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domingo, 26 de abril de 2020

PEÇA TEATRAL: CAVEIRINHA - LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO - COM GABARITO

PEÇA TEATRAL: Caveirinha
         
   Luís Francisco Carvalho Filho

        [São catorze salas, de catorze juízes, lado a lado, unidas por um longo corredor. As portas permanecem fechadas, para que o trança-trança não atrapalhe. As audiências são marcadas com intervalo de cinco minutos entre uma e outra. Há pressa, não há pontualidade. Os intimados aguardam a chamada num saguão apertado, onde uma sucessão de fileiras de bancos de madeira se organiza em um pequeno auditório. Carta precatória é um procedimento: o juiz faz a inquirição de alguém e remete o texto para o juiz de outro lugar. O juiz daqui não conhece o caso e, provavelmente, nunca mais vai ouvir falar no processo.]
        Juiz: Qual o seu nome?
        G...: G...
        Juiz: Dizem os autos do inquérito policial que o senhor, R... e T... deram causa à morte de L..., provocando, por negligência, um acidente de trabalho na Indústria de Farinha. Diz a Justiça Pública que a vítima no recebeu treinamento para trabalhar na máquina, tendo sido sugado pelos exaustores no terceiro dia de trabalho. A morte da vítima foi imediata, o corpo foi dilacerado. O senhor e R... são acusados de omissão. Nada fizeram para evitar o acidente, apesar de previsível. T... é acusado de contratar a vítima, sem treinamento, para a realização de um trabalho perigoso. O que o senhor tem a dizer sobre a denúncia? O senhor conheceu a vítima?
        G...: Não. Eu sou um dos proprietários da indústria e trabalho aqui, na cidade. Eu me dedico à área financeira. A indústria fica a cem quilômetros. Há uma gerência industrial, chefiada por um administrador habilitado e bastante experiente no ramo, que cuida justamente de toda essa parte técnica. Nós sempre seguimos as regras de prevenção do Ministério dos Acidentes. Não houve negligência.
        Juiz: O senhor presenciou os fatos?
        G...: Não.
        Juiz: O que o senhor sabe do acidente?
        G...: Eu fui informado pelo meu gerente, uma hora depois, por telefone.
        Juiz: O que ele disse?
        G...: Disse que a vítima havia sido imprudente, que tinha ingressado na área de ventilação da máquina, que é cercada por tapumes. Disse que o rapaz foi socorrido imediatamente, mas morreu a caminho do hospital, que já avisara a família e que estava providenciando o enterro. Ele não tinha autorização para entrar ali, não tinha nada para fazer ali. Ali só entram mecânicos. Há uma placa, na parede, avisando do perigo. A placa tem uma caveirinha vermelha desenhada.
        Juiz: Ele recebeu treinamento?
        G...: Sim. A máquina não é perigosa. O operário não mantém contato com nenhuma engrenagem capaz de ferir. É fácil de ser operada. Ela só é barulhenta e os operários usam um protetor de ouvido. O trabalhador recebeu instruções, foi advertido para não entrar naquele recinto.
        Juiz: Se o senhor é inocente, por que então o senhor acha que foi denunciado?
        G...: Eu não sei. Talvez preconceito. Meu advogado diz que é preconceito. Mas eu não sou um empresário poderoso, minha empresa é pequena.
        Juiz: [Ditando.] Que não presenciou os fatos descritos na denúncia e nega a acusação. Que alega ser inocente, vítima de preconceito contra o empresariado. Que o interrogando trabalha na cidade e cuida da parte financeira da firma. Que a indústria tem um gerente técnico, que é responsável. Que recebeu um telefonema do gerente e soube do acidente. Que a culpa foi da vítima e que havia uma placa vermelha com o desenho de uma caveira no local, indicando perigo, e que mesmo assim ele foi irresponsável e desobedeceu. [Para o réu.] Quanto tempo durou o treinamento?
        G...: Não há um treinamento específico, porque eles não lidam com a parte mecânica da máquina, o senhor entende? Ele simplesmente jogava espigas de milho e mandioca no funil da máquina. Sem risco.
        Juiz: Mas quanto tempo durou o treinamento?
        G...: É imediato. Não há necessidade de cursos ou de aprendizados mais complexos.
        Juiz: Ele teve aulas?
        G...: Não, aulas não. Não precisava...
        Juiz: Ele já trabalhou na máquina no primeiro dia?
        G...: Sim, como todos os outros. Os novos empregados observam os companheiros antigos, começam ajudando, e começam a trabalhar. Não há perigo. Nunca houve um acidente.
        Juiz: Alguém tentou detê-lo?
        G...: Não, ninguém; olha, ninguém viu ele entrar naquela sala.
      Juiz: [Ditando.] Que o aprendizado da vítima foi imediato, sem preleções. Que os trabalhadores da indústria trabalham nas máquinas, já no primeiro dia de emprego, fáceis de ser operadas. Que os operários observam como os outros fazem e começam logo a trabalhar. Que a vítima só jogava milho e mandioca no funil e não corria riscos. Que a máquina é barulhenta e os operários usam fones de ouvido. Que a vítima não deveria estar naquele local e que ninguém o impediu. [Para o réu.] A vítima foi socorrida?
        G...: Sim, ele foi levado para o hospital, mas já estava morto.
        Juiz: Conhece os outros réus?
        G...: Sim. R... é meu sócio, cuida da parte comercial, e T... é o gerente da indústria.
        Juiz: Conhece as testemunhas do promotor?
        G...: Não.
      Juiz: [Ditando.] Que a vítima morreu a caminho do hospital. Que conhece os co-réus, sendo R... o seu sócio e T... o gerente. Que nada tem para alegar contra as testemunhas. Que sai ciente do prazo de três dias para defesa prévia e de que não pode mudar de endereço sem comunicar ao juízo deprecante, saindo também ciente da data da audiência. Nada mais...
        [O juiz é surpreendido pela intervenção.]
        Advogado: Excelência, eu sei que o advogado não pode interferir no interrogatório, nem é essa a minha intenção, mas eu gostaria, pela ordem, que alguns esclarecimentos do réu ficassem consignados no termo.
        Juiz: O senhor não pode interferir mesmo. Mas faltou alguma coisa? O quê? O réu não reclamou de nada.
        Advogado: É papel do advogado reclamar... O réu informou a Vossa Excelência que recebeu a notícia do acidente por um telefonema de seu gerente industrial. No termo ficou constatado que o réu “soube do acidente”. Eu peço...
        Juiz: Olha, eu não vejo nenhum erro no meu termo. Ele não presenciou o acidente. Não é? Ele ouviu falar do acidente, ele soube por telefone. Está certo? Qual o problema?
        Advogado: Excelência, tal como está no termo, o réu aparenta uma certa indiferença em relação aos fatos. Mas ele foi informado imediatamente, cobrou providências... Ele não ouviu dizer, ele foi informado, percebe? Tal como está escrito, parece que o réu reagiu com indiferença à notícia da tragédia. Não é o senhor quem julgará a causa. O juiz do caso pode fazer uma interpretação desfavorável do interrogatório. Correto?
        Juiz: Está bem. [Ditando.] Dada a palavra ao defensor, foi dito que ficasse consignado que o réu informou a esse juízo que soube do acidente, por um telefonema do co-réu T..., que já havia tomado todas as providências. – Está bem assim, doutor?
        Advogado: Obrigado, Excelência. É um detalhe, mas o réu informou que os operários usam “protetores de ouvido”. No termo ficou constando que eles usam “fones de ouvido”. São coisas diferentes...
        Juiz: Olha, doutor, eu me lembro muito bem, ele falou “fone de ouvido”. Não posso admitir que o senhor conduza o interrogatório. O que o senhor disse?
        G...: Eu disse que os operários usam “protetores de ouvido”, é um equipamento exigido pela legislação.
        Juiz: É “protetor”, é? O senhor falou “fone de ouvido”. Eu me lembro.
        G...: Não, eu disse “protetor”. Tenho certeza.
        Juiz: [Ditando] Que a vítima usava protetor de ouvido e não fone de ouvido, como constou acima.
        Advogado: Excelência, eu gostaria ainda que ficasse esclarecido que ninguém, na indústria, percebeu que a vítima entrou no recinto proibido antes do acidente.
        Juiz: Ah, ele não falou isso.
    Advogado: Excelência, quando o acusado respondeu a pergunta do senhor, informando que ninguém deteve a vítima, ele disse que ninguém na fábrica viu a vítima entra no local. Assim, ninguém poderia detê-la. Não é? O termo está incompleto.
        Juiz: Ele não disse isso, doutor. O senhor sabe que eu fui gentil. Eu permiti sua atuação. O senhor sabe, a lei não permite interferências da defesa e da acusação no interrogatório, mas o senhor vem e abusa. Assim, não dá. O senhor não pode induzir as palavras do interrogado.
        Advogado: Eu não induzi o réu a nada, Excelência. Eu não admito... Olha, eu agradeço a sua tolerância, eu... Eu gostaria de lembrar que o interrogatório é um ato de defesa do réu, que a palavra do réu não pode ser censurada e que tudo deve ser transcrito da maneira mais fiel possível. Eu sugiro que o senhor pergunte ao réu sobre o que ele disse realmente e se Vossa Excelência desejar, pode também consignar minha interferência.
        Juiz: O senhor não disse isso, disse?
        G...: Disse sim. Ninguém da indústria viu quando ele entrou no local do acidente.
        Juiz: [Ditando.] Que após interferência do advogado de defesa, o réu informou que havia dito que ninguém na empresa viu a vítima entrar na sala onde veio a falecer, referência esta não ouvida antes por este juízo. [Para a escrevente.] Chega, vamos encerrar este termo...
                             CARVALHO FILHO, Luís Francisco. Nada mais dito nem perguntado. São Paulo, Editora 34, 2001. p. 41-6.
Fonte: Linguagem Nova. Faraco & Moura. Editora Ática. 8ª série. p. 96-102.
Entendendo o texto:

01 – O texto lido, criado por um escritor, é a reprodução de uma audiência em que o juiz interroga o réu. Apresenta características de um texto de teatro. Que características são essas?
      Rubricas; falas de personagens, sem narrador.

02 – Apesar de ser ficcional, o texto parece extremamente realista, saindo diretamente dos tribunais. Justifique essa afirmativa.
      O autor, advogado criminalista, consegue transpor para a linguagem escrita os diálogos e os termos jurídicos com uma fidelidade incrível. Parece que o texto tem autonomia, é quase transcrição de algo gravado.

03 – Qual é o objetivo do primeiro parágrafo eu está entre colchetes?
      Descrever o ambiente do fórum onde se passa a audiência a ser relatada e explicar o procedimento adotado, que é uma carta precatória.

04 – O procedimento relatado é uma carta precatória, isto é, o juiz faz o interrogatório e remete o texto para um juiz de outro lugar, que fará o julgamento. Sendo assim, como deve ser a linguagem utilizada?
      A linguagem deve ser objetiva, precisa e extremamente fiel ao que foi dito no interrogatório.

05 – No texto, foram empregados dois tipos de discurso: o direto e o indireto. Em que situação foi empregada cada uma dessas formas de discurso?
      Discurso direto: no diálogo entre o juiz e o réu e entre o juiz e o advogado.
      Discurso indireto: nas passagens em que o juiz reproduz para a escrevente o que o réu falou.

06 – “Não houve negligência.” O que o réu quer dizer com essa afirmativa?
      Não houve descuido, desleixo, desatenção.

07 – Segundo o réu, qual foi a causa da morte da vítima?
      Imprudência: a pessoa entrou em lugar cercado por tapumes com aviso de perigo na parede.

08 – No texto, o juiz, ao ditar para a escrevente, começa as frases com que. É, em geral, dessa maneira que juízes e delegados relatam depoimentos. Como se pode explicar esse uso?
      O juiz está empregando o discurso indireto ao ditar para a escrevente. O emprego do que pressupõe um texto anterior: O réu afirmou / relatou / disse... Como essa frase introdutória é óbvia no contexto, o juiz a suprime.

09 – O advogado do réu interfere no interrogatório três vezes. Você concorda com as observações que ele faz? Justifique sua resposta.
      Resposta pessoal do aluno.

10 – A linguagem com que o advogado se dirige ao juiz é bastante formal e mesmo cerimoniosa. Que pronome o advogado emprega que revela esse nível formal de linguagem?
      Os pronomes de tratamento Excelência e Vossa Excelência.

11 – Na última fala do advogado, há um período que justifica muito bem a razão de suas interferências no interrogatório. Transcreva-o.
      “Eu gostaria de lembrar que o interrogatório é um ato de defesa do réu, que a palavra do réu não pode ser censurada e que tudo deve ser transcrito da maneira mais fiel possível.”

12 – Releia o primeiro trecho que o juiz dita para a escrevente. Compare-o com as falas do réu. Que declarações foram omitidas ou alteradas pelo juiz, além do que foi observado pelo advogado?
      O juiz omitiu que a indústria ficava a cem quilômetros da cidade, onde o réu trabalhava. Não disse que o administrador era habilitado e bastante experiente no ramo, mas simplesmente que ele era responsável. Mandou escrever que a vítima foi irresponsável e desobedeceu o aviso de perigo; o réu só dissera que a vítima tinha sido imprudente. O aviso, segundo o réu, era uma placa com uma caveirinha vermelha; de acordo com o juiz, havia uma placa vermelha com uma caveira.

13 – Caveirinha, no texto, significa perigo. Por que o texto se chama “Caveirinha”? Quem é que corre perigo, nesse caso?
      O réu corre perigo porque pode sofrer injustiça devido à interpretação que o juiz faz de suas afirmações. 



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