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sexta-feira, 27 de novembro de 2020

CONTO: JOÃO, FRANCISCO, ANTÔNIO - CECÍLIA MEIRELES - COM GABARITO

 Conto: João, Francisco, Antônio

Cecília Meireles

    João, Francisco, Antônio põem-se a contar-me a sua vida. Moram tão longe, no subúrbio, precisam sair tão cedo de casa para chegar pontualmente a seu serviço. Já viveram aglomerados num quarto, com mulher, filhos, a boa sogra que os ajuda, o cão amigo à porta... A noite deixa cair sobre eles o sono tranquilo dos justos. O sono tranquilo que nunca se sabe se algum louco vem destruir, porque o noticiário dos jornais está repleto de acontecimentos inexplicáveis e amargos.

        João, Francisco, Antônio vieram a este mundo, meu Deus, entre mil dificuldades. Mas cresceram, com os pés descalços pelas ruas, como os imagino, e os prováveis suspensórios – talvez de barbante – escorregando-lhes pelos ombros. É triste, eu sei, a pobreza, mas tenho visto riquezas muito mais tristes para os meus olhos, com vidas frias, sem nenhuma participação do que existe, no mundo, de humano e de circunstante.

        João, Francisco, Antônio conhecem os passarinhos, pena por pena, são capazes de descrevê-los: acompanharam os seus hábitos, sabem as árvores onde moram, distinguem, no sussurro geral, a voz de cada um.

        João, Francisco, Antônio conhecem as pedras, as suas arestas, a sua temperatura, que faíscas desprendem de noite. Conhecem as fisionomias das casas e, evidentemente, os seus habitantes, os letreiros das lojas, os diversos comerciantes e os seus negócios. Tudo isso é uma forma de instrução que vem da infância, que ocupou os dias sem possibilidades especiais de aquisições sistematizadas. Aprenderam nomes de ruas e veículos, observando, alguns deles, com particular curiosidade, quando a vocação é para engenhos, máquinas, motores. Mas outros, por natureza menos práticos, mais poéticos, decerto, construíram papagaios, combinando cores de papel de seda, inventando formas geométricas, recortando bandeirinhas, levantando nos ares as suas transparentes construções, querendo alcançar o céu – que talvez julgassem alcançável – ou apenas as nuvens, para sentir, na ponta de uma linha, como se encastelam e como se desfazem.

        Não falo de outros, que matam passarinhos com atiradeiras, que quebram vidraças, que maltratam os outros meninos da sua idade, que lhes rasgam as roupas... Não, não, quero falar de João, Francisco, Antônio, os que, desde pequenos, vêm sendo construtivos, que procuram realizar-se, entre as maiores dificuldades, ajudando os pais, amparando os irmãozinhos, realizando suas breves alegrias entre mil sombras.

        João, Francisco, Antônio conseguem, a tanto custo, aprender alguma coisa do que é preciso para encontrar o caminho do seu trabalho e, se possível, da sua vocação. Mal saídos da adolescência – quando outros da mesma idade, em outras condições, folgam, e acham ou que é cedo para começar ou que já são infelizes porque ouviram falar de assuntos do mundo adulto –, eles vão para algum trabalho de madrugada, sentem-se uma parte da família a que pertencem e querem ajudar-se e ajuda-la.

        João, Francisco, Antônio amam, casam, acham que a vida é assim mesmo, que se vai melhorando aos poucos. Desejam ser pontuais, corretos, exatos no seu serviço. É dura a vida, mas aceitam-na. Desde pequenos, sozinhos sentiram sua condição humana e, acima dela, uma outra condição a que cada qual se dedica, por ver depois da vida a morte e sentir a responsabilidade de viver.

        João, Francisco, Antônio conversam comigo, vestidos de macacão azul, com perneiras, lavando vidraças, passando feltros no assoalho, consertando fechos de portas. Não lhes sinto amargura. Relatam-se, descrevem as modestas construções que eles mesmos levantaram com suas mãos, graças a pequenas economias, a algum favor, a algum benefício. E não sabem com que amor os estou escutando, como penso que este Brasil imenso não é feito só do que acontece em grandes proporções, mas destas pequenas, ininterruptas, perseverantes atividades que se desenvolvem na obscuridade e de que as outras, sem as enunciar, dependem.

