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segunda-feira, 10 de agosto de 2020

CONTO: O MUNDO SEM MIM - GUSTAVO CORÇÃO - COM GABARITO

 CONTO: O MUNDO SEM MIM

     Gustavo Corção

   Teria eu uns doze anos quando um dia me assaltou a mente, com particular relevo, a ideia de que o mundo já existira sem mim. Essa ideia é aparentemente trivial, pois nenhum de nós, em são juízo, pretende ter sido companheiro de armas de Carlos Magno, ou tripulante da caravela de Cristóvão Colombo. O mundo, evidentemente, era mais antigo do que o menino que suspendia o brinquedo para olhar em volta de si com estranheza; ali estavam as pessoas mais velhas, as grossas árvores, as casas, as montanhas, tudo a me falar de uma história anterior e de um cenário anterior.
Mas o caso é que eu, de repente, achava muito esquisita essa ideia tão simples.

        As pessoas mais velhas tinham um privilégio perturbador: bastava-lhes querer, para que dentro delas se armasse um mundo em que eu não era, nem havia necessidade que fosse. Pedia então à mamãe:

        -- Conta uma história de antigamente.

        Ela contava. A gente grande virava criança, os mortos saíam das sepulturas, e as crianças como eu, nesse recuo, mergulhavam na morte branca do não-ser. E de todas as transmutações era essa a que me parecia mais incompreensível. Na história que minha mãe contava, os personagens não davam por falta de mim; ninguém esperava por mim. Os mortos mais mortos, que não chegavam a emergir na data do episódio, eram todavia lembrados, e lá
estavam presentes pelos ecos e vestígios. Havia o Barão, a tia Elvira, que fora ao baile da Ilha Fiscal, o Juvêncio, negro legendário pelos exemplos de fidelidade e dedicação. O nome deles, a saudade deles entrava na história. A marca deles.
Eu não. Naquela cena vagamente amarela, que eu via desenhar-se atrás da testa de minha mãe, revivia um mundo em que eu não era; nem havia necessidade que fosse.

                                                            Lições de abismo. Rio de Janeiro: Agir, 1989, p. 69-71.

             Fonte: Português – Uma proposta para o letramento – Ensino fundamental – 8ª série – Magda Soares – Ed. Moderna, 2002 – p. 71/3.

Entendendo o texto:

01 – Segundo o narrador, a ideia de que o mundo já existia sem ele é “aparentemente trivial”. Por que é uma ideia trivial?

      Porque qualquer pessoa sensata sabe que não existia no tempo de acontecimentos históricos do passado.

02 – Localize esta frase, no primeiro parágrafo: “O mundo, evidentemente, era mais antigo do que o menino...”. Que evidências o menino tinha de que o mundo era mais antigo que ele?

      O que ele via à sua volta com mais idade que ele: as pessoas mais velhas, às árvores grossas (logo, de muitos anos), as casas, as montanhas.

03 – Recorde o início do segundo parágrafo: “As pessoas mais velhas tinham um privilégio perturbador”. Privilégio designa uma vantagem: as pessoas mais velhas tinham uma vantagem que o menino não tinha.

a)   Que privilégio tinham as pessoas mais velhas?

Podiam recordar acontecimentos anteriores ao nascimento do menino.

b)   Por que isso era um privilégio?

Porque as pessoas mais velhas podiam ter recordações que o menino não podia ter.

c)   Por que, para o menino, ouvir uma história de antigamente era uma forma de compensar o privilégio que tinham as pessoas mais velhas?

Porque ficava conhecendo os acontecimentos que as pessoas mais velhas conheciam.

04 – Localize esta frase no quarto parágrafo: “E de todas as transmutações era essa a que me parecia mais incompreensível”.

a)   Quais são “todas as transmutações a que se refere o narrador?

Gente grande passava de adultos a crianças, mortos voltavam a viver, crianças deixavam de existir.

b)   Qual era a transmutação que parecia mais incompreensível?

A de as crianças deixarem de existir, não participarem das histórias de antigamente.

05 – Na história que a mãe contava, “os mortos saíam das sepulturas” e “as crianças mergulhavam na morte branca do não-ser”.

a)   Por que os mortos saíam das sepulturas?

Porque, no tempo em que se passava a história, ainda não tinham morrido, participam da história como personagens.

b)   Em geral, fala-se da morte do ser: a perda da vida por um ser até então vivo. O que significa, no texto, “morte do não-ser”?

Morte como ausência de vida, referindo-se ao período antes de um ser existir.

c)   Por que, na história, as crianças mergulhavam na morte do não-ser?

Porque, no tempo em que se passava a história, ainda não existiam, ainda não eram seres, ainda não tinham vida.

06 – Da “história de antigamente” contada pela mãe, não participavam:

·        Os que já tinham morrido na época do episódio;

·        Os que ainda não tinham nascido na época do episódio.

Entretanto, há uma diferença na forma como uns e outros são tratados, na narração do episódio; qual é a diferença?

      Os que já tinham morrido estavam presentes na história, porque eram lembrados, eram mencionados; os que ainda não tinham nascido estavam inteiramente ausentes da história, porque ainda não existiam e nem se sabia que viriam a existir.

07 – Observe no texto as expressões: “Morte branca do não-ser” e “Naquela cena vagamente amarela, que eu via desenhar-se atrás da testa de minha mãe...”

a)   Por que, para o narrador, a morte do não-ser é branca?

Porque a cor branca é associada à ausência, ao nada.

b)   Por que o narrador vê como sando amarela a cena da “história de antigamente” que a mãe conta?

Porque as coisas antigas se tornam amareladas (fotos, papéis, etc.), o amarelo é associado ao velho, ao antigo.

08 – O narrador não estranha a ideia de não ter sido companheiro de Carlos Magno ou de Cristóvão Colombo, mas estranha a ideia de não ser companheiro dos personagens da história que a mãe conta. Por que a segunda situação lhe parece estranha e a primeira não?

      A primeira situação não é estranha porque ele não é estranha porque ele não tem uma relação pessoal com figuras dos acontecimentos históricos, são acontecimentos de que ele não participaria mesmo se estivesse vivo na época; a segunda situação é estranha porque são pessoas com quem ele tem uma relação pessoal, sente-se parte integrante do grupo familiar que, no entanto, viveu no passado sem a presença dele e sem que ele fizesse falta.

09 – Retome a primeira questão e explique, agora, por que, para o narrador, a ideia de que o mundo existira sem ele é aparentemente trivial: parece trivial, mas não é. Por que não é?

      Se é trivial em relação ao passado histórico, não é trivial, é estranha em relação ao passado da própria família.

10 – Faça como o narrador: pense no mundo sem você. Você acha, como o narrador, essa ideia esquisita? Ou não? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno.

 

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