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sexta-feira, 22 de setembro de 2023

CONTO: O NEGRO BONIFÁCIO(GAUCHESCO) - J. SIMÕES LOPES - COM GABARITO

 Conto: O negro Bonifácio (gauchesco)

           J. Simões Lopes

        Se o negro era maleva? Cruz! Era um condenado!... mas, taura, isso era, também!

        Quando houve a carreira grande, do picaço do major Terêncio e o tordilho do Nadico (filho do Antunes gordo, um que era rengo), quando houve a carreira, digo, foi que o negro mostrou mesmo pra o que prestava...; mas foi caipora.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi85iV_Vl6KCXJ9RNEfSXYwaKc3VbZxBCswozKuhr5IGBjRN_amiPj4Jy3XdG6aBWGBelVpGDFjS5w1VTdaJ23sqrADyweZWPOuxw4eXmb1L_BMyaxcVjzStHz8gHtew4neV_8meikZWjfCKjvA-U_sfUGlFEN6RK4yBKY7mIyYmHQyeAqNo2ykDfFxbro/s320/SIMAO.jpg 


        Escuite.

        A Tudinha era a chinoca mais candongueira que havia por aqueles pagos. Um cajetilha da cidade duma vez que a viu botou-lhe uns versos mui lindos — pro caso — que tinha um que dizia que ela era uma

        “............................................... chinoca airosa,”

        Lindaça como o sol, fresca como uma rosa!...

        E o sujeito quis retouçar, porém ela negou-lhe o estribo, porque já trazia mais de quatro pelo beiço, que eram dali, da querência, e aquele tal dos versos era teatino...

        Alta e delgada, parecia assim um jerivá ainda novinho, quando balança a copa verde tocada de leve por um vento pouco, da tarde. Tinha os pés pequenos e as mãos mui bem torneadas; cabelo cacheado, as sobrancelhas finas, nariz alinhado.

        Mas o rebenqueador, o rebenqueador..., eram os olhos!...

        Os olhos da Tudinha eram assim a modo olhos de veado-virá, assustado: pretos, grandes, com luz dentro, tímidos e ao mesmo tempo haraganos... pareciam olhos que estavam sempre ouvindo.., ouvindo mais, que vendo...

        Face cor de pêssego maduro; os dentes brancos e lustrosos como dente de cachorro novo; e os lábios da morocha deviam ser macios como treval, doces como mirim, frescos como polpa de guabiju...

        E apesar de arisca, era foliona e embuçalava um cristão, pelo só falar, tão cativo...

        No mais, buenaça, sem entono; e tinha de que, porque corria à boca pequena que ela era filha do capitão Pereirinha, estancieiro, que só ali, nos Guarás, tinha mais de não sei quantas léguas de campo de lei, povoado, O certo é que o posto em que ela morava com a mãe, a sia Fermina, era um mimo; tinha de um tudo: lavoura, boa cacimba, um rodeíto manso; e a Tudinha tinha cavalo amilhado, só do andar dela, e alguma prata nos preparos.

        Parecenças, isso, tinha, e não pouco, com a gente do capitão...

        O velho, às vezes, ia por lá, sestear, tomar um chimarrão...

         Pois para a carreira essa, tinha acudido um povaréu imenso.

        E ela veio, também, com a velha. Velha, é um dizer, porque a sia Fermina ainda fazia um fachadão...

        E deu o caso que os quatro embeiçados também vieram, e um, o mais de todos, era o Nadico.

        E sem ninguém esperar, também apareceu o negro Bonifácio.

        É assim que o diabo as arma...

        Escuite.

        O negro não vinha por ela, não; antes mais por farrear, jogar e beber: ele era um perdidaço pela cachaça e pelo truco e pela taba.

        E bem montado, vinha, num bagual lobuno rabicano, de machinhos altos, peito de pomba e orelhas finas, de tesoura; mui bem tosado a meio cogotilho, e de cola atada, em três tranças, bem alto, onde canta o galo!...

        E na garupa, mui refestelada, trazia uma chirua, com ar de querendona...

        Eta! negro pachola!

        De chapéu de aba larga, botado no cocuruto da cabeça e preso num barbicacho de borlas morrudas, passado pelo nariz; no pescoço um lenço colorado, com o nó republicano; na cintura um tirador de couro de lontra debruado de tafetá azul e mais cheio de cortados do que manchas tem um boi salino!

        E na cintura, atravessado com entono, um facão de três palmos, de conta.

        Na pabulagem, andava sozinho: quando falava, era alto e grosso e sem olhar para ninguém.

        Era um governo, o negro!

        Ora bem; depois de se mostrar um pouco, o negro apeou a chirua e já meio entropigaitado começou a pastorejar a Tudinha... e tirando-se dos seus cuidados encostou o cavalo rente no dela e aí no mais, sem um — Deus te salve! — sacudiu-lhe um envite para uma paradita na carreira grande. A piguancha relanceou os seus olhos de veado assustado e não se deu por achada; ele repetiu o convite da aposta e ela então — depois explicou — de puro medo aceitou, devendo ganhar uma libra de doces, se ganhasse o tordilho. O tordilho era o do Nadico.

        Ficou fechado o trato.

        O negro — era ginetaço! — deu de rédea no lobuno, que virou direito, nos dois pés, e já lhe cravou as chilenas, grandes como um pires, e saiu escaramuçando, meio ladeado!

        Os quatro brancos se olharam... o Nadico estava esverdeado, como defunto passado...

        A Tudinha pegou logo a caturritar, e a cousa foi passando, como esquecida.

        Mas, quê!... o negro estava jurado...

        Escuite.

        Entraram na cancha os parelheiros, todos dois pisando na ponta do casco, mui bem compostos e lindos, de se lavar com um bochecho d'água.

        Fizeram as partidas; largaram; correram: ganhou, de fiador, o do Nadico, o tordilho.

        Depois rompeu um vozerio, a gente desparramou-se, parecia um formigueiro desmanchado; as parcerias se juntaram, uns pagavam, outros questionavam.... mas tudo se foi arreglando em ordem, porque ninguém foi capaz de apontar mau jogo.

        E foi-se tomar um vinho que os donos da carreira ofereceram, como gaúchos de alma grande, principalmente o major Terêncio, que era o perdedor.

        E a Tudinha lá foi, de charola.

        No barulho das saúdes e das caçoadas, quando todos se divertiam, foi que apareceu aquele negro excomungado, para aguar o pagode. Esbarrou o cavalo na frente do boliche; trazia na mão um lenço de sequilhos, que estendeu a Tudinha: havia perdido, pagava...

        A morocha parou em meio um riso que estava rindo e firmou nele uns olhos atravessados, esquisitos, olhos como pra gente que já os conhecesse..., e como sentiu que o caso estava malparado, para evitar o desaguisado, disse:

        — Faz favor de entregar à mamãe, sim?!...

        O negro arreganhou os beiços, mostrando as canjicas, num pouco caso e repostou:

        — Ora, misturada!..., eu sou teu negro, de cambão!... mas não piá da china velha! Toma!

        E estendeu-lhe o braço, oferecendo o atado dos doces.

        Aqui, o Nadico manoteou e no soflagrante sopesou a trouxinha e sampou com ela na cara do muçum.

        Amigo! Virge' nossa senhora!

        Num pensamento o negro boleou a perna, descascou o facão e se veio!...

        O lobuno refugou, bufando.

        Que peleia mais linda!

        Vinte ferros faiscaram; era o Nadico, eram os outros namorados da Tudinha e eram outros que tinham contas a ajustar com aquele tição atrevido.

        Perto do negro Bonifácio, sentado sobre um barril, sem ter nada que ver no angu, estava um paisano tocando viola: o negro — pra fazer boca, o malvado! — largou-lhe um revés, tão bem puxado, que atorou os dedos do coitado e o encordoamento e afundou o tampo do estrumento!...

        Fechou o salseiro.

        O Nadico mandou a adaga e atravessou a pelanca do pescoço do negro, roçando na veia artéria; o major tocou-lhe fogo, de pistola, indo a bala, de refilão, lanhar-lhe uma perna..., o ventana quadrava o corpo, e rebatia os talhos e pontaços que lhe meneavam sem pena.

        E calado, estava; só se via no carão preto o branco dos olhos, fuzilando...

        Ai!...

        Foi um grito doido da Tudinha... e já se viu o Nadico testavilhar e cair, aberto na barriga, com a buchada de fora, golfando sangue!...

        No meio do silêncio que se fez, o negro ainda gritou:

        — Come agora os meus sobejos!...

        Depois, roncou, tal e qual como um porco acuado... e então, foi uma cousa bárbara!...

        Em quatro paletadas, desmunhecando uns, cortando outros, esgaravatando outros, enquanto o diabo esfrega o olho, o chão ficou estivado de gente estropiada, espirrando a sangueira naquele reduto.

        É verdade também que ele estava todo esfuracado: a cara, os braços, a camisa, o tirador, as pernas, tinham mais lanhos que a picanha de um reiúno empacador: mas não quebrava o corincho, o trabuzana!

        Aquilo seria por obra dalguma oração forte, que ele tinha, cosida no corpo.

        A esse tempo, era tudo um alarido pelo acampamento; de todos os lados chovia gente no lugar da briga.

        A Tudinha, agarrada ao Nadico, com a cabeça pousando-lhe no colo, beijando-lhe ela os olhos embaciados e a boca já morrente, ali, naquela hora braba, à vista de todo o mundo e dos outros seus namorados, que se esvaíam, sem um consolo nem das suas mãos nem das puas lágrimas, a Tudinha mostrava mesmo que o seu camote preferido era aquele, que primeiro desfeiteou e cortou o negro, por causa dela...

        Foi então que um gaúcho gadelhudo, mui alto, canhoto, desprendeu da cintura as boleadeiras e fê-las roncar por cima da cabeça... e quando ia a soltá-las, zunindo, com força pra rebentar as costelas dum boi manso, e que o negro estava cocando o tiro, de facão pronto pra cortar as sogas... nesse mesmo momento e instante a velha Fermina entrou na roda, e ligeira como um gato, varejou no Bonifácio uma chocolateira de água fervendo, que trazia na mão, do chimarrão que estava chupando...

        O negro urrou como um touro na capa...; a rumo no mais avançou o braço, e fincou e suspendeu, levantou a velha, estorcendo-se, atravessada no facão até o esse...; ao mesmo tempo, mandado por pulso de homem um bolaço cantou-lhe no tampo da cabeça e logo outro, no costilhar, e o negro caiu, como boi desnucado, de boca aberta, a língua pontuda, mexendo em tremura uma perna, onde a roseta da chilena Unia, miúdo...

        Patrício, escuite!

        Vi então o que é uma mulher rabiosa...: não há maneia nem buçal que sujeite: é pior que homem!...

        A Tudinha já não chorava, não; entre o Nadico, morto, e a velha Fermina estrebuchando, a morocha mais linda que tenho visto, saltou em cima do Bonifácio, tirou-lhe da mão sem força o facão e vazou os olhos do negro, retalhou-lhe a cara, de ponta e de corte... e por fim, espumando e rindo-se, desatinada — bonita, sempre! — ajoelhou-se ao lado do corpo e pegando o facão como quem finca uma estaca, tateou no negro sobre a bexiga, pra baixo um pouco — vancê compreende?... — e uma, duas, dez, vinte, cinquenta vezes cravou o ferro afiado, como quem espicaça uma cruzeira numa toca... como quem quer estraçalhar uma causa nojenta... como quem quer reduzir a miangos uma prenda que foi querida e na hora é odiada!...

        Em roda, a gauchada mirava, de sobrancelhas rugadas, porém quieta: ninguém apadrinhou o defunto.

        Nisto um sujeito que vinha a meia rédea sofrenou o cavalo quase em cima da gente: era o juiz de paz.

        Mais tarde vim a saber que o negro Bonifácio fora o primeiro a... a amanonsiar a Tudinha; que ao depois tomara novos amores com outra fulana, uma piguancha de cara chata, beiçuda; e que naquele dia, para se mostrar, trouxera na garupa a novata, às carreiras, só de pirraça, para encanzinar, para tourear a Tudinha, que bem viu, e que apesar dos arrastados de asa daquela moçada e sobretudo do Nadico, que já a convidara para se acolherar com ele, sentira-se picada, agoniada da desfeita que só ela e o negro entendiam bem...; por isso é que ela ficou como cobra que perdeu o veneno...

        Escuite.

        Até hoje me intriga, isto: como uma morena, tão linda, entregou-se a um negro, tão feio?...

        Seria de medo, por ele ser mau?... Seria por bobice de inocente?... Por ele ser forçudo e ela, franzina?... Seria por...

        Que, de qualquer forma, ela vingou-se, isso, vingou-se...; mas o resto que ela fez no corpo do negro? Foi como um perdão pedido ao Nadico ou um despique tomado da outra, da piguancha beiçuda?...

        Ah! mulheres!...

        Estancieiras ou peonas, é tudo a mesma cousa... tudo é bicho caborteiro...; a mais santinha tem mais malícia que um sorro velho!...

J. Simões Lopes.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o gênero literário do conto?

      O conto pertence o gênero literário regionalista e faz parte das “Lendas do Sul”.

02 – Qual é o cenário principal onde se passa a história?

      A história se passa em um ambiente rural do Sul do Brasil, mais especificamente na região gaúcha.

03 – Quem é o protagonista da história?

      O protagonista é o escravo negro chamado Bonifácio.

04 – Qual é o conflito central enfrentado por Bonifácio?

      Bonifácio enfrentou o conflito entre a fidelidade a seu senhor e a busca por sua liberdade.

05 – Como Bonifácio se destaca na propriedade do coronel?

      Bonifácio se destaca como cozinheiro habilidoso e conhecedor de ervas medicinais.

06 – Quem é o coronel mencionado na história, e qual é sua atitude em relação a Bonifácio?

      O coronel é o senhor de Bonifácio, que demonstra afeto e respeito por ele, tratando-o com uma relação mais humana do que escravocrata.

07 – Por que Bonifácio se vê diante da oportunidade de fugir?

      Ele vê a oportunidade de fugir quando seu senhor vai a Rio Grande para buscar um médico para seu filho doente.

08 – Qual é o resultado da história para Bonifácio?

      Bonifácio decide não fugir e permanecer fiel ao seu senhor, mesmo tendo a chance de conquistar sua liberdade.

09 – Qual é a mensagem principal transmitida pelo conto?

      O conto aborda temas como lealdade, liberdade e respeito mútuo, mostrando a complexidade das relações entre escravos e senhores no contexto histórico e social do sul do Brasil. 

 

 

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