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domingo, 26 de maio de 2019

TEXTO: CEM DIAS ENTRE CÉU E MAR - FRAGMENTO - AMYR KLINK - COM GABARITO

Texto: CEM DIAS ENTRE CÉU E MAR - Fragmento
                   
     Amyr Klink

        O ranger do velho caça-minas de madeira contra o cais me roubou o sono. O movimento de proas e mastros dos pesqueiros atracados lado a lado produzia uma estranha música de ruídos e estalos que hipnotizavam os ouvidos. Embora uma fina névoa descansasse sobre as águas silenciosas do porto, e não houvesse um pingo de vento, o balançar dos barcos anunciava que fora da baía o mar estava agitado e as grandes ondas do sul tinham voltado.
        Impossível dormir nessa primeira noite a bordo; com a luzinha da cabine acesa, e uma lanterna na mão, procurava pôr ordem na infinidade de sacolas que ainda aguardavam um endereço certo no meu minúsculo compartimento de bagunças. Vesti mais uma blusa – frio – e, soltando um pouco o cabo da âncora e as amarras que me ligavam ao barquinho do capitão do porto, encostei no cais principal, a poucos metros apenas. Por entre as sombras dos vagões aí estacionados surgiram dois vultos:
        ― Amyr!‖. Eram Gunther e Marion, encapotados, que vieram me acordar. ― Amyr, o escritório de Aduana está abrindo! Os papéis!...”
        ― Bom dia‖, respondi.
        E com passaporte, diário e livros de bordo debaixo do braço, subi os degraus gelados da escadinha de ferro, e fomos atrás da única luz acesa no porto. O oficial da Imigração, especialmente arrancado da cama para a ocasião, e com cara de quem não estava muito acostumado a madrugar, colocou as estampilhas, carimbou e finalmente assinou os meus papéis. E assim, às seis horas do dia 10 de junho de 1984, uma gelada manhã de domingo, eu estava oficialmente autorizado a deixar o porto de Lüderitz, na Namíbia (antiga África do Sudoeste), com destino ao Brasil, remando.
        Tenso, andando em direção ao cais, senti que aqueles seriam os meus últimos passos em terra firme. O cheiro de porto no escuro, a areia quente sob os pés, os vagões enferrujados, o barulho de vozes humanas – quando novamente? Não sabia, e tampouco importava naquele momento. Estava nervoso, impaciente, desesperado para ir embora. A saída fora autorizada, a partir de Dias Point, e para lá seria rebocado por um veleiro, o Storm Vogel. Na ponta do cais, já estavam todos esperando: Helena com as crianças, a querida Anne Marie e os inesquecíveis amigos de Lüderitz com caras amassadas de sono e alguns olhos molhados. Tinha um enorme nó na garganta, e simplesmente não pude me despedir de ninguém: a voz não saía. Pulei no barco e, antes que me afastasse, Helena atirou uma chuva de flores:
        “― É para Iemanjá! Faça uma linda viagem, Amyr!”
        Gunther, talvez o único entre aquelas pessoas que não traíra uma ponta de nervosismo, não parava quieto e berrava:
        “― Cuide-se direito! Não deixe que te peguem! Queremos visitá-lo em Paraty”.
        De um veleiro antigo, de casco negro e que eu mal podia enxergar no escuro, ouvi um anônimo:
        “― Boa sorte, homem!”.
        Agradeci em silêncio. Aos poucos o cais foi diminuindo. Fundindo-se com contornos áridos das dunas que cercam a cidade. Passamos a última boia de indicação do porto, com sua luzinha vermelha e o eterno bater do sino que orienta os pesqueiros perdidos na neblina. O dia começou a nascer, envolto em uma neblina baixa que fazia as altas dunas do deserto parecerem nuvens sobre o horizonte.
