CRÔNICA: COM LICENÇA: A BARATA
Carlos Drummond de Andrade
A barata.
Por que este velho tema (chamemo-lo assim) volta sempre à máquina de escrever e
daí passa ao jornal e entra na casa de todo mundo?
Há
assuntos graves, eu sei, mas o teclado quer escrever é a palavra “barata”, assunto
que no máximo pede inseticida. E, se for possível, certa expressão de asco. Se
possível. Os emissários submarinos e outros despertadores de náusea reclamam
prioridade e mal dão ensejo a que se sinta nojo diante de uma barata.
Há mesmo,
até, quem cultive um sentimentozinho de ternura pela barata.
Pobre que
ela é, desamparada, furtiva, aguardando a noite, o sono dos moradores, para
cuidar da vida. Então, certa alma pura, como duas que conheci, consagra aos
ortópteros* blatídeos* um amor feito de piedade, alimenta-os, deixa-os
prosperar, salva-os do ataque indiscriminado de quem cultiva outro ponto de
vista sobre a relação gente-barata:
— Essa
não! Essa é minha amiga, não posso consentir que você liquide com ela!
— E como
é que você sabe que essa aí é a sua amiga e não outra qualquer, se todas as
baratas são iguais?
O
protetor (ou protetora) de barata olha com desprezo quem lhe faz objeção tão
boba. Há personalidade nas baratas, já não falando na variedade de espécies
caseiras: a periplaneta americana, a blatella germanica, a blatta
orientalis… Não se deve discutir com ignorantes. Basta mostrar ao
desinformado que a baratinha sob nossa especial proteção tem cabeça alaranjada,
com duas listras castanhas. As de sua raça ostentam (ostentar* é modo de dizer,
barata não gosta de se exibir) cabeça amarela com listras pretas. Então você
não vê, não sente a diferença?
Entenda-se. Não estou
aqui para promover campanha sentimental em favor das baratas. Pertenço ao grupo
fero* que trata de eliminá-las de qualquer jeito, e tanto recorre à dedetização
como à pancada direta, aplastante*, com a sola do sapato. O naturalista Von
Ihering recomendava que fossem caçadas a água fervendo. Recurso perigoso, que
pode afetar tanto a caça como o caçador. Mas o próprio Von Ihering [...], ao
descrever as baratas, põe de lado o nojo, para admitir: “Há delas de várias
cores e tamanho, algumas até bem bonitas (se for permitida tal expressão),
verde-gaio ou pintadas”.
Assim, esteticamente, a barata pode ser
objeto de admiração, em alguns casos, e até mesmo, se for bastante colorida,
ganhar capa de Manchete.
Temos de nos defender contra os
insetos daninhos, e a barata é dos que mais fazem jus ao título. Para isto há o
inseticida. Já não é tão eficaz a exclamação que assinala sua presença numa
gaveta:
— Nojenta!
— Repugnante!
— Repelente!
— Imunda!
— Asquerosa!
— Sórdida!
— Porcaria!
— Vil!
Não lhes parece
excesso de artilharia para alvo tão miúdo? Além do
mais, canhoneio* vão.
A barata ignora nossos xingos, que não lhe atingem a estrutura. E daí, se
formos tão severos com ela, que palavras terríveis guardaremos para qualificar
indivíduos incomparavelmente mais daninhos, pois não devastam só uma gaveta,
mas regiões inteiras do globo, e fazem recair seu poder maléfico sobre a
humanidade em geral?
É prudente economizar
certo tipo de objurgatórias*, para que não nos falte munição em hora adequada.
E barata não merece tanto. Já é, por si, animal condenado à clandestinidade e
ao desprezo. Se uma consegue despertar sentimento amistoso no peito de alguém,
maravilha é, sobre me render mais este papocrônica.
São Paulo: Companhia das
Letras, 2014.
Fonte: Livro – APROVA BRASIL- Língua Portuguesa – 7º Ano - Editora Moderna;editora responsável, Thaís Ginícolo Cabral. --São Paulo : Moderna, 2019, p. 36/37/38.
GLOSSÁRIO
a grande (grilos, gafanhotos,
esperanças, bichos-paus, louva-a-deus, baratas).
*blatídeo:
família de insetos ortópteros que compreende as baratas.
*ostentar:
mostrar-se, exibir-se com alarde.
*fero:
perverso, cruel.
*aplastante:
cansativo, fatigante.
*canhoneio:
tiros de canhão simultâneos ou sucessivos.
*objurgatória: repreensão severa.
Questão
1
D7 – Identificar a tese de um texto.
O autor desse texto
defende a ideia de que as baratas
( A ) não merecem o desprezo
e a severidade com que as tratamos, pois há indivíduos mais daninhos no mundo.
( B ) só podem ser
exterminadas com o uso de água quente, pois qualquer outra forma seria excesso
de crueldade com esses animais.
( C ) são admiradas pela
maioria das pessoas, as quais somente não têm a coragem de admitir que gostam
delas.
( D ) conseguem resistir
aos inseticidas porque são as únicas que sobreviveriam a uma explosão nuclear.
Questão
2
D10 –
Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a
narrativa.
( A ) do
narrador-personagem da história.
( B ) do narrador
observador da história.
( C ) da personagem
principal da história.
( D ) de uma personagem
secundária da história.
D12 –
Identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros.
( A ) ensinar ao leitor as
melhores formas de exterminar baratas.
( B ) discorrer sobre um
fato cotidiano: a difícil relação do ser humano com as baratas.
( C ) fazer uma crítica às
pessoas que conseguem enxergar alguma beleza nas baratas.
( D ) divulgar informações
científicas sobre as principais espécies de baratas existentes.
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