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quarta-feira, 3 de agosto de 2022

CONTO: O PERFUME - MIA COUTO - COM GABARITO

 Conto: O perfume

             Mia Couto

        – Hoje vamos ao baile!

        Justino assim se anunciou, estendendo em suas mãos um embrulho cor de presente. Glória, sua esposa, nem soube receber. Foi ele quem desatou os nós e fez despontar do papel colorido o vestido não menos colorido. A mulher, subvivente, somava tanta espera que já esquecera o que esperava. Justino guardava ferrovias, seu tempo se amalgava, fumo dos fumos, ponteiro encravado em seu coração. Entre marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal, que utilidade tem?

        De onde o espanto de Glória, deixando esparramejar o vestido sobre seu colo. Que esperava ela, por que não se arranjava? O marido, parecia ter ensaiado brincadeira. Que lhe acontecera? O homem sempre dela se ciumara, quase ela nem podia assomar à janela, quanto mais. Glória se levantou, ela e o vestido se arrastaram mutuamente para o quarto. Incrédula e sonambulenta, arrastou o pente pelo cabelo. Em vão. O desleixo se antecipara fazendo definitivas tranças. Lembrou as palavras de sua mãe: mulher preta livre é a que sabe o que fazer com o seu próprio cabelo. Mas eu, mãe: primeiro, sou mulata. Segundo, nunca soube o que é isso de liberdade. E riu-se: livre: Era palavra que parecia de outra língua. Só de a soletrar sentia vergonha, o mesmo embaraço que experimentava em vestir a roupa que o marido lhe trouxera. Abriu a gaveta, venceu a emperrada madeira. E segurou o frasco de perfume, antigo, ainda embalado. Estava leve, o líquido havia evaporado. Justino lhe havia dado o frasco, em inauguração do namoro, ainda ela meninava. Em toda a vida, aquele fora o único presente. Só agora se somava o vestido. Espremeu o vidro do cheiro, a ordenhar as últimas gotas. Perfumei o quê com isto, se perguntou lançando o frasco no vazio da janela.

        – Nem sei o gosto de um cheiro.

        Escutou o velho vidro se estilhaçar no passeio. Voltou à sala, vestido se desencontrando com o corpo. As bainhas do pano namoriscavam os sapatos. Temia o comentário do marido sempre lhe apontando ousadias. Desta vez, porém, ele lhe olhou de modo estranho, sem parecer crer. Puxou-a para si e lhe ajeitou as formas, arrebitando o pano, avespando-lhe a cintura. Depois, perguntou:

        – Então não passa um arranjo no rosto?

        – Um arranjo?

        – Sim, uma cor, uma tinta.

        Ela se assombrou. Virou as costas e entrou na casa de banho, embasbocada. Que doença súbita dera nele? Onde diabo parava esse bâton, havia anos que poeirava naquela prateleira? Encontrou-o, minúsculo, gasto nas brincadeiras dos miúdos. Passou o lápis sobre os lábios. Leve, uma penumbra de cor. Carregue mais, faça valer os vermelhos. Era o marido, no espelho. Ela ergueu o rosto, desconhecida.

        – Vamos ao baile, sim. Você não costumava dançar, antes?

        – E os meninos?

        – Já organizei com o vizinho, não se preocupa.

        E foram. Justino ainda teve que tchovar a carrinha. Ela, como sempre, desceu para ajudar. Mas o marido recusou. Desta vez, não. Ele sozinho empurrava, onde é que se vira?

        Chegaram. Glória parecia não dar conta da realidade. Se deixou no assento da velha carrinha. Justino cavalheirou, mão pronta, gesto preso abrindo portas. O baile estava concorrido, cheio pelas costuras. A música transpirava pelo salão, em tonturas de casais. Os dois se sentaram numa mesa. Os olhos de Glória não exerciam. Apenas sombreavam pela mesa, pré-colegiais.

        Então, se aproximou um homem, em boa postura, pedindo ao guarda-freio lhe desse licença de sua esposa para um passo respeitoso. Os olhos aterrados dela esperaram cair a tempestade. Mas não. Justino contemplou o moço e lhe fez amplo sinal de anuência. A esposa arguiu:

        – Mas eu preferia dançar primeiro com meu marido.

        – Você sabe que eu nunca danço…

        E como ela ainda hesitasse ele lhe ordenou quase em sigilo de ternura: Vá, Glorinha, se divirta!

        E ela foi, vagarosa, espantalhada. Enquanto rodava ela fixava o seu homem sentado na mesa. Olhou fundo os seus olhos e viu neles um abandono sem nome, como esse vapor que restara de seu perfume. Então, entendeu: o marido estava a oferecê-la ao mundo. O baile, aquele convite, eram uma despedida. Seu peito confirmou a suspeita quando viu o marido se levantar e aprontar a saída. Ela interrompeu a dança e correu para Justino.

        – Onde vai, marido?

        – Um amigo me chamou, lá fora. Já volto.

        – Vou consigo, Justino.

        – Aquilo lá fora não é lugar das mulheres. Fique, dance com o moço. Eu já venho.

        Glória não voltou à dança. Sentada na reservada mesa, levantou o copo do marido e nele deixou a marca de seu bâton. E ficou a ver Justino se afastando entre a fumarada do salão, tudo se comportando longe. Vezes sem conta ela vira esse afastamento, o marido anonimado entre as neblinas dos comboios. Desta vez, porém, seu peito se agitou, em balanço de soluço. No limiar da porta, Justino ainda virou o rosto e demorou nela um último olhar. Com surpresa, ele viu a inédita lágrima, cintilando na face que ela ocultava. A lágrima é água e só a água lava tristeza. Justino sentiu o tropeço no peito, cinza virando brasa em seu coração. E fechou a noite, a porta decepando aquela breve desordem. Glória colheu a lágrima com dobra do próprio vestido. De quem, dentro dela mesma, ela se despedia?

        Saiu do baile, foi de encontro às trevas. Ainda procurou a velha carrinha. Ansiou que ela anda ali estivesse, necessitada de empurro. Mas de Justino não restava vestígio. Voltou a casa, sob o crepitar dos grilos. A meio do carreiro se descalçou e seus pés receberam a carícia da areia quente. Olhou o estrelejo nos céus. As estrelas são os olhos de quem morreu de amor. Ficam nos contemplando de cima, a mostrar que só o amor concede eternidades.

        Chegou a casa, cansada a ponto de nem sentir cansaços. Por instantes, pensou encontrar sinais de Justino. Mas o marido, se passara por ali, levara seu rastro. A Glória não lhe apeteceu a casa, magoava-lhe o lar como retrato de ente falecido. Adormeceu nos degraus da escada.

        Acordou nas primeiras horas da manhã, tonteando entre sono e sonho. Porque, dentro dela, em olfatos só da alma, ela sentiu o perfume. Seria o quê? Eflúvios do velho frasco? Não, só podia ser um novo presente, dádiva da paixão que regressava.

        – Justino?!

        Em sobressalto, correu para dentro da casa. Foi quando pisou os vidros, estilhaçados no sopé de sua janela. Ainda hoje restam, indeléveis pegadas de quando Glória estreou o sangue de sua felicidade.

COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 31-35.

      Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição – São Paulo, 2016 – Moderna – p. 17-19.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Ramerrames: (palavra onomatopaica) rotinas, repetições fastidiosas;

·        Assomar: aparecer, surgir;

·        Passeio: calçada;

·        Casa de banho: banheiro;

·        Miúdos: crianças;

·        Tchovar: empurrar;

·        Carrinha: carro utilitário (caminhonete, perua);

·        Presto: rápido;

·        Guarda-freio: funcionário da estrada de ferro que checa e manobra os freios do trem;

·        Anuência: aprovação;

·        Arguiu: retrucou;

·        Comboios: vagões, trem;

·        Apeteceu: agradou;

·        Eflúvios: aromas;

·        Indeléveis: que não podem ser apagados.

02 – O que chamou sua atenção na linguagem utilizada por Mia Couto?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A mistura da linguagem neologismos e coloquialismos, desconstrói ditos populares, etc.

03 – O conto compõe a coletânea intitulada Estórias abensonhadas. Alguns escritores diferenciam estória (narrativa ficcional) de história (narrativa não ficcional). Relacione essa diferença ao neologismo abensonhada e explique o título dessa coletânea de Mia Couto.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O título sugere que a obra composta de contos ficcionais, inventadas (estórias); o adjetivo abensonhadas é uma fusão das palavras abensonhadas e sonhadas.

