Política de Privacidade

quarta-feira, 27 de maio de 2020

CONTO: UMA GALINHA - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

Conto: Uma Galinha
           
              Clarice Lispector

      Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
    Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
        Foi, pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde está, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa.
        De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
        Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beirai de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
        Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga.
        Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
        Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.
        Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos.
        Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez àquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal, porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!
        Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave, nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
        — Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
        — Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.
        Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
        Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo – se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.
        Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar.
        Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria, mas ficaria muito mais contente.
        Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
        Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se os anos.

Fonte: https:// arquivos.gconcursos.com/prova/arquivo.prova/47449/itame-2015-camara-municipal-de-inhumas-go-arquivista-prova-pdf. Acesso: 06 abr. 2020.
Interpretando e analisando o conto:
01 – Assinale a alternativa correta. “A galinha tornara-se a rainha da casa”.
a)   Por ter tido coragem para fugir da morte;
b)   Por cantar como um galo todas as manhãs;
c)   Por ter botado um ovo, começado a chocá-lo e comovido a todos.
d)   Por ter cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

02 – Se em “Mesmo que ela cante baixinho, fará sucesso” o trecho em negrito fosse substituído por “Mesmo que ela cantasse baixinho”, a continuação correta seria:
a)   Faz sucesso.
b)   Fez sucesso.
c)   Fará sucesso.
d)   Faria sucesso.

03 – Assinale a alternativa em que contém discurso direto:
a)   Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã. Parecia calma.
b)   Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos: – Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!
c)   Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar a beira do telhado, prestes a anunciar.
d)   Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa.

04 – Em todos os trechos citados do texto há adjetivo, exceto em:
a)   [...] não souberam dizer se era gorda ou magra.
b)   Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada.
c)   Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se os anos.
d)   [...] hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo.

05 – Assinale a alternativa correta no que se refere ao uso da vírgula – “O rapaz, porém, era um caçador adormecido”.
a)   Para isolar o vocativo.
b)   Para isolar o aposto.
c)   Para separar conjunções.
d)   Para separar adjuntos adverbiais deslocados.

06 – Por que, afinal, a família desistiu de comer a galinha? E por que, tempos depois, eles decidem comê-la?
      Exemplo de hipóteses interpretativas: A família desistiu de comer a galinha porque percebeu que ela era agora necessária para dar vida ao ovo que ela chocava. Depois eles decidem comê-la porque ela não está mais chocando ovo nenhum.   
  
07 – Às vezes, a narrativa do conto oscila entre a humanização e animalização da galinha. Cite trechos do texto que comprovam essa afirmativa.
      Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

08 – Percebe-se, no conto, que o narrador(a) faz uma projeção da galinha para uma mulher / mãe que gostaria muito de não ter o sentido de sua vida reduzido à maternidade. Não quer (ou não ousa) cantar como o galo (ou cantar de galo), mas ficaria feliz em saber que pode. Qual a relação da projeção feita pelo narrador(a) com as mulheres anuais? Justifique sua resposta.
      As mulheres, atualmente, não gostam de ver suas vidas reduzidas à maternidade. Muitas mulheres amam o papel da maternidade, mas a maioria delas desejam ser vistas, não apenas como mães, mas como pessoas independentes, capazes, boas profissionais, etc.

09 – Qual é a(s) personagens principal do conto?
      A galinha.

10 – Em que tempo e em que lugar se passa essa narrativa? Justifique sua resposta.
      Tempo psicológico – Terceira pessoa. Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã. Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha.
      Na casa da família – na murada do terraço, no terraço do vizinho – Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou – o tempo da cozinheira dar um grito – e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé.

11 – Que tipo de narrador está presente nesta narrativa? Justifique sua resposta.
      Narrador observador.

12 – Faça um resumo desse conto em, no máximo, cinco linhas, contando com suas próprias palavras o que você leu.
      Resposta pessoal do aluno.      


7 comentários: