ENSAIO: Dor
Rubem Alves
GOSTO DA ADÉLIA PRADO por várias
razões. É poeta. Tem o jeitão mineiro. E é teóloga. Sempre que ela fala sobre
os mistérios do mundo sagrado eu me calo e medito. Quase sempre as palavras
dela iluminam as minhas dúvidas. Sugestão para algum estudante que esteja à
procura de tema para dissertação: "A Teologia da Adélia Prado"...
Mas hoje peço perdão. Discordo do que
ela escreveu. Estava falando sobre a coisa mais terrível que há no mundo, o
demônio, e foi isso, mais ou menos, o que ela escreveu. Digo "mais ou
menos" porque não sei de cor e não posso consultar os livros dela que
estão encaixotados, prontos para uma mudança, que julgo, será a última... Foi
isso que acho que ela disse: "O céu será igualzinho a essa vida, menos uma
coisa: o medo..." Tanta coisa boa! Não é preciso mais nada. O que está aí
chega. Precisa só tirar uma coisa, uma única coisa, e a Terra se transformará
no céu. Qual é o nome dessa coisa terrível? Ela responde: o medo.
Concordo. Mas acho que tem coisa pior,
que é a causa de todos os medos: a dor. Nunca tive medo de cálculo renal. A
despeito de nunca ter tido medo, ele veio, sem pedir licença e sem consultar se
eu tinha medo ou não. Foi assim que conheci pela primeira vez a dor do inferno.
Cessam todos os pensamentos. O corpo só deseja uma coisa: parar de sentir dor,
a qualquer preço.
Dor não tem jeito de explicar. Bernardo
Soares diz que tudo o que é sentimento é inexplicável. O artista, para
comunicar seus sentimentos inexplicáveis, se vale de um artifício: invoca um
sentimento "parecido".
De que comparação vou me valer para
explicar a dor a alguém que não a está sentindo? Só sabe o que é a dor aquele
que a está sentindo, no presente. Enquanto a dor está doendo, meu corpo -não
minha cabeça- sabe o que ela é. Passada a dor, ela fica na memória. Passa a
morar no passado. Mas isso que está na memória não é conhecimento da dor porque
o passado não dói. A memória da dor, por terrível que tenha sido, não me dá conhecimento
da dor, depois que ela se foi.
Minha memória mais antiga de dor me
leva de volta à roça onde vivi quando menino. Lembro-me, mas não sinto. Acho
até engraçado. Era dor de dente. A dor fazia ele inchar até ficar do tamanho do
universo- e eu, chorando, sem saber contar a minha dor, dizia que tinha inveja
das galinhas que não tinham dentes... Foi meu primeiro encontro.
Mais tarde ela voltou sem se anunciar.
Não a mesma. Cada dor é única. Chegou bruta, definitiva. Lutei usando as armas
que se compram nas farmácias. Inutilmente. Levaram-me (nesse ponto eu já não
era dono de mim mesmo; estava à mercê dos outros) então para o hospital. As
injeções são mais potentes que os comprimidos. Aplicaram-me seis Buscopan. A
dor não tomou conhecimento. Ficou mais forte. Comecei a vomitar. O médico,
reconhecendo a derrota dos recursos penúltimos, dirigiu-se à enfermeira e disse
o nome do último, nenhum mais forte: "Aplica uma Dolantina nele..."
Ela aplicou. Passados cinco minutos,
senti a mais deliciosa sensação que tive em toda minha vida. Não era sensação
de nada. Que me importava música, sexo ou flores? Era simplesmente a sensação
de não ter dor. Pensei se essa euforia não deveria ser o estado normal da alma,
sempre que o corpo não estivesse sentindo dor... Rindo e feliz, brinquei que o
Paraíso morava dentro de uma ampola de Dolantina...
Rubem Alves. Folha de
S. Paulo, 27.07.2010. Adaptado.
Entendendo o texto:
01 – Qual é o ponto de
discordância do autor em relação ao que Adélia Prado escreveu sobre o céu?
O autor discorda
de Adélia Prado quando ela diz que o céu será igual à vida na Terra, exceto
pelo fato de que não haverá medo. Ele acredita que há algo pior do que o medo,
que é a dor.
02 – Qual elemento o autor
considera pior do que o medo, que é a causa de todos os medos?
O autor acredita que a dor é pior do que
o medo, pois a dor é a causa de todos os medos.
03 – Como o autor descreve a
experiência da dor que teve devido a um cálculo renal?
O autor descreve
a dor do cálculo renal como uma experiência extrema e avassaladora que fez com
que ele desejasse desesperadamente que a dor parasse a qualquer custo.
04 – De acordo com o autor,
por que a dor é difícil de explicar?
O autor afirma
que a dor é difícil de explicar porque é um sentimento que só pode ser
verdadeiramente compreendido por quem a está sentindo no presente. A memória da
dor, uma vez que passou, não proporciona um conhecimento verdadeiro da dor.
05 – O autor compartilha uma
memória pessoal de dor na roça quando era menino. O que causou essa dor?
A dor que o autor
compartilha de sua infância foi causada por uma dor de dente, que o fez chorar
e desejar não ter dentes, como as galinhas.
06 – Como a dor foi tratada
quando o autor teve uma dor mais intensa e bruta?
Quando o autor
teve uma dor intensa e bruta, ele foi levado ao hospital, onde foram
administradas seis injeções de Buscopan. No entanto, a dor não cedeu, e o
médico prescreveu uma injeção de Dolantina, que finalmente aliviou a dor.
07 – Como o autor descreve a
sensação após a injeção de Dolantina?
O autor descreve a sensação após a
injeção de Dolantina como a mais deliciosa que já sentiu em toda a sua vida.
Era a sensação de não ter dor, e ele refletiu sobre como essa sensação de
ausência de dor poderia ser o estado normal da alma sempre que o corpo não
estivesse sentindo dor.
08 – Por que o texto é
considerado um ensaio?
O texto "Dor" de Rubem Alves
é um gênero textual que se enquadra como um ensaio ou um texto de reflexão
pessoal. Ele discute a experiência da dor e seus aspectos emocionais e físicos,
além de fazer uma referência à escrita de Adélia Prado, trazendo um ponto de
vista pessoal do autor sobre o tema da dor. Não é um texto literário, como um
conto ou poema, nem um texto informativo, mas sim uma exploração de ideias e
emoções em torno do tema central da dor.
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