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domingo, 16 de maio de 2021

CRÔNICA: RECADO PRO BOLSINHO DA CAMISA - LOURENÇO DIAFÉRIA - COM GABARITO

 CRÔNICA: RECADO PRO BOLSINHO DA CAMISA

                Lourenço Diaféria

 

Não sei como você se chama, garoto, mas te vi um dia atravessando o viaduto de concreto.

Caía chuvisco.

Teus cabelos estavam ensopados e a camisa de brim grudada no teu corpo magro e ágil como flecha disparada pelo arco do trabalho.
Você corria saltando no reflexo do asfalto molhado, como bolinha de gude rolada na infância.
Não deu tempo para perguntar teu nome. Tuas pernas finas tinham pressa. Você carregava a maleta de mão com fecho cromado, a dentro dela havia o peso da responsabilidade de papéis sérios e urgentes, que deveriam chegar a um ponto qualquer da Cidade, antes que se fechassem os guichês e portarias.
Outra vez te vi, garoto.
Fazia então um sol redondo e cheio pendurado no travessão do espaço.
Outra vez, teus cabelos úmidos de suor, a camisa de brim manchada, as calças rústicas mostrando a marca da barra que tua mãe soltou de noite, fio por fio, com um sorriso e um orgulho: - O moleque está crescendo!

Não sei como você se chama, garoto.

Te conheço de vista escalando os edifícios, alpinista de elevadores, abridor de picadas na multidão , ponta de lança rompedor nesta briga de foice que são as ruas da Cidade.

Garoto que cresce sob o sol e chuva carregando na maleta cheques, duplicatas, títulos, recibos, cartas, telegramas, tutu, bufunfa, grana e um retrato da menina que te espera na lanchonete.

Teu nome é: - gente.

Inventaram outro nome enrolado para dizer que você é garoto do batente.

Office-boy.

Guri que finta branco, escritório, repartição, fila, balcão, pedido de certidão, imposto a pagar, taxa de conservação, título no protesto e que mata no peito e baixa no terreno quando encontra os olhos da garota da caixa, que pergunta de modo muito legal:
– Tem dois cruzeiros trocados?

Moleque valente que acorda cedo, engole café com pão, fala tchau mesmo, vai pro ponto do ônibus ou estação, se pendura na condução, se vira mais que pião, tem sua turma, conta vantagem, lê jornal na banca, esquenta a marmita, discute a seleção, e depois do almoço bebe um refrigerante gelado e pede uma esfirra com limão.

E depois toca de novo a zunir pela Cidade, conhecido em tudo que é esquina, oi daqui, oi dali, até que a tarde chega e o garoto sai correndo de volta pra casa, vestir o guarda-pó, apanhar a esferográfica, enfiar os cadernos na sacola e enfrentar a escola, o sono, a voz do professor, o quadro-negro, a equação de duas incógnitas, depois de ter passado o dia inteiro gastando sola.

Guri, teu nome é: – gente

Menino de escritório, menino do batente, que agarra o trabalho com unhas e dentes, sem você a Cidade amanheceria paralisada como bicho enorme ao qual houvesse cortado as pernas.

Pois bem: este recado não é para ser entregue a ninguém, a não ser a você mesmo.

Se quiser, guarde-o no bolsinho da camisa.

Um dia, quando você estiver completamente crescido, quando tiver bigodes, telefones, papéis importantes para preencher, alguns cabelos brancos; e sua mãe não precisar (ou não puder mais) desmanchar a barra de suas calças que ficaram curtas; quando você tiver de dar ordens de serviço a outros garotos da Cidade, saberá que, para chegar a qualquer lugar, o segredo é não desistir no meio do caminho.

Mas não se esqueça de que as oportunidades não apenas se recebem ou se conquistam.

As oportunidades também devem ser oferecidas para que as pessoas pequenas saibam que seu nome é: – gente.

No futebol da vida, garoto, a parada é dura e a bola, dividida. Jogue o jogo mais limpo que você tiver. Jogue sério.

Não afrouxe se o passe recebido parecer longo demais.

Os mais bonitos gols da vida são marcados pelos que acreditam na força de seu pique.

Ponha esse recado no bolsinho da camisa, guri.

Um dia você descobrirá que a vida nem sempre é a conquista da taça.

A vida é participar do campeonato.

Vai nela, garotão!

  (Antologia da crônica brasileira – de Machado de Assis a Lourenço Diaféria. São Paulo: Moderna, 2005. p. 196-9.)

Fonte: Livro- Português: Linguagem, 3/ William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 11.ed – São Paulo: Saraiva, 2016.p.35-7.

