Conto: A colcha de retalhos
Monteiro Lobato
— Upa!
Cavalgo e parto.
Por estes dias de março a natureza
acorda tarde.
Passa as manhãs embrulhada num roupão
de neblina e é com espreguiçamentos de mulher vadia que despe os véus da
cerração para o banho de sol.
A névoa esmaia o relevo da paisagem,
desbota-lhe as cores. Tudo parece coado através dum cristal despolido.
Vejo a orla de capim tufada como debrum
pelo fio dos barrancos; vejo o roxo-terra da estrada esmaecer logo adiante; e
nada mais vejo senão, a espaços, o vulto gotejante de alguns angiqueiros
marginais.
Agora, uma porteira.
Ali, a encruzilhada do Labrego.
Tomo à destra, em direitura ao sítio de
José Alvorada. Este barba-rala mora-me a jeito de empreitar um roçado no
capoeirão do Bilu, nata de terra que pelas bocas do caeté legítimo, da
unha-de-vaca e da caquera está a pedir foice e covas de milho.
Não é difícil a puxada: com cinquenta
braças de carreador boto a roça no caminho.
Três alqueires, só no bom. Talvez
quatro. A noventa por um — nove vezes quatro, trinta e seis; trezentos e
sessenta alqueires de oito mãos. Descontadas as bandeiras que o porco estraga e
o que comem a paca e o rato…
Será
a filha de Alvorada?
— Bom dia, menina! O pai está em casa?
É a filha única. Pelo jeito não vai
além de catorze anos. Que frescura! Lembra os pés de avenca viçados nas grotas
noruegas.
Mas arredia e ité como a fruta do gravatá.
Olhem como se acanhou! De olhos baixos, finge arrumar a rodilha. Veio pegar
água a este córrego e é milagre não se haver esgueirado por detrás daquela
moita de taquaris, ao ver-me.
— O pai está lá? — insisti.
Respondeu um “está” enleado, sem erguer
os olhos da rodilha.
Como a vida no mato asselvaja estas
veadinhas! Note-se que os Alvoradas não são caipiras. Quando comprou a situação
dos Periquitos, o velho vinha da cidade; lembro-me até de que entrava em sua
casa um jornal.
Mas
a vida lhes correu áspera na luta contra as terras ensapezadas e secas, que
encurtam a renda por mais que dê de si o homem. Foram rareando as idas à cidade
e ao cabo de todo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina, rebento
floral em anos outoniços, e que a geada queimou o café novo — uma tamina, três
mil pés —, o velho, amuado, nunca mais espichou o nariz fora do sítio.
Se o marido deu assim em urumbeva, a
mulher, essa enraizou de peão para o resto da vida. Costumava dizer: mulher na
roça vai à vila três vezes — uma a batizar, outra a casar, terceira a enterrar.
Com tais casmurrices na cabeça dos velhos, era natural que a pobrezinha da
Pingo d’Água (tinha esse apelido Maria das Dores) se tolhesse na desenvoltura
ao extremo de ganhar medo às gentes. Fora uma vez à vila com vinte dias, a
batizar. E já lá ia nos catorze anos sem nunca mais ter-se arredado dali.
Ler? Escrever? “Patacoadas, falta de
serviço”, dizia a mãe. Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma
professora, se desde que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro? Na
roça, como na roça.
Deixei a menina às voltas com a rodilha
e embrenhei-me por um atalho conducente à morada.
Que descalabro!…
Da casa velha aluíra uma ala, e o
restante, além da cumeeira selada, tinha o oitão fora do prumo.
O velho pomar, roído de formiga,
morrera de inanição; na ânsia de sobreviver, três ou quatro laranjeiras
macilentas, furadas de broca e sopesando o polvo retrançado da
erva-de-passarinho, ainda abrolhavam rebentos cheios de compridos acúleos. Fora
disso, mamoeiros, a silvestre goiaba e araçás, promiscuamente com o mato
invasor que só respeitava o terreirinho batido, fronteiro à casa. Tapera quase
e, enluradas nela, o que é mais triste, almas humanas em tapera.
Bati palmas.
— Ó de casa!
Apareceu a mulher.
— Está seu Zé?
— Inda agorinha saiu, mas não demora.
Foi queimar um mel na maçaranduva do pasto. Apeie e entre.
Amarrei o cavalo a um moirão de cerca e
entrei.
Acabadinha, a Sinh’Ana. Toda rugas na
cara — e uma cor… Estranhei-lhe aquilo.
— Doença! — gemeu. — Estou no fim.
Estômago, fígado, uma dor aqui no peito que responde na cacunda. Casa velha, é
o que é.
— Metade é cisma — disse-lhe para
consolo.
— Eu é que sei! — retrucou-me
suspirando.
Entrementes, surgiu da cozinha uma
velhota bem-apessoada, no cerne, rija e tesa, que saudou e:
— Está espantado do jeito de Nhana?
Esta gente de agora não presta para nada. Olhe, eu com setenta no lombo não me
troco por ela. Criei minha neta e inda lavo, cozinho e coso. Admira-se? Coso,
sim!…
— Mecê é gabola porque nunca padeceu
doença — nem dor de dente! Mas eu? Pobre de mim! Só admiro ainda estar fora da
cova… Aí vem Zé.
Chegava Alvorada. Ao ver-me abriu a
cara.
— Ora viva quem se lembra dos pobres!
Não pego na sua mão porque estou assim… É só melado. Bonito, hein? Estava
difícil, num oco muito alto e sem jeito. Mas sempre tirei. Não é jiti, não! É
mel-de-pau.
Depôs num mocho a cuia dos favos e se
foi à janela, lavar as mãos à caneca d’água que a mulher despejava. Pôs os
olhos no meu cavalo.
— Hoje veio no picaço… Bom bicho! Eu
sempre digo: animais aqui no redor, só este picaço e a ruana do Izé de Lima. O
mais é eguada de moenda.
Neste momento entrou a menina de pote à
cabeça. Ao vê-la o pai apontou para a cuia de mel.
— Está aí, filha, o doce da aposta.
Perdi, paguei. Que aposta? Ah! ah! Brincadeira. A gente cá na roça, quando não
tem serviço, com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de
maritacas. Eu disse à toa: “São mais de dez!”. Pingo negou: “Não chega lá!”.
Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o doce. Doce da roça mel é. Esta songuinha só
vendo; não é o que parece, não…
A loquacidade daquele homem não
desmedrara com o atraso da vida. Em se lhe dando corda, ressurgia nele o
tagarela da cidade.
Expus-lhe o negócio. Alvorada enrugou a testa; refletiu um bocado, de queixo
preso. Depois:
—
Eu hoje, franqueza, não valho mais nada. Desde que caí daquela amaldiçoada
ponte do Labrego, fiquei assim como quebrado por dentro. Não escoro serviço, e
para lidar com camaradas no eito não basta ter boca. Sem puxar a enxada de par
com eles, a coisa não vai, não! Lembra-se da empreitada do ano retrasado? Pois
saí perdendo. O tranca do João Mina me quebrou um machado e furtou uma foice.
Com esses prejuízos, não livrei o jornal. Desde então fiz cruz em serviço
alheio. Se ainda teimo neste sapezal amaldiçoado é por via da menina; senão,
largava tudo e ia viver no mato, como bicho. É Pingo que inda me dá um pouco de
coragem — concluiu com ternura.
A velhinha sentara-se à luz da janela
e, abrindo uma caixeta, pusera-se a coser, de óculos na ponta do nariz.
Aproximei-me, admirativo.
— Sim, senhora! Com setenta anos!
Sorriu, lisonjeada.
— É para ver. E isto aqui tem coisa. É
uma colcha de retalhos que venho fazendo há catorze anos, desde que Pingo
nasceu. Dos vestidinhos dela vou guardando cada retalho que sobeja e um dia os
coso. Veja que galantaria de serviço…
Estendeu-me ante os olhos um pano
variegado, de quadrinhos maiores e menores, todos de chita, cada qual de um
padrão.
— Esta colcha é o meu presente de
noivado. O último retalho há de ser do vestido de casamento, não é, Pingo?
Pingo d’Água não respondeu. Metida na
cozinha, percebi que nos espiava por uma fresta.
Mais dois dedos de prosa com Alvorada,
um cafezinho ralo — escolha com rapadura — e:
— Está bem — rematei, levantando-me do
mocho de três pernas.
— Como não pode ser, paciência. Apesar
disso acho que deve pensar um bocado. Olhe que este ano se estão pagando os
roçados a 80 mil-réis o alqueire. Dá para ganhar, não?
— Que dá, sei que dá — mas também sei
para quem dá. Um perrengue como eu não pensa mais nisso, não. Quando era gente,
muitos peguei a 60 e não me arrependi. Mas hoje…
— Nesse caso…
Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse intervalo
Sinh’Ana faleceu. Era fatal a dor que respondia na cacunda. E não mais me
aflorava à memória a imagem daqueles humildes urupês, quando me chegou aos
ouvidos o zum-zum corrente no bairro, uma coisa apenas crível: o filho de um
sitiante vizinho, rapaz de todo pancada, furtara Pingo d’Água aos Periquitos.