04 – Ainda que o narrador não tenha caracterizado os personagens diretamente, podemos inferir informações sobre o perfil psicológico deles. Descreva Justino e Glória com base nas informações do texto e em seu conhecimento de mundo.

      Justino trabalha na ferrovia como guarda-freio e mantém com Glória um casamento marcado pelo tédio, pelo cansaço e pelo desânimo. Ele tem ciúme da esposa e a impede de ser livre, acusando-a de ousada. Glória é uma mulher sofrida que leva uma vida difícil, sem liberdade e sem sonhos, como o esposo. Vítima do imenso ciúme de Justino, parece ter perdido a vaidade: veste-se de maneira discreta, não usa maquiagens ou perfumes e não se relaciona com outros homens.

05 – No segundo parágrafo, o narrador dá informações importantes para o desenrolar do texto.

a)   Que ditado popular é citado pelo narrador?

O dito popular “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.

b)   Esse ditado mantém o sentido em que é usualmente empregado? Explique.

Não. Esse dito popular aparecerá no conto com outro sentido: “Entre marido e mulher o tempo metera a colher”. O tempo, e não um terceiro, será responsável pelo “ranço”, pelo “cansaço”, pelos “desnamoros”, pelos “ramerrames” que caracterizam a relação entre Justino e Glória.

c)   A progressão textual é um processo pelo qual o texto é construído com o acréscimo de novos dados ligados àqueles que já haviam sido introduzidos. Explique como se dá a progressão textual no conto citando os elementos que comprovam o dito popular mencionado no segundo parágrafo pelo narrador.

O dito popular, ressignificado no conto como “Entre marido e mulher o tempo metera a colher”, será retomado de diferentes formas ao longo do texto e contribuirá para sua progressão. O tempo, “roubador de espantos”, provocará o afastamento gradual de Justino e Glória e “resfriará” o casamento deles. Além disso, fará com que Glória não saiba mais receber um presente do marido e será responsável também pelas “definitivas tranças” no cabelo de Glória, emperrará a madeira da gaveta, símbolo do esquecimento do perfume, evaporará o perfume “antigo”, produzirá “miúdos” que gastarão o batom em brincadeiras, transformará Glorinha em Glória e mudará o olhar de Justino.

06 – O perfume é peça importante para a construção do sentido do texto.

a)   Relacione as ações de Glória aos momentos em que ele é citado.

O perfume é citado no texto em quatro momentos: quando abre a gaveta e percebe que o líquido evaporou; quando ela quebra o vidro; quando, após o baile, a personagem acorda, entre “sono e sonho”, e sente o cheiro do perfume; e, quando fere os pés com o vidro estilhaçado.

b)   Que sentido metafórico o perfume tem em cada uma das passagens?

Na primeira passagem, a evaporação do perfume sugere que o amor de Glória também já se dissipou em um relacionamento desgastado pelo tempo. Na segunda, a personagem mostra-se irada com a percepção de que seu casamento nem sequer garantiu a ela “o gosto de um cheiro”. Na terceira passagem, a mulher já sabe que não mais terá o marido e percebe que seu amor por ele voltou em virtude de sua mudança de comportamento. Na quarta, quando Glória pisa nos cacos de vidro e corre para dentro, imprime as pegadas ensanguentadas no assoalho, que permanecem ali até o presente, como que marcando a estreia de uma nova vida.

c)   Explique como é possível Glória sentir o cheiro do perfume mesmo depois de evaporado seu líquido e estilhaçado seu frasco.

O perfume é, ao mesmo tempo, símbolo de amor / desamor / retomada do amor. A busca do perfume e a descoberta de sua evaporação sugerem a atual falta de cuidado que um dia, ainda que de maneira tímida, Justino teve com Glória. Entretanto, a generosidade mostrada pelo marido no episódio do baile – que abrange o vestido dado de presente, a maquiagem exigida, a licença para a esposa dançar com um homem de “boa postura” – faz Glória retomar seu amor perdido, o que justifica que ela sinta metaforicamente o agradável cheiro do perfume que Justino lhe deu de presente no início do namoro deles. Esse cheiro simboliza a “paixão que regressava” ao coração de Glória.

 

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