Entendendo o texto

1. A crônica é um gênero textual que oscila entre literatura e jornalismo e, antes de ser publicada em livro, costuma ser veiculada em jornal ou revista.

Na crônica lida, o cronista dirige-se diretamente à personagem que é tema do seu texto.

a)   A personagem é uma celebridade ou uma pessoa comum, encontrada no cotidiano da cidade grande?

É uma pessoa comum, encontrada no dia a dia das grandes cidades.

 b)   O assunto é originário de situações circunstanciais comuns ou de uma situação especial?

De situações circunstanciais comuns, que dizem respeito ao cotidiano dos jovens que trabalham como office-boys.

2. A crônica é quase sempre um texto curto, com poucas personagens, e que chama a atenção para acontecimentos ou seres aparentemente inexpressivos do cotidiano. Na crônica lida, o cronista focaliza uma personagem comum na vida urbana.

a) O que chama a atenção do cronista nessa personagem?

O fato de a personagem, que é um jovem, estar sempre correndo, sob sol ou chuva.

 b)O cronista diz que inventaram para essa personagem um “nome enrolado”: office-boy. Essa personagem é focalizada pelo cronista como um ser individual ou como um ser coletivo?

Como um ser coletivo, como representante de todos os office-boys que circulam nas cidades grandes.

c)Em que lugares e em que períodos de tempo o cronista situa sua personagem?

 O cronista situa a personagem nos lugares nos quais ela circula – a sua casa, as ruas, os estabelecimentos onde cumpre suas tarefas, a lanchonete onde namora, a escola noturna, etc. – no decorrer de um dia; e, no final da crônica, imagina-a no futuro, em situação de chefia em uma empresa.

3. Em uma crônica, o narrador pode ser observador ou personagem. Qual é o tipo de narrador na crônica em estudo? Justifique sua resposta.

Narrador observador, pois ele não participa dos fatos que narra, embora se imagine falando com a personagem.

4. O cronista costuma ter sua atenção voltada para fatos do dia a dia ou veiculados em notícias de jornal e os registra com humor, sensibilidade, crítica e poesia. Ao proceder assim, quais dos seguintes objetivos o cronista espera atingir com seu texto?

a) Informar os leitores sobre um assunto.

b) Entreter os leitores e, ao mesmo tempo, levá-los a refletir criticamente sobre a vida e os comportamentos humanos.

c) Dar instruções aos leitores.

d) Tratar de um assunto cientificamente.

e) Argumentar, defender um ponto de vista e convencer o leitor.

f) Despertar no leitor solidariedade por um tipo humano.

 

5. Observe a linguagem empregada na crônica em estudo.

a) Como é retratada a vida da personagem: de forma impessoal e objetiva, isto é, em linguagem jornalística, ou de forma pessoal e subjetiva, ou seja, em linguagem literária?

De forma pessoal e subjetiva, em linguagem literária.

b)A crônica, quanto à linguagem, está mais próxima do noticiário de jornais e revistas ou mais próxima de textos literários?

Está mais próxima de textos literários.

 c) No diálogo imaginário que o cronista tem com sua personagem, há, no emprego das pessoas gramaticais, um desvio em relação à norma padrão formal. Veja:

“Não sei como você se chama, garoto, mas te vi um dia atravessando o viaduto de concreto.”

Como esse desvio pode ser explicado?

O emprego do pronome te em vez de lhe confere informalidade ao texto, contribuindo para a comunicação coloquial no diálogo fictício do cronista com o jovem.

c)O cronista emprega vários substantivos, sinônimos, para se referir à sua personagem. Quais são eles? E qual é, para ele, o substantivo que, de fato, corresponde ao nome do jovem?

Garoto, menino, moleque, guri/gente.

6. Ao retratar as andanças da personagem pela cidade, o cronista emprega um vocabulário relacionado ao campo semântico de um esporte.

a) Qual é esse esporte? Justifique.

 O futebol, de cujo campo semântico fazem parte expressões como “travessão”, “finta”, “mata no peito”, “bola dividida”, “jogo mais limpo”, “gols”, “campeonato”, etc.

b)Com que finalidade o cronista tem esse procedimento?

Estabelecer uma comparação entre a vida e o futebol, sintetizada na expressão “o futebol da vida”.

 7. Como a maioria dos gêneros ficcionais, a crônica pode ser narrada no presente ou no pretérito.

a) Que tempo verbal predomina na crônica em estudo?                                                            

O presente do indicativo.

b)Que efeito de sentido a escolha desse tempo verbal confere ao texto?

O de o leitor ser conduzido pelo cronista, envolver-se com os pensamentos dele e participar das cenas que ele descreveu.

 

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