— Como isso? Uma menina tão acanhada!…
— É para ver! Desconfiem das sonsas…
Fugiu, e lá rodou com ele para a cidade — não para casar, nem para enterrar. Foi
ser “moça”, a pombinha…
O incidente ficou a azoinar-me o
bestunto. À noite perdi o sono, revivendo cenas da minha última visita ao
sítio, e nasceu-me a ideia de lá tornar. Para? Confesso: mera curiosidade, para
ouvir os comentários da triste velhinha. Que golpe! Desta feita ia-se-lhe a
rijeza de cerne.
Fui.
Setembro entumecia gomos em cada
arbusto. Nenhuma neblina. A paisagem desenhava-se nítida até aos cabeços dos
morros distantes.
Por amor à simetria, montava eu o mesmo
picaço. Transpus a mesma porteira. Atalhei pelo mesmo trilho.
No córrego vi, com os olhos da
imaginação, o vulto da menina envergonhada com o pote em repouso na laje e toda
às voltas com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me, deserta. As
três árvores do pomar extinto eram já galhaça resseca e poenta. Só os mamoeiros
subsistiam, mais crescidos, sempre apinhados de frutos. O resto piorara,
descambando para o lúgubre. Ruíra o oitão e o terreirinho pintalgara-se de
moitas de guanxuma, cordão-de-frade e joás.
— Ó de casa! — gritei.
Silêncio. Três vezes repeti o apelo.
Por fim surgiu dos fundos uma sombra acurvada e trêmula.
— Bom dia, nhá Joaquina. Está seu Zé?
Não me reconheceu a velhinha. Zé fora à
vila, vender a sitioca para mudar de terra.
Fez-me entrar, logo que me dei a
conhecer, pedindo escusas da má vista.
— Tem coragem de estar aqui sozinha?
— Eu? Sozinha estou em toda parte. Morreu-me tudo, a filha, a neta… Sente-se —
murmurou apontando para o mocho de dois anos atrás.
Sentei-me, com um nó na garganta. Não
sabia o que dizer. Por fim:
— O que é a vida, nhá Joaquina! Parece
que foi ontem que estive aqui. Apesar das doenças, iam vivendo felizes. Hoje…
A velha limpou no canhão da manga uma
lágrima.
— Viver setenta e dois anos para acabar
assim… Felizmente a morte não tarda. Já a sinto cá dentro.
Confrangia-me o coração aquele ermo
onde tudo era passado — a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas —, salvo,
trêmulo espectro sobrevivente como a alma da tapera, a triste velhinha
encanecida, cujos olhos poucas lágrimas estilavam, tantas chorara.
— Que mais agora? — murmurou
pausadamente em voz de quem já não é deste mundo. — Até a “desgraça”, eu não
queria morrer.
Velha e inútil, inda gostava do mundo.
Morreu-me a filha, mas restava a neta — que era duas vezes filha e o meu
consolo.
Desencaminharam a pobrezinha… Agora,
que mais? Só peço a Deus que me retire, logo e logo.
Relanceei um olhar pela sala vazia. A
caixeta de costura inda estava sobre a arca no lugar de sempre. Meus olhos
pousaram ali, marasmados.
A velha adivinhou-me o pensamento e,
levantando-se, tomou-a nas mãos mal firmes. Abriu-a. Tirou de dentro a colcha
inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com tremuras na voz:
— Dezesseis anos — e não pude acabar a
colcha… Ninguém imagina o que é para mim esta prenda. Cada retalho tem sua
história e me lembra um vestidinho de Pingo d’Água. Aqui leio a vidinha dela
desde que nasceu. “Este, olhe, foi da primeira camiseta que vestiu… Tão
galantinha! Estou a vê-la no meu braço, tentando pegar os óculos com a mãozinha
gorda…
“Este azul, de listas, lembra um
vestido que a madrinha lhe deu aos três anos. Ela já andava pela casa inteira
armando reinações, perseguindo o Romão — que um dia, por sinal, lhe meteu as
unhas no rostinho. Chamava-me ‘óó aquina’…
“Este vermelho de rosinhas foi quando
completou os cinco anos. Estava com ele por ocasião do tombo na pedra do
córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, não reparou?
“Este cá, de xadrezinho, foi pelos sete
anos, e eu mesma o fiz, e o fiz de saia comprida e paletó de quartinho. Ficou
tão engraçada, feita uma mulherzinha!
“Pingo d’Água já sabia temperar um
virado, quando usou este aqui, de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto
porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mãos.
“Este cor de batata foi quando tinha
dez anos e caiu com sarampo, muito malzinha. Os dias e as noites que passei ao
pé dela, a contar histórias! Como gostava da Gata Borralheira!…”
A velha enxugou na colcha uma lágrima
perdida e calou-se.
— E este? — perguntei para avivá-la,
apontando um retalho amarelo.
Pausou um bocado a triste avó, em
contemplação.
Depois:
— Este é novo. Já tinha quinze anos
quando o vestiu pela primeira vez num mutirão do Labrego. Não gosto dele.
Parece que a “desgraça” começa aqui. Ficou um vestido muito assentadinho no
corpo, e galante, mas pelas minhas contas foi o culpado do Labreguinho
engraçar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava.
— Este — disse-lhe eu, fingindo
recordar-me — é o que ela vestia quando cá estive.
— Engano seu. Era, quer ver qual? Era
este de pintas vermelhas, repare bem.
— É verdade, é verdade! — menti. —
Agora me lembro, isso mesmo. E este último?
Após uma pausa dorida, a pobre criatura
oscilou a cabeça e balbuciou:
— Este é o da “desgraça”. Foi o
derradeiro que fiz. Com ele fugiu… e me matou.
Calou-se, a lacrimejar, trêmula.
Calei-me também, opresso dum infinito
apertão de alma.
Que quadro imensamente triste, aquele
fim de vida machucado pela mocidade louca!…
E ficamos ambos assim, imóveis, de
olhos presos à colcha.
Ela por fim quebrou o silêncio.
— Ia ser o meu presente de noivado.
Deus não quis. Será agora a minha mortalha. Já pedi que me enterrassem com ela.
E guardou-a dobradinha na caixa,
envolta num suspiro arrancado ao imo do coração.
Um mês depois morria. Vim a saber que
lhe não cumpriram a última vontade.
Que importa ao mundo a vontade última
duma pobre velhinha da roça?
Pieguices…
Monteiro Lobato, no
livro “Contos completos”. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.
Entendendo o conto:
01 – Quem é o protagonista
principal deste conto?
O protagonista
principal é um narrador não especificado que visita repetidamente a família de
José Alvorada, testemunhando a vida na roça ao longo do tempo.
02 – Como a paisagem é
descrita no conto?
A paisagem é
descrita como coberta por neblina em certas manhãs de março, dando uma sensação
de embrulho e cores desbotadas, obscurecendo os detalhes.
03 – Quais são as
características da vida dos Alvoradas?
Os Alvoradas são
uma família que passou por dificuldades na roça, enfrentando problemas
financeiros após perdas na colheita e isolamento do convívio da cidade.
04 – Qual é o elemento que a
velha Joaquina guarda e por que é significativo para ela?
Joaquina guarda
uma colcha de retalhos feita com pedaços dos vestidos de sua neta, Pingo
d'Água, ao longo dos anos. É significativa porque cada pedaço representa uma
fase da vida de Pingo.
05 – O que acontece com Pingo
d'Água ao longo da história?
Pingo d'Água, uma
menina tímida e reservada, é raptada por um rapaz da cidade, abandonando sua
família e o ambiente rural para uma vida na cidade como "moça".
06 – Por que a última parte da
colcha é descrita como o "vestido da desgraça"?
O último retalho
da colcha representa o vestido que Pingo d'Água usava quando fugiu com o rapaz
da cidade, sendo o símbolo da desventura que se abateu sobre a família.
07 – O que acontece com a
velha Joaquina no final do conto?
Joaquina morre,
pedindo para ser enterrada com a colcha de retalhos, mas seu último desejo não
é cumprido.
08 – Como a narrativa trata os
temas de perda, solidão e mudança ao longo do tempo?
A história explora a perda gradual da
família, da propriedade e da vida na roça, destacando a solidão e a mudança que
acompanham essas perdas ao longo do tempo.
09 – Qual é o significado
simbólico da colcha de retalhos na história?
A colcha simboliza a vida de Pingo
d'Água, mas também representa a história da família Alvorada, seus momentos
felizes e tristes, além de ser um testemunho das mudanças e tragédias que
enfrentaram.
10 – Qual é a mensagem central
transmitida pelo conto "A colcha de retalhos"?
A história
transmite a ideia de que a vida é feita de fragmentos, momentos que se unem
para formar uma narrativa, mas que podem ser marcados por tragédias
imprevistas, e que mesmo os objetos mais simples podem carregar histórias
profundamente significativas.
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