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sexta-feira, 27 de novembro de 2020

CRÔNICA: GUERRA - RUBEM BRAGA- COM GABARITO

 Crônica: Guerra


4 de setembro de 1939

               Rubem Braga

        Nestes dias em que a guerra começa, ando eu mergulhado no trabalho de traduzir, para o José Olympio, um livro de Cronin, o autor de A Cidadela. O livro tem um título lírico – sob o olhar das estrelas – mas não tem duas linhas sequer de divagações líricas. É vivo e realista. Conta a história de uns mineiros do Norte da Inglaterra. A ação começa antes da Grande Guerra e acaba depois. Não aparece uma única cena de guerra, mas nem por isso ela deixa de estar presente, influindo sobre os personagens que embarcam para a França e mesmo sobre os que não embarcam. Há o caso interessante de um rapaz que fez “objeção de consciência” para não ir à guerra. Havia na Inglaterra daquele tempo milhares de jovens que se negaram a combater não por medo – era preciso mais coragem para ficar do que para irmos por motivos espirituais. Arthur Barras, o filho de um proprietário de mina de carvão, é um deles. E tem de comparecer perante um tribunal presidido pelo próprio pai. Os outros membros do tribunal são: um açougueiro, um militar e um pastor protestante. O açougueiro, um tal Ramage, homem truculento de pescoço taurino, interroga:

        -- Por que se nega a combater?

        -- Não quero matar meus semelhantes.

        -- Mas, por quê?

        -- Minha consciência se recusa a isso.

        Há um silêncio, e depois Ramage observa rudemente:

        -- Consciência demais sempre faz mal a uma pessoa.

        Aí o reverendo intervém, olhando paternalmente o acusado:

        -- Vamos ver uma coisa. Você não é cristão? Não há nada, na religião cristã, que proíba matar legitimamente pela salvação do país.

        -- Não há assassinato legítimo.

        -- Como?

        -- Não consigo imaginar Jesus Cristo metendo uma baioneta na barriga de um soldado alemão. Não posso imaginar Jesus atrás de uma metralhadora derrubando homens inocentes.

        O reverendo Low fica vermelho:

        -- Isso é uma blasfêmia!

        Depois é o próprio pai que interroga. Em certo momento explica ao filho:

        -- Fazemos esta guerra para que seja a última.

        -- É o que sempre se diz. É o que se repetirá mais tarde para que os homens se trucidem, quando rebentar a próxima guerra!

        Depois vem um rápido interrogatório do militar – e Arthur Barras acaba condenado a dois anos de cadeia, com trabalhos forçados.

        Está visto que Arthur tinha razão – mas seu gesto não teve força nenhuma para deter a guerra, nem para evitar esta outra, que aí está. Nem muito menos para evitar que outro personagem – o bravo Joe Gowland – ficasse podre de rico dirigindo uma fábrica de munição.

                      Uma fada no front. Porto Alegre, Artes e Ofícios.

            Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 55-7.

Fonte de imagem:https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fmemoria.oglobo.globo.com%2Fjornalismo%2Fprimeiras-paginas%2Ffim-da-paz-8898913&psig=AOvVaw0lgk6wQirEKl9uE8tLrxE2&ust=1606601324061000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCNiY4L3eo-0CFQAAAAAdAAAAABAD

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Lírico: poético, emotivo.

·        Taurino: de touro.

·        Divagações: devaneios, desvio de rumo ou assunto.

·        Reverendo: sacerdote, pastor.

·        Objeção: oposição, contestação.

·        Trucidem: matem com crueldade, com carnificina.

·        Truculento: feroz, cruel.

02 – O texto apresenta duas informações que nos permitem localizá-lo no tempo. Quais são elas?

      A primeira (data logo abaixo do título e início do texto) indica que o texto foi escrito no início da Segunda Guerra Mundial (3/9/1939 a 8/5/1945). O assunto da crônica remete a acontecimentos ocorridos durante a Primeira Guerra Mundial, ocorrida entre 1914 e 1918 (“... seu gesto não teve força nenhuma para deter a guerra, nem para evitar esta outra, que aí está.”).

03 – Como o narrador entrou em contato com o assunto do texto?

      Ao traduzir um livro para a editora José Olympio, chamado Sob o olhar das estrelas.

04 – Quem é Arthur Barras? O que o torna especial?

      Arthur Barras é filho de um proprietário de mina de carvão. Ele se recusa a partir para a guerra em que teria de matar seus semelhantes.

05 – Como se forma o tribunal que julga Arthur Barras? Como você interpreta a profissão de cada um deles?

      Há sem dúvida uma certa ironia na formação do tribunal: o açougueiro é um matador profissional, o pastor protestante está a favor da guerra e o próprio pai é contra o filho.

06 – Dos argumentos apresentados pelos três acusadores de Arthur Barras, qual lhe parece mais absurdo? Comente-o.

      Resposta pessoal do aluno.

07 – Como você entendeu: “Está visto que Arthur tinha razão – mas seu gesto não teve força nenhuma para deter a guerra, nem para evitar esta outra, que aí está.”?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O gesto do Arthur, embora moralmente correto e louvável, foi inútil por se tratar de uma ação individual.

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