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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

CRÔNICA: GENTE DEMAIS - RACHEL DE QUEIROZ - COM GABARITO

 Crônica: Gente Demais       

                  Rachel de Queiroz

        Ah, vida penosa! Tudo tão difícil, tão sofrido, tão sem jeito. A discórdia, as disputas, as mentiras. O grevismo. Pensando bem, quem sabe os males do mundo não decorrem do fato de, neste mesmo mundo, estar havendo gente demais? Já não se morre tanto como antigamente. A perspectiva de vida das pessoas subiu de modo incrível. Na época da nossa independência, o tempo médio de vida dos brasileiros talvez não passasse dos 40. Hoje alcançou os 70 e, nas áreas mais adiantadas, já estão falando em 80. A medicina evoluiu tanto que, neste final de século, andam esquecidas quase todas as grandes doenças que outrora dizimavam populações. Ninguém morre mais de varíola, de bubônica, de tifo, de febre amarela. O impaludismo acaba onde chega o mata-mosquito. Quase não se morre mais de parto, de apendicite, de hérnia. Fora das faixas de grande pobreza, baixam muito os índices de mortalidade infantil. A tuberculose, a grande Peste Branca, ficou para trás, contemporânea da Dama das Camélias. Até lepra hoje se cura. Os males da velhice são combatidos com êxito e o milagre da ponte de safena já se faz nos hospitais públicos, deixando de ser privilégio dos ricos.

        E quando a ciência se mostra ainda impotente, como acontece com o câncer e com a Aids, os sábios enfrentam com tal gana o desafio que, com certeza, em breve o vencerão.

        E agora eu pergunto: estará mesmo dentro dos planos de Deus tanta gente pululando na fase da terra? Mais de um bilhão de chineses, por exemplo, estriam previstos no Gênese, quando o Senhor contemplou a sua criação e achou que tudo estava bem? Não haverá chineses demais, e russos, e americanos, e indianos – e brasileiros?

        Os criadores de gado e de outros bichos sabem que não se pode ter rebanho acima das possibilidades de pasto. Passando certo limite, tem que vender, mandar para o corte, embora com uma dor no coração. Então nós, que somos o rebanho do Senhor, não teremos excedido as possibilidades do nosso sustento, não careceremos de ser reajustados? Como Deus não dendê corpos (o próprio Diabo só se interessa por almas), Ele então suscita epidemias, terremotos, enchentes, revoluções, guerras. E como tem conosco o compromisso de nos permitir o livre-arbítrio, deixa que a podagem a façamos nós mesmos – e por isso é ela tão imperfeita. Guerras por exemplo: são um método seguro de fazer com que minguem populações. Mas em vez de se recrutarem os inúteis, os descartáveis, os velhos, os estropiados, os frágeis – não: convoca-se para a guerra a fina flor da população, os que estão no esplendor da juventude. Idade entre 18 e 25 anos, boa altura, boas proporções, saúde perfeita. Nem os míopes são aceitos. Dentes impecáveis, como se nas guerras de hoje ainda se brigasse às dentadas. Exemplares perfeitos, hígidos – pra quê? Para fazer deles carne de canhão. Parece que as juntas do recrutamento militar não têm ideia da crueza da guerra; só cuidam de bonitos soldadinhos em parada. Por mim, em caso de guerra, afora os especialistas indispensáveis (que, no caso, precisam é de bons cérebros, não de higidez física), pegaria para carne de canhão somente os dispensáveis, os que são um peso para si e para os outros e – por que não? – os velhos como nós. Passou dos 70, está automaticamente alistado. O prejuízo não seria tão grande, nós já estamos mesmo na hora do ajuste de contas. Nos romances de cavalaria há sempre a figura do velho herói que, somando as cansadas forças ao imperecível valor, ganha a vitória com o seu sacrifício. Lembram-se da última campanha do Cid Campeador? Até depois de morto venceu o combate, correndo à frente no seu corcel de guerra, atado numa grade que o sustinha à sela, preso na mão esquerda o pendão de batalha. Pois há muito velho por aí, ansioso por acabar em glória, numa façanha assim.

        E então ficariam só os moços, os belos, os saudáveis, para repovoar a terra.

As terras ásperas: 96 crônicas escolhidas. São Paulo, Siciliano, 1993.

     Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 66-9.

Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fjoaokepler.medium.com%2Fa-vida-%25C3%25A9-uma-perspectiva-5ad91f965d04&psig=AOvVaw0dkUZ4PMYjJVKHCJAWh6V3&ust=1607125074308000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCJiM8Nb9su0CFQAAAAAdAAAAABAD

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Discórdia: desavença, falta de concórdia.

·        Pululando: brotando, multiplicando-se com rapidez.

·        Grevismo: movimentos pela paralisação do trabalho.

·        Excedido: superado.

·        Perspectiva: estimativa, possibilidade.

·        Suscita: provoca.

·        Dizimavam: aniquilavam, exterminavam.

·        Livre-arbítrio: faculdade que tem o ser humano de autodeterminar-se, isto é, decidir seus próprios caminhos.

·        Contemporânea: da mesma época.

·        Impotente: que não tem poder.

·        Gana: grande apetite ou vontade de algo.

·        Minguem: dizimem, reduzam.

·        Hígidos: sadios, sãos.

02 – Como você avalia a opinião do narrador sobre o mundo?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A opinião do narrador sobre o mundo é muito pessimista, mostra amargura e descontentamento.

03 – Em que área do conhecimento humano o texto reconhece grandes avanços?

      Na medicina.

04 – Segundo o texto, qual é a causa dos problemas do mundo?

      Segundo o texto, é o excesso de população.

05 – Com que o texto compara a espécie humana?

      O texto compara a espécie humana com gado.

06 – Qual é a explicação presente no texto sobre as catástrofes que atingem a humanidade?

      As catástrofes seriam suscitadas por Deus para diminuir a população.

07 – Quem são os convocados para as guerras?

      São os jovens, de “boa altura, boas proporções, saúde perfeita”.

08 – Que grupo a autora gostaria de enviar à guerra?

      A autora enviaria à guerra os mais velhos, que já estão na hora do “ajuste de contas”.

09 – Numere as afirmações de acordo com a ordem em que aparecem no texto.

(1) Os males do mundo decorrem do fato de haver gente demais.

(8) Há muitos idosos que gostariam de acabar os seus dias praticando um ato de heroísmo.

(2) A perspectiva de vida aumentou muito.

(3) A medicina evoluiu tanto que muitas doenças que dizimavam populações andam esquecidas.

(9) Os melhores repovoariam o mundo.

(5) O ser humano tem livre-arbítrio.

(7) Os velhos deveriam ser soldados.

(4) Com certeza, em breve serão vencidos o câncer e a Aids.

(6) As guerras matam os jovens.

10 – Escolha uma das afirmações da questão anterior e argumente em seu favor.

      Resposta pessoal do aluno.

11 – Escolha uma das afirmações da questão 9 e argumente contra ela.

      Resposta pessoal do aluno.

12 – Lembre-se do que você discutiu sobre a causa das guerras.

a)   A autora desta crônica posiciona-se contra a guerra?

Ela não critica a guerra em si, mas o fato de se enviarem jovens, “a fina flor da população”.

b)   Como você vê esse posicionamento.

Resposta pessoal do aluno.

13 – De modo geral, você concorda ou discorda das afirmações contidas no texto? Justifique sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno.

 

 

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