Crônica: SONDAGEM
Carlos Drummond de Andrade
O carteiro, conversador amável, não
gosta de livros. Tornam pesada a carga matinal, que na sua opinião, e dado o
seu nome burocrático, devia constituir-se apenas de cartas. No máximo algum
jornalzinho leve, mas esses pacotes e mais pacotes que o senhor recebe, ler
tudo isso deve ser de morte!
Explico-lhe que não é preciso ler tudo
isso, e ele muito se admira:
-- Então o senhor guarda sem ler? E
como é que sabe o que tem no miolo?
-- Em primeiro lugar, Teodorico, nem
sempre eu guardo. Às vezes dou aos amigos, quando há alguma coisa que possa
interessar a eles.
-- Mas como sabe que pode interessar,
se não leu?
Esclareço a Teodorico que não leio de
ponta a ponta, mas sempre abro ao acaso, leio uma página ou umas linhas, passo
os olhos no índice, e concluo.
Meu crédito diminui sensivelmente a
seus olhos. Não lhe passaria pela cabeça receber qualquer coisa do correio sem
ler inteirinha.
-- Mas, Teodorico, quando você compra
um jornal se sente obrigado a ler tudo que está nele?
-- Aí é diferente. Eu compro o jornal
para ver os crimes, o resultado do seu-talão-vale-um-milhão etc. Leio aquilo
que me interessa.
-- Eu também leio aquilo que me
interessa.
-- Com o devido respeito, mas quem lhe
mandou o livro desejava que o senhor lesse tudinho.
-- Bem, faz-se o possível, mas...
-- Eu sei, eu sei. O senhor não tem
tempo.
-- É.
-- Mas quem escreveu, coitado! Esse
perdeu o seu latim, como se diz.
-- Será que perdeu? Teve satisfação em
escrever, esvaziou a alma, está acabado.
A ideia de que escrever é esvaziar a
alma perturbou meu carteiro, tanto quanto percebo em seu rosto magro e sulcado.
-- Não leva a mal?
-- Não levo a mal o quê?
-- Eu lhe dizer que nesse caso carece
prestar mais atenção ainda nos livros, muito mais! Se um cidadão vem à sua casa
e pede licença para contar um desgosto de família, uma dor forte,
dor-de-cotovelo, vamos dizer assim, será que o senhor não escutava o lacrimal
dele com todo o acatamento?
-- Teodorico, você está esticando
demais o meu pensamento. Nem todo livro representa uma confissão do autor,
ainda ontem você me trouxe uma publicação do Itamaraty sobre o desenvolvimento
da OPA, que drama de sentimento há nisso?
-- Bem, nessas condições...
-- E depois, no caso de ter uma dor
moral, escrevendo o livro o camarada desabafa, entende? Pouco importa que seja
lido ou não, isso é outra coisa.
Ficou pensativo; à procura de
argumento? Enquanto isso, eu meditava a curiosidade de um carteiro que se
queixa de carregar muitos livros e ao mesmo tempo reprova que outros não os
leiam integralmente.
-- Tem razão. Não adianta mesmo
escrever.
-- Como não adianta? Lava o espírito.
-- No meu fraco raciocínio, tudo é
encadeado neste mundo. Ou devia ser. Uma coisa nunca acontece sozinha nem acaba
sozinha. Se a pessoa, vamos dizer, eu, só para armar um exemplo, se eu escrevo
um livro, deve existir um outro - o senhor, numa hipótese - para receber e ler
esse livro. Mas se o senhor não liga a mínima, foi besteira eu fazer esse
esforço, e isso é o que acontece com a maioria, estou vendo.
-- Teodorico! você... escreveu um
livro?
Virou o rosto.
-- De poesia, mas agora não adianta eu
lhe oferecer um exemplar. Até segunda, bom domingo para o senhor.
-- Escute aqui, Teodorico...
-- Bem, já que o senhor insiste, aqui
está o seu volume, não repare os defeitos, ouviu? Esvaziei bastante a alma,
tudo não era possível!
(Fonte: ANDRADE,
Carlos Drummond de. Sondagem. In: WERNECK, Humberto (Org.). Boa companhia:
crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p.31-33.)
Entendendo a crônica:
01 – O carteiro questionou o
narrador sobre o fato de esse não ler todos os livros que recebe, por quê?
a)
Se admirava da capacidade de leitura do
narrador.
b)
Se queixava de ter que carregar o
peso dos livros.
c)
Queria convencer o narrador a ler o seu livro.
d)
Queria saber se alguém lia tantos livros.
02 – Em qual frase está
expressa uma opinião do narrador?
a)
“O carteiro, conversador amável,
não gosta de livros”.
b)
“Esclareço a Teodorico que não leio de ponta
a ponta...”.
c)
“Explico-lhe que não é preciso ler tudo
isso...”.
d)
“... leio uma página ou umas linhas...”.
03 – A crônica inicia-se com
a seguinte consideração do narrador. “O carteiro, conversador amável, não gosta
de livro”. Explique como isso entra em contradição no final da crônica.
No final da crônica
contradiz essa afirmação, porque é revelado que o carteiro havia escrito um
livro de poesias.
04 – O autor faz parte da
situação narrada ou está como observador, de fora?
Ele é
narrador-personagem, pois ele participa da história e a conta na 1ª pessoa.
05 – Explique o período a
seguir, tendo em vista o assunto tratado no texto: “Meu crédito diminui
sensivelmente a seus olhos”.
Significa que a
boa reputação de leitor do narrador diminuiu bastante diante do carteiro
Teodorico.
06 – No trecho: “Teodorico,
você está esticando demais seu pensamento”, a expressão em destaque pode
ser interpretado como:
Ele está querendo
muitas explicações sobre o porquê do autor não ler os livros.
07 – Ao longo do texto,
percebemos que o narrador e o carteiro possuem posturas diferentes quanto à
leitura de livros.
a)
Retire do texto um argumento utilizado pelo
narrador na tentativa de convencer Teodorico de que mesmo que não se leia
completamente um livro a experiência da escrita e válida.
O narrador argumenta que quem escreveu o texto teve satisfação em
escrever, esvaziou a alma, lavou o espírito. Isso demonstra que, mesmo que
ninguém o leia, vale a pena escrever o livro.
b)
Agora retire do texto um contra argumento
utilizado por Teodorico que se opõe a ideia do narrador.
Teodorico pensa que tudo no mundo é encadeado, uma coisa não
acontece ou acaba sozinha. Portanto, se uma pessoa escreve um livro deve haver
outra que o leia.
c)
Após analisar os argumentos de ambas partes,
dê sua opinião. Qual argumento você considerou o mais coerente e convincente?
Explique sua resposta.
Resposta pessoal do aluno.
08 – Segundo o autor, uma
pessoa só escreve para se lida? Explique.
Não. Escreve para
esvaziar a alma.
09 – Identifique algumas
características do gênero crônica presentes no texto.
- Narrativa curta;
- Poucos personagens;
- Fatos da vida cotidiana;
- Linguagem simples, coloquial.
10 – O autor, para reforçar
sua tese em relação à leitura dos livros que recebe, compara a leitura dos
livros com a do jornal. Identifique o argumento utilizado na comparação.
“-- Mas, Teodorico, quando você compra um
jornal se sente obrigado a ler tudo que está nele?
-- Aí é diferente. Eu compro o jornal
para ver os crimes, o resultado do seu-talão-vale-um-milhão etc. Leio aquilo
que me interessa.
-- Eu também leio aquilo que me
interessa.”
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