CRÔNICA: Se não me falha a memória
Memória boa tinha aquele velho. Correu
os olhos pelo cartório onde eu era escrivão e veio direto à minha mesa:
-- Sr. Escrivão, meus respeitos – fez
um salamaleque: – Queria que o senhor me desse informações sobre um inventário.
-- Às suas ordens - e retribuí o
cumprimento: – Inventário de quem?
-- Já lhe digo o nome do falecido.
Minha memória ainda é das melhores – apesar de ter sofrido uma comoção cerebral
há poucos dias, ainda não estou inteiramente bom. Espera aí, deixa eu ver...
Sou advogado há mais de quarenta anos, não esqueço o nome de um constituinte,
vivo ou morto. Hoje em dia... Benvindo!
-- Como?
-- O nome do falecido era Benvindo.
Isto! Benvindo Lopes. Marido da minha cozinheira. Faleceu há pouco tempo. Ela
já não está boa da cabeça e se eu não me lembrasse o nome do marido dela, quem
é que haveria de lembrar? Levindo Lopes.
-- O senhor disse Benvindo. – Eu disse
Benvindo? Veja o senhor!
-- É Levindo ou Benvindo?
Ele ficou pensativo um instante:
-- Benvindo seja – respondeu afinal,
muito sério.
Depois de verificar no fichário,
expliquei-lhe que deveria trazer uma petição. O velho agradeceu e saiu,
assegurando-me que sim, não esqueceria. Nem dez minutos haviam decorrido e
tornou a surgir na porta:
-- Sr. Escrivão, já que o senhor ainda
há pouco foi tão amável, e sem querer abusar, posso lhe pedir uma informação? É
sobre um inventário, esqueci de lhe dizer. Minha memória é muito boa, mas sofri
há dias uma comoção cerebral...
-- O senhor me disse - sorri-lhe,
solícito: – Qual é o inventário, desta vez?
-- Inventário de... de... Não vê o
senhor? A minha cozinheira... O marido dela.
-- Benvindo Lopes?
-- Isso! Benvindo Lopes. Como é que o
senhor sabe?
-- O senhor já me tinha dito.
-- Mas sim senhor! Vejo que também tem
boa memória.
Tornei a explicar-lhe a mesma coisa,
isto é, que deveria trazer uma petição. Não esquecesse.
-- Não, não me esqueço.
Agradeceu e se afastou. Deteve-se a
meio caminho da porta.
-- Veja o senhor! Já ia me esquecendo é
do motivo principal que me trouxe aqui: a minha cozinheira, que está mais velha
do que eu, perdeu o marido há pouco tempo e estou cuidando do inventário
dele...
-- Sabe o nome do falecido? –
perguntei, sem me alterar.
-- Como não? Minha memória ainda
funciona, para nomes então, principalmente. Ora, pois. É Levindo não sei o
quê...
-- Não será Benvindo?
-- Isso! Benvindo... Benvindo Lopes, se
não me engano.
-- Este nome não me é estranho -
limitei-me a murmurar.
Sabino, Fernando.
In Para gostar de ler. Ed. Ática.
Entendendo a crônica:
01 – Em que pessoa o texto é
narrado: primeira ou terceira?
Em primeira
pessoa, (narrador-personagem). “Correu os olhos pelo cartório onde eu era
escrivão e veio direto a minha mesa”.
02 – O que o velho foi fazer
no cartório?
Saber informações sobre um inventário.
03 – Segundo o velho, o que
havia acontecido a ele recentemente e que estava prejudicando seu raciocínio?
Disse que sua
memória ainda é das melhores – apesar de ter sofrido uma comoção cerebral há
poucos dias, ainda não estava inteiramente bom.
04 – Quem era o falecido?
Provavelmente, qual era seu nome?
Era marido de sua
cozinheira. Provavelmente Benvindo Lopes.
05 – As reticências que
aparecem na fala do homem sugerem que ele era:
a) Confuso.
b) Esquecido.
c) Gago.
d) Indeciso.
06 – A atitude irônica do
narrador ao se referir ao homem que entra no cartório revela-se no seguinte
trecho:
a) “Ele
ficou pensativo um instante.”
b) “Memória boa tinha aquele velho.”
c) “Tornei-lhe
a explicar a mesma coisa.”
d) “Perguntei,
sem me alterar.”
07 – A fala final do
narrador sugere que ele:
a) Conformou-se com a situação.
b) Esqueceu
o nome do homem.
c) Lembrou-se
do inventário.
d) Perdeu
o fichário.
08 – O tema central dessa
crônica é:
a) Dificuldade
de comunicação entre as pessoas.
b) O
inventário de Benvindo Lopes.
c) A inconveniência da perda de memória.
d) As
doenças mentais.
09 – Os verbos CORREU, ESTOU e ESQUECERIA estão
flexionados, respectivamente, nos seguintes tempos verbais do modo indicativo.
a)
Pretérito perfeito, pretérito perfeito e
pretérito imperfeito.
b)
Pretérito imperfeito, pretérito perfeito e
pretérito mais-que-perfeito.
c)
Pretérito imperfeito, pretérito imperfeito e
futuro do presente.
d)
Presente, pretérito perfeito e futuro do
pretérito.
e)
Pretérito perfeito, presente e
futuro do pretérito.
10 – Na fala do senhor, há
uma pontuação utilizada para sugerir o quanto ele era esquecido. Assinale a
opção que contém essa pontuação:
a)
As vírgulas.
b)
As reticências.
c)
Ponto de exclamação.
d)
O travessão.
e)
Ponto de interrogação.
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