Notícia: A pé com Lao-tsé
Sérgio Branco
A frase é usada para demonstrar que
grandes conquistas partem de uma primeira ação, às vezes banal. O criador é um
filósofo chinês, o genial Lao-tsé: “Uma longa caminhada começa com o primeiro
passo”. O ensinamento do sábio, que muitos historiadores definem como o criador
do taoismo, deve servir de pauta para todos os viajantes. A caminhada pode ser
entendida também como descoberta. E ainda não inventaram jeito melhor de
descobrir um lugar do que passeando a pé por ele.
Qualquer cidade em qualquer país será
desvendada por aqueles que derem o primeiro passo. Perder-se por avenidas,
ruas, vielas, bulevares, escadarias e becos e flertar com a novidade. Um
detalhe, uma lasca do imprevisível. Algo surge e pode marcar a viagem para
sempre.
Lembro Barcelona, 1993. Saído do
mercado La Boquería, perdia-me sem destino por uma rua do Bairro Gótico quando,
na direção contrária, uma turba gritava palavras de ordem. Era uma manifestação
do Partido Comunista Catalão. Havia duas alternativas: ser levado pela multidão
que empunhava bandeiras vermelhas ou quebrar à esquerda em uma viela, tão
estreita que nem carro cabia. Entrei na viela.
Como era hora do almoço, a fome dava
sinais. Caminhei por cerca de 50 metros e notei uma pequena placa: Can
Culleretes. Um restaurante discreto, apenas uma porta de madeira, antiquíssima.
Na parede lateral, uma pequena caixa de madeira com vidro protegia um recorte amarelado
do El País. Li e me surpreendi. Entre outras coisas, o artigo informava
que o Can Culleretes era um bastião da comida catalã. E mais antigo que ele,
somente o Sobrino de Botín, aquele famoso de Madri, tido como o mais velho da
Europa (talvez do mundo) em atividade.
Claro que entrei. Ao cruzar a porta,
mais surpresa: um salão enorme, cheio de gente. Ninguém com cara de turista.
Uma senhorinha simpática, de avental típico, indicou uma mesa. Sentado, à
espera do cardápio, notei pinturas clássicas e modernas, antigos azulejos
decorativos, desenhos enquadrados em molduras de madeira, esboços artísticos,
rabiscados na própria parede, fotos e mais fotos também emolduradas. Parecia
coisa de gente importante ou famosa.
Escolhi um prato catalão com frutos do
mar e, enquanto esperava, tirei da mochila meus dois ótimos guias de Barcelona
e vasculhei em busca do Can Culleretes. Nada. Nenhuma menção. Era uma
descoberta, pensei.
Comida maravilhosa, preço excelente
(ainda em pesetas) e atendimento carinhoso, mesmo para um turista enxerido num
ambiente reservado a catalães.
Jamais teria acontecido se não fizesse
aquele passeio a pé, sem destino, pressionado pela massa comunista da cidade —
detalhe que fez a diferença, mas que só ocorre quando você é guiado pelo
imponderável.
Espalhei minha descoberta a todos que
pude. Escrevi até artigo em jornal, ainda em 1993. Vivi o prazer de contar o
que ninguém sabia.
Voltei a Barcelona outras vezes. A mais
recente foi no último réveillon. Em todas, fui comer no Can Culleretes,
com 226 anos de história completados em 2012. Continua na mesma viela, pertinho
do La Boquería. Ainda não é fácil encontrá-lo em guias, mas hoje está na
internet (culleretes.com).
Lição
aprendida, mantenho minha busca por lugares inusitados em rondas a pé pelas
cidades que visito. Nem sempre encontro algo valioso, mas a sensação da procura
sem compromisso já me contenta. Viagens são lembradas por fatos assim. Nunca
esquecemos nossas descobertas. E poder dividi-las é uma satisfação imensa.
BRANCO, Sérgio. Viaje Mais.
133. ed. São Paulo: Europa, jun. 2012.
Fonte: Livro – Viva
Português 1° – Ensino médio – Língua portuguesa – 2ª edição 1ª impressão – São
Paulo – 2014. p. 188-190.
Entendendo a notícia:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Turba: multidão.
·
Bastião: sustentáculo, apoio, alicerce que contribui para a
subsistência de algo.
·
Enxerido: intrometido.
·
Imponderável: aquilo que não pode ser previsto.
·
Inusitado: incomum.
02 – Atente à estrutura do
texto:
1° e
2° parágrafos — Introdução. Citação de uma frase de Lao-tsé,
filósofo chinês, que serve de ponto de partida para a produção do relato.
3° ao
7° parágrafo — Relato de uma descoberta feita pelo redator
quando passeava por Barcelona.
8° ao
11° parágrafo — Retomada da reflexão que introduz o texto.
Conclusão do relato com a explicitação de uma lição aprendida.
Todas as partes que preenchem essa estrutura foram organizadas em torno de uma informação principal. O autor escolhe um ponto de partida e o transforma no fio condutor do texto, o que garante a coerência do relato: a citação de Lao-tsé, “Uma longa caminhada começa com o primeiro passo”.
a) A citação de Lao-tsé pode ser compreendida no sentido figurado. Considerando isso, explique um dos sentidos possíveis para as expressões “longa caminhada” e “primeiro passo”.
“Longa caminhada” pode ter interpretada como qualquer desafio cujo
objetivo deve demorar a ser alcançado. “Primeiro passo” pode ser a realização
da primeira etapa para se alcançar esse objetivo.
b) O sentido que o autor utiliza em seu texto, contudo, é diferente dessa interpretação mais figurada. Explicite que sentido é esse.
O autor explorou o sentido literal da frase, em que “longa
caminhada” e “primeiro passo” são usados, de fato, em relação a um percurso a
pé.
c) Por que o autor emprega esse outro sentido da frase de Lao-tsé em seu texto? Que tipo de exploração ele fez da frase para desenvolver seu relato?
O autor do relato desenvolve o texto a partir do sentido literal da
frase como forma de destacar a importância dos passeios a pé para se descobrir
lugares inusitados, nunca antes explorados ou valorizados por outros viajantes.
03 – Por que o restaurante
encontrado por Sérgio Branco em uma das vielas de Barcelona teve um caráter de
descoberta para ele?
Porque se tratava
de um restaurante bastante antigo, cuja comida era maravilhosa e não muito
cara; além disso, o ambiente não parecia ser frequentado por turistas e o
atendimento era carinhoso.
04 – A que o autor do texto
atribuiu essa descoberta?
À sua decisão de
circular a pé pela cidade, andando ao acaso.
05 – O texto deixa claro
quais são os objetivos que o autor tem como viajante. Esses objetivos
correspondem aos de Maria Fernanda Vomero em seu texto “O que a guerra me
ensinou”? Explique de que forma cada um dos relatos revela algumas das
motivações desses viajantes.
Os objetivos não
são os mesmos. Sérgio Branco é motivado pela descoberta ao acaso, pelo desejo
de divulgar um lugar desconhecido e confortável que possa ser apreciado por
pessoas. Maria Fernanda Vomero revela em seu texto a preocupação humanitária e
o interesse por locais em que se vive em situações de conflito; ela é movida
pelo desejo de conhecimento dos dramas humanos mais do que de conhecimento das
paisagens.
Nenhum comentário:
Postar um comentário