        Focas e golfinhos surgiram brincando em torno do barco e, ao dobrar Dias Point e Halifax Island, onde vive uma simpática colônia de pinguins, o mar subitamente mudou. O vento forte e as ondas formadas anunciavam o limite das águas abrigadas da baía de Luderitz, o oceano livre pela frente. Do potente farol-apito, junto à cruz de Dias – que nas noites de tempestade e nos dias de neblina, tão frequentes nessa estranha costa, orienta a entrada dos navios –, ouvi pela última vez a África, uma série de longos e distantes apitos, a saudação da torre que aos poucos desaparecia, um continente que já não mais avistava, mas que ainda podia ouvir ... Adeus, África!
        Começou, então, a despedida da tripulação do Storm Vogel. Catastrófica despedida. Eu havia esquecido meu casaco vermelho e uma máquina fotográfica no veleiro, antes de deixar o porto, e pedi aos berros, por causa do vento que não parava de aumentar, que me passassem o material. Com o mar cada vez mais agitado, uma aproximação tornava-se tarefa delicada. Atirei um cabo, para auxiliar a manobra, mas ao ser puxado por barlavento desci uma onda em velocidade e entrei com o bico de proa no costado do veleiro, abrindo um pequeno rombo. Ficaram todos apavorados com o choque, e mais ainda com o furo no casco, e então tentaram passar em rumo oposto ao meu.
        Não sabia exatamente o que fazer; as ondas começavam a preocupar, mas era certo que eles estavam com excesso de pano para aquele vento. Só então percebi que eram completamente inexperientes e não entendiam nada de vela.
        Com o veleiro adernado pelo vento, sem ângulo de visão e em grande velocidade, o comandante errou a manobra e veio exatamente em cima de mim. Proa com proa, um choque tremendo, pensei que fosse afundar. Todas as coisas soltas dentro do barco voaram, e a antena de rádio, instalada do lado de fora, partiu-se ao meio e caiu na água. Junto, foi um bobina para comunicados a curta distância, em 40 metros, que ganhei do Gerd (formidável radioamador de Lüderitz) e que serviria para lhe mandar notícias nos primeiros dias.
        Estava apavorado. O cockpit cheio de água, as ondas arrebentando, um frio tremendo, e a antena principal perdida. Meu Deus, que começo! Descontrolada com a força do vento, com velas panejando e escotas voando, a tripulação resolveu mudar de tática e, agora com o vento a favor, avançou de novo em minha direção. Fiquei histérico, não queria mais o casaco nem coisa alguma. Queria que fossem embora, aquilo estava perigoso demais! Faltavam só capa e lança para parecer um duelo — a capa, aliás, estava com eles — e vieram dessa vez em sentido contrário, com todas as velas cheias, levantando espuma pela proa. Berrando como louco, implorei que se afastassem. Inútil.
        Cruzando proas a poucos metros de distância, me atiraram o casaco amarrado a um cabo para que o vento não o carregasse. Agarrei-o — e que surpresa! —, o cabo não estava solto. Pior. Não era um cabo, mas a ponta de uma das escotas. Larguei tudo imediatamente; mas, enquanto o veleiro seguia veloz, a ponta que estava comigo ainda presa ao casaco enroscou-se num dos remos, o cabo esticou, partiu-se e o remo espirrou para cima, caindo no mar. Fiquei sem meu remo, e eles sem a escota da vela grande que panejava de maneira desesperada. Tudo se passara em frações de segundos. Tinha de qualquer modo que recuperar o remo. Situação absurda! Desamarrei um dos remos de reserva que estavam firmemente atados sobre o convés e, enfurecido, quase chorando de raiva, parti em direção ao remo perdido que se afastava com rapidez. Quarenta e