Cordel: O burro é o ser humano
José de Acaci
Acordei de madrugada
E comecei a fazer risco...
Pedi licença ao poeta,
Meu mestre Antônio
Francisco,
E puxei pela memória
Pra escrever essa história
Que chegou como um corisco:
Andando pela cidade
Vi uma carroça larga
Cheia de areia e cimento
E pensei na vida amarga,
O sofrimento, a tortura,
Como é a vida dura
De um pobre burro de carga.
Ao ver o burro cansado
Perguntei no pensamento:
– Como é que um homem pode
Causar tanto sofrimento?
– Como pode ser tão mau
Com esse pobre animal?
– Coitado desse jumento!
E fiquei ali parado
Pensando na humanidade
Que pra se satisfazer
Perde o rumo da verdade.
E entre todos os animais,
Entre todos os demais,
É o único que tem maldade.
[...]
Olhando aquele jumento
Escutei a voz de alguém,
Mas olhei ao meu redor
Vi que não tinha ninguém.
Só o jumento cansado,
Olhando para o meu lado
Como uma coisa do além.
Fiquei todo arrepiado
Quando o jumento me olhou
Chamou minha atenção
E para mim cochichou:
“– Não se assuste comigo
Você não corre perigo.”
E depois continuou:
“– Você, meu caro poeta,
Com esse seu sentimento
Foi por Deus abençoado.
E agora, nesse momento,
Vai ter a capacidade
E a oportunidade
De escutar um jumento.”
Eu senti um arrepio,
O suor veio na palma,
Ao escutar o jumento
Senti um frio na alma,
Meu coração disparou,
Mas o jumento falou:
“– Meu poeta, tenha calma!”
Olhou-me com a grandeza
De um Sábio de Alexandria,
E disse: “-- O que o homem
faz
Comigo é covardia,
Mas eu lhe dou o perdão
Porque no meu coração
Só tenho paz e alegria.”
“– Não adianta queixar-me
De todo meu sofrimento.
Eu não reclamo da vida
Nem resmungo um só momento,
Não vivo no desatino
Porque sei que o meu destino
Foi nascer para ser
jumento.”
“– Porém, você meu poeta,
Faz parte da raça humana.
A quem Deus deu liberdade
E a vontade soberana
Pra decidir com cuidado
Entre o certo e o errado
Entre o amor e a gana.”
“– O ser humano optou
Pelo lado que não presta.
Poluiu rios e mares,
Tocou fogo na floresta
E desmatou sopé de morro,
É um pedindo socorro
E outro fazendo festa.”
[...]
“Com trator e motosserra
Fizeram o desmatamento
Deixaram a areia solta
Gerando assoreamento.
– Oh atitude infeliz!
Ainda tem gente que diz
Que eu é sou jumento.”
“– Desculpe, caro poeta,
Magoar não é meu plano,
Mas o homem me maltrata
E ainda comete o engano
De dizer que eu sou burro”,
E falou dando um esturro:
“O burro é o ser humano.”
“– Um bicho que inventa
armas,
Que destrói uma nação,
Que tem inveja e ganância
No sangue e no coração.
Que faz o mal e sai rindo,
Tá se autodestruindo.
– Esse perdeu a razão!”
[...]
ACACI, José. O burro
é o ser humano. Parnamirim: s.d.
Fonte: Livro –
Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 8º ano – Ensino Fundamental – IBEP – 4ª
edição. São Paulo. 2015. p. 66-8.
Entendendo o cordel:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Corisco: faísca elétrica, raio.
·
Desatino: ausência de bom senso, de juízo.
·
Soberano: de grande poder, que exerce autoridade.
·
Gana: desejo grande e excessivo de obter lucro, lícito ou ilícito.
·
Sopé: base da montanha, parte inferior.
·
Assoreamento: surgimento de montes de areia por enchente ou construções.
·
Esturro: urro, rugido; estrondo; queimado.
02 – Em resumo, qual é o
assunto tratado nesse cordel?
Reflexões sobre a
natureza humana e sobre as ações do homem em relação ao meio ambiente.
03 – Uma das personagens do
poema é um burro falante. Em que outro gênero de texto o recurso de personificação
de animais costuma ser utilizado?
Nas fábulas.
04 – O eu poético comenta,
na primeira estrofe, que recorre à memória para narrar o que virá em seguida. Que
outra expressão, usada anteriormente nessa mesma estrofe, antecipa a ação de
escrever?
“Fazer risco”.
05 – Releia esta estrofe:
“E
fiquei ali parado
Pensando
na humanidade
Que
pra se satisfazer
Perde
o rumo da verdade.
E
entre todos os animais,
Entre
todos os demais,
É
o único que tem maldade.”
a) Que palavra poderia sintetizar a ideia apresentada no terceiro e no quarto versos desta estrofe? Transcreva-a em seu caderno.
I. Anseio. II.
Ganância. III. Maldade. IV. Orgulho.
b) Explique o que seria “perder o rumo da verdade”, segundo o ponto de vista do jumento.
Seria não mais praticar atos justos e verdadeiros, afastando-se do
que é adequado e correto.
c) Segundo o poema, qual é o único animal que tem maldade?
O ser humano.
d) Você concorda com essa ideia? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal do aluno.
06 – Releia outro trecho do
poema:
“[...]
Mas
eu lhe dou o perdão
Porque
no meu coração
Só
tenho paz e alegria.”
a) De quem é essa afirmação?
Do burro.
b) O que é possível perceber sobre a índole dessa personagem a partir da leitura desses versos?
Que ele é um ser bom, puro.
07 – Na 12ª estrofe,
percebe-se um confronto de atitudes.
a) Localize e transcreva em seu caderno os dois versos que apresentam essa oposição.
É um pedindo socorro / e outro fazendo festa.”
b) Identifique quais elementos estão em oposição nesses versos.
A natureza e os seres humanos.
c) Dê exemplos que confirmem a ideia que esses versos apresentam.
De um lado, há a natureza desrespeitada, que nos envia alertas de
socorro, como degelo dos polos, aquecimento global, abertura na camada de
ozônio, etc. Do outro, há o homem enriquecendo às custas da exploração.
Nenhum comentário:
Postar um comentário