. Em alguns casos havia pessoas com
deficiência de certas substâncias ou excesso de outras no organismo, coisa que
a medicina ortomolecular já estava tratando. O importante era ter abertura para
entrar no mundo da pessoa afetada e procurar compreendê-la, sem julgamentos.
Alertou também que trabalhava com os sonhos e como se tratava de um
adolescente, a família precisaria concordar em participar do tratamento.
A avó olhou para a filha, achou tudo
muito estranho, principalmente o negócio dos sonhos, mas se era para o bem do
menino, concordava. Como nos casos de decisões mais sérias, quem tomava a
frente era a avó, estava todo mundo de acordo, leia-se, a mãe, pois o pai,
sempre embriagado e ausente, nem via o que se passava.
O menino contou um dos sonhos. Ele se
vestia como o Homem de Ferro, personagem dos quadrinhos, e uma matilha de cães
o atacava. Ele desembainhava a espada e cortava a cabeça de todos, um por um.
Tomado por ira terrível, cortava também a cabeça dos passantes que o observavam
e não lhe rendiam graças.
Em outro, ele morava em país distante,
onde todo mundo era preto e ele também. Vivia no coração da montanha mais alta
e os moradores avisavam aos estrangeiros que aquela era a casa de um homem
jovem, muito grande e muito forte, ferreiro de profissão. O trabalho na forja
só era interrompido quando alguém subia a montanha. Ele se dirigia ao incauto e
dizia: “O que te traz aqui, viajante? Por que tomaste minha estrada?” Alguns
respondiam que andavam a esmo, a procura de um caminho; outros ouviram dizer
que se rogassem a ele, o guardião da montanha e da forja, seus caminhos seriam
abertos. Ele ria jocoso e indagava: “Como posso te abrir os caminhos se não
tens um rumo a seguir?” E então explicava: “Embora aches que me procuras,
buscas a ti mesmo e não te faltarei. Mas o caminho deverá ser feito por ti.
Posso te conduzir em meus braços, mas a travessia será tua.” “E se eu não
quiser, posso desistir?” Ele ri, dessa vez um riso estrondoso, de desdém e
malícia. “Não há escolha, humano tolo e incrédulo. Quem chega até aqui é
obrigado a atravessar.” “Você me chamou de humano. Você, por acaso, não é
gente?” “Não despeje mais tolice do que tua cabeça comporta. Tu vieste
aqui para conhecer os teus mistérios, os meus, não te é dado saber. Prepara-te,
pois vais atravessar a montanha comigo.”
E cada pessoa que chegava a esse
momento, não continha um grito de horror quando via o abismo de cerca de dois
metros de largura que separava os dois lados da montanha. Como atravessar
aquilo? Aquele homem sozinho até poderia fazê-lo, mas como atravessar com
alguém no colo?
Alheio às conjecturas dos viajantes o
homem se concentra diante do fogo. Retira a espada da forja, mira o horizonte,
corta para a direita, para o centro e para a esquerda. Coloca-a acima da
cabeça, amparada pelas duas mãos, deposita-a novamente na forja. Ajoelha-se no
chão, parece fazer uma prece. Abre os braços e diz palavras desconhecidas. Toma
a espada outra vez e ordena ao homem que o aguarda: “Siga-me, viajante!” “Para
onde?” Ele pensa. “Para o abismo?” Pergunta-se o que fora fazer ali, despede-se
da vida, pois é certo que vai morrer. E se fugisse? Impossível, conclui.
O homem da espada era um potente guerreiro de um lugar chamado Ifé e o
alcançaria em poucos passos. Isso se não o transformasse em pedra, bicho ou
grão, por meio de algum raio, ou coisa que o valha. Poderia cortar-lhe a cabeça
com a espada. Não, era mais prudente esperar a morte certeira no abismo.
O ferreiro, muito sério e determinado,
chega a menos de um metro do buraco fundo que separa os dois lados da montanha
e chama o homem: “Venha, é chegada a tua hora”. Finca a espada na pedra e pega
o homem de oitenta quilos em seu colo. Ele se agarra ao pescoço do ferreiro
como um bebê. O ferreiro retira a espada do chão, ergue-a para o céu, flexiona
os joelhos e voa para a outra margem. O homem, quando abre os olhos, já está em
terra, na margem oposta. O ferreiro dá outra ordem: “Siga por aquela estrada e
encontrarás o caminho! Não olhe para trás.” “Não entendo, a estrada não é o
caminho de volta?” O ferreiro ri e diz que sua parte está feita.
A médica impressiona-se com a riqueza
de detalhes dos sonhos do garoto e pergunta o que eles despertam nele. O garoto
diz sentir-se aquele homem, o que corta as cabeças, é de ferro e voa com uma
espada na mão. Um dublê de Ogum, ela intui.
Cidinha da Silva. Do
livro Cada tridente em seu lugar, de 2006.
Entendendo o conto:
01 – Qual é a idade do
protagonista quando a história começa?
Ele é descrito como
um moço com sombra de bigode, indicando que já não é mais uma criança, mas não
é especificada uma idade exata.
02 – O que levou a família a
considerar levá-lo a um psiquiatra?
O comportamento
do menino, que incluía agir como o personagem de um desenho animado e enfrentar
um cachorro com uma espada de plástico enquanto dizia coisas estranhas.
03 – Qual foi o conteúdo de um
dos sonhos compartilhados pelo menino durante a consulta com a psiquiatra?
Ele sonhou que se
vestia como o Homem de Ferro e enfrentava uma matilha de cães, cortando suas
cabeças. Além disso, ele também cortava as cabeças de passantes que o
observavam.
04 – Qual é a reação das
pessoas que encontram o homem jovem que vive na montanha em outro sonho do
protagonista?
Elas expressam
horror ao se depararem com o abismo que separa os lados da montanha e
questionam como seria possível atravessá-lo.
05 – O que o ferreiro faz para
atravessar o abismo na história do sonho?
Ele usa sua
espada, realiza movimentos específicos com ela e, depois, carrega o homem do
outro lado, voando com ele.
06 – O que é sugerido sobre o
protagonista pelo final do conto?
Ele se identifica
com o homem do sonho, aquele que corta cabeças, se sente como o Homem de Ferro
e é intuído como um "dublê de Ogum" pela psiquiatra.
07 – Como a família reage à
sugestão da psiquiatra sobre o tratamento do menino?
A avó concorda com o tratamento, enquanto
a mãe parece estar de acordo, mas o pai, ausente e embriagado, não parece
envolvido na decisão.
08 – Que explicação a
psiquiatra dá sobre pessoas que são consideradas "loucas"?
Ela afirma que
não existem loucos, apenas pessoas que podem ser inadaptadas ao mundo em que
vivem, sofrendo mental ou espiritualmente. Ela também menciona a possibilidade
de desequilíbrios bioquímicos tratáveis pela medicina ortomolecular.
09 – Qual é o papel da avó na
tomada de decisões sérias na família?
Ela costuma
liderar as decisões mais sérias, como no caso do tratamento do menino, quando
todos concordam (incluindo a mãe, com a ausência do pai).
10 – O que os sonhos
detalhados revelam sobre a experiência do protagonista e como ele se sente em
relação a eles?
Os sonhos
detalhados revelam uma sensação de identidade e poder para o protagonista. Ele
se sente conectado aos personagens dos sonhos, expressando emoções intensas e
assumindo papéis de força e domínio.
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