cinco minutos de luta com as ondas e o vento para conseguir, todo ensopado, capturar o remo acidentado. Não, não podia ser verdade — quarenta e cinco minutos, e as bolhas estouravam-me nas mãos, a mais de cem dias do destino! Do veleiro, só me lembro da tripulação tentando levantar uma faixa, por certo preparada na véspera, onde se lia, num esforçado castelhano, “Amyr, feliz viag...”, e vupt, o vento carregou a faixa. Não nos vimos mais, e não houve despedida. Simplesmente sumiram. Assim, de modo rocambolesco, eu havia partido e, ao me descobrir totalmente só, uma estranha sensação me invadiu...
        A situação a bordo era desoladora. O vento ensurdecedor, o mar difícil, roupas encharcadas, muito frio e alguns estragos. Pela frente, uma eternidade até o Brasil. Para trás, uma costa inóspita, desolada e perigosamente próxima. Sabia melhor que ninguém avaliar as dificuldades que eu teria daquele momento em diante. Estava saindo na pior época do ano, final de outono, e teria pela frente um inverno inteiro no mar.
        A fria e difícil corrente de Benguela, meu caminho obrigatório até as proximidades da ilha de Santa Helena, é particularmente perigosa no mês de junho. Planejei partir no verão, quando as águas do Atlântico Sul são mais clementes, e estabeleci uma data-limite para a partida, além da qual eu deveria reconsiderar seriamente a decisão de me fazer ao mar. Essa data era o final do mês de maio, e já estava queimada. Uma colossal avalanche de problemas contribuiu para isso. Mas, se tomei essa decisão, não foi sem avaliar os riscos. Eu havia trabalhado nesse projeto durante mais de dois anos, sem jamais fazer uma única concessão que lhe comprometesse a segurança. Tinha um barco e um equipamento como sempre sonhei — perfeitos. Estava preparado para o pior, e por um período tão longo no mar seria impossível, cedo ou tarde, evitar o pior. Então, por que não partir?
        Finalmente, meu caminho dependeria do meu esforço e dedicação, de decisões minhas e não de terceiros, e eu me sentia suficientemente capaz de solucionar todos os problemas que surgissem, de encontrar saídas para os apuros em que porventura me metesse.
        Se estava com medo? Mais que a espuma das ondas, estava branco, completamente branco de medo. Mas, ao me encontrar afinal só, só e independente, senti uma súbita calma. Era preciso começar a trabalhar rápido, deixar a África para trás, e era exatamente o que eu estava fazendo. Era preciso vencer o medo; e o grande medo, meu maior medo na viagem, eu venci ali, naquele mesmo instante, em meio à desordem dos elementos e à bagunça daquela situação. Era o medo de nunca partir. Sem dúvida, este foi o maior risco que corri: não partir.
        Não estava obstinado de maneira cega pela ideia da travessia, como poderia parecer — estava simplesmente encantado. Trabalhei nela com os pés no chão, e, se em algum momento, por razões de segurança, tivesse que voltar atrás e recomeçar, não teria a menor hesitação. Confiava por completo no meu projeto e não estava disposto a me lançar em cegas aventuras. Mas não poder pelo menos tentar teria sido muito triste. Não pretendia desafiar o Atlântico — a natureza é infinitamente mais forte do que o homem —, mas sim conhecer seus segredos, de um lado ao outro. Para isso era preciso conviver com os caprichos do mar e deles saber tirar proveito. E eu sabia como.
        Pelo simples fato de estar ali onde estava, debatendo-me entre os remos, xingando as ondas e maldizendo a sorte, me sentia profundamente aliviado. Feliz por ter partido.

KLINK, Amyr. Cem dias entre céu e mar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 17-22.

Entendendo o texto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras a abaixo:
·        Caça-minas: navio pequeno para abrir caminho em um campo minado.
·        Aduana: alfândega.
·        Estampilhas: selos fiscais.
·        Barlavento: direção em que o vento sopra.
·        Proa: parte dianteira da embarcação.
·        Costado: parte aparente do casco na embarcação.
·        Adernado: inclinado.
·        Cockpit: espaço em que o piloto fica nas embarcações.
·        Panejando: tremulando, tremendo.
·        Escotas: cabos que seguram a vela da embarcação.
·        Rocambolesco: marcado por imprevistos e aventuras.

02 – A quem você acha que esse texto é destinado?
      Resposta pessoal do aluno.

03 – Em sua opinião, por que Amyr Klink escolheu o mar como cenário de sua aventura?
      Resposta pessoal do aluno.

04 – Os fatos expostos pelo navegador são reais ou imaginários? Explique.
      São reais, pois são relatos de uma pessoa que realmente existe e que realizou a viagem apresentada.

05 – Que experiências são relatadas nesse texto?
      São relatadas as experiências de uma viagem do navegador Amyr Klink retornando para o Brasil em um veleiro.

06 – Quem conta os fatos? O narrador participa da história narrada ou expõe os fatos como alguém que apenas observa os acontecimentos?
      O narrador é Amyr Klink, que vivenciou os fatos relatados.

07 – Em um relato de viagem, é comum ocorrer a descrição de pessoas, lugares, objetos, e a rota e a distância percorridas.
a)   Isso ocorre nesse texto? Justifique sua resposta com exemplos.
Sim. Exemplos: “Tenso, andando em direção ao cais, senti que aqueles seriam os meus últimos passos em terra firme. O cheiro de porto no escuro, a areia quente sob os pés, os vagões enferrujados, o barulho de vozes humanas [...]”.

b)   O texto é constituído somente de descrições? Explique.
Não. Ele é constituído de narração, o que o difere dos relatos convencionais em que predomina a descrição detalhada de um acontecimento.

08 – O relato apresenta continuidade ou é registrado livremente, sem se preocupar com a linearidade dos fatos?
      Ele apresenta continuidade, pois expõe os fatos na sequência em que ocorreram.

09 – Amyr Klink inicia o 6° parágrafo destacando que estava tenso. Qual era a causa dessa tensão?
      Ele estava tenso, pois novamente voltaria ao mar e tinha receio de quando conseguiria estar a salvo em terra firme.

10 – No trecho: “A natureza é infinitamente mais forte do que o homem”, Amyr afirma que não pretendia desafiar a natureza. Em sua opinião, qual era o objetivo de sua viagem?
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Superar seus próprios limites e aventurar-se no mar, passando por lugares difíceis e perigosos.

11 – Muitas pessoas, assim como Amyr Klink, buscam, por meio de aventuras, superar seus limites e, consequentemente, vencer os medos.
a)   Como o medo pode ser superado para que as pessoas atinjam seus objetivos?
Enfrentando-o para que ele não impeça a realização das atividades pretendidas.

b)   Você já passou por alguma situação em que teve medo e precisou superá-lo? Comente.
Resposta pessoal do aluno.

12 – Em sua opinião, que contribuições expedições como a realizada por Amyr Klink podem trazer às pessoas? Você as considera importantes?
      Resposta pessoal do aluno.

13 – Observe algumas palavras empregadas no texto: Cais – proa – mastros – atracados – âncora. Por meio do emprego dessas palavras, é possível reconhecer a área sobre a qual o texto trata. Que área é essa?
      A área da navegação.

14 – Releia o seguinte trecho:
        “[...] E assim, às seis horas do dia 10 de junho de 1984, uma gelada manhã de domingo, eu estava oficialmente autorizado a deixar o porto de Lüderitz, na Namíbia (antiga África do Sudoeste), com destino ao Brasil, remando.”

a)   Identifique os advérbios e as locuções adverbiais presentes nesse trecho, classificando-os.
Às seis horas do dia 10 de junho de 1984, manhã de domingo: locução adverbial de tempo. Oficialmente: advérbio de modo; na Namíbia, ao Brasil: locução adverbial de lugar.

b)   Por que o emprego de advérbios e locuções adverbiais é imprescindível nesse gênero textual?
Porque esse gênero é importante a localização do espaço e do tempo em que as ações ocorrem, a fim de contextualizar o leitor sobre os acontecimentos.

15 – Identifique, em cada um dos trechos a seguir, o sentido com que as expressões em destaque foram empregadas.
a)   Se estava com medo? Mais que a espuma das ondas, estava branco, completamente branco de medo.
Pálido.

b)   Confiava por completo no meu projeto e não estava disposto a me lançar em cegas aventuras.
Sem um rumo predeterminado.

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