        Por isso, as enuncio, porque sei que, na sombra, se desenvolve este trabalho humilde de Antônio, Francisco, João.

Cecília Meireles. Janela mágica. São Paulo: Moderna, 1983. P. 14-15.

    Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p.33 – 34 e 36.

Fonte da imagem:https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3Dqge1pC7g7J0&psig=AOvVaw3_Qe9wAzfB_JI6QNIrj2Ts&ust=1606602302748000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCNi3kpDio-0CFQAAAAAdAAAAABAD


Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavra abaixo:

·        Pontualmente: na hora certa.

·        Vocação: tendência para o exercício de determinada atividade.

·        Aglomerados: amontoados.

·        Circunstante: que está à volta; presente.

·        Encastelar: afastar-se subindo; acumular, amontoar.

·        Distinguir: perceber a diferença.

·        Ininterruptas: incessantes.

·        Arestas: ângulos, saliências.

·        Perseverantes: persistentes.

·        Faíscas: pequenas chamas provocadas pelo atrito.

·        Obscuridade: ausência de notoriedade, de fama; condição humilde.

·        Aquisições: conquistas.

·        Sistematizadas: organizadas segundo um método.

·        Enunciar: dizer.

02 – Que tipo de narração aparece no texto?

      Aparece narração em primeira pessoa (o texto é constituído a partir de uma suposta conversa entre narrador/personagem).

03 – Qual é a relação entre o nome e o comportamento das personagens?

      São nomes de pessoas simples e também de santos da religião católica. Como são nomes muito comuns, podemos inferir que o que se diz deles vale para muitas outras pessoas que vivem e trabalham como eles.

04 – O que João, Francisco e Antônio apresentam em comum?

      São pobres, não puderam estudar, mas são honestos e trabalhadores.

05 – Onde João, Francisco e Antônio se encontraram com a narradora?

      O encontro se deu em um prédio onde as personagens estão trabalhando.

06 – Durante todo o texto a narradora enuncia vários sentimentos a respeito dos três rapazes. Quais são eles?

      A narradora sente respeito, admiração e um amor humanitário pelos três.

07 – Como você entendeu: “Não falo outros, que matam passarinhos com atiradeiras, que quebram vidraças, que maltratam os outros meninos da sua idade, que lhes rasgam as roupas...”?

      A narradora sabe que há outros rapazes que não se comportam tão bem como as personagens mas estes não serão mencionados.

08 – Como vivem no presente João, Francisco e Antônio?

      Vivem no subúrbio, em casas que eles mesmos construíram. Lutam para melhorar de vida.

09 – Como João, Francisco e Antônio enfrentam as dificuldades da vida? Justifique com palavras do texto.

      Com aceitação, perseverança e coragem. “... desde pequenos, vêm sendo construtivos, que procuram realizar-se, entre as maiores dificuldades, ajudando os pais, amparando os irmãozinhos, realizando suas breves alegrias entre mil sombras.”

10 – Por que a narradora escolheu os três como personagens?

      Porque eles são importantes, embora desenvolvam suas atividades no anonimato, pois muitas pessoas dependem de seu trabalho.

11 – Para você, em geral como são tratados os humildes em nosso pais?

      Resposta pessoal do aluno.

12 – O texto mescla partes narrativas e dissertativas.

a)   Localize um trecho inteiramente narrativo.

Está no terceiro parágrafo.

b)   Localize um trecho em que o narrador interrompe a história das personagens para expressar sua opinião.

“...E não sabem com que amor os estou escutando, como penso que este Brasil imenso não é feito só do que acontece em grandes proporções, mas destas pequenas, ininterruptas, perseverantes atividades que se desenvolvem na obscuridade...”.

c)   Com que objetivo a autora se valeu dessa mescla de elementos narrativos e dissertativos?

Ela se utiliza da história de três personagens para ilustrar uma ideia: que um pais é o resultado do trabalho de pessoas humildes e anônimas que, sem alarde, vão colaborando para o bem comum